Sincronia com a palavra

Em "A palavra inscrita", Mário Chamie mergulha mais uma vez na obra de grandes escritores
Mário Chamie: pressupostos e parâmetros que estimula abordar e discutir a pordução literária e cultural
01/12/2004

Pouco se terá a dizer sobre o poeta Mário Chamie. Trata-se de uma das poucas vozes inteligentes deste país. Na poesia e fora dela. Vozes assim são necessárias para enfrentar o inferno reinante na literatura brasileira atual, feita quase só de favores mútuos e elogios sem consistência numa espécie de confraria. Chamie está fora dessa circunstância. É um poeta vigoroso. Uma voz sem disfarce e isso ocorre também com seus livros de ensaio literário, nos quais sobressai um rigor que se tornou difícil entre nós. No que diz respeito à literatura, o Brasil é uma espécie de circo mambembe, repleto de figurantes aplaudidos por uma platéia que não tem compromisso nenhum com nada. De forma que vamos assim seguindo com as manifestações que vão do ridículo ao absurdo. O novo livro de Mário Chamie chama-se A palavra inscrita, prova de que ainda existe gente séria no Brasil, no que diz respeito à literatura, tão agredida nos últimos tempos por facínoras que ocupam os jornais e as universidades. Os ensaios de Chamie são importantes para uma literatura que pretende ser honesta. Exemplo marcante disso é Caminhos da carta (2002). Cite-se também, entre outros, Intertexto (1970), A transgressão do texto (1972), Mário de Andrade: Discurso carnavalesco (1979) e Falação possessória (1991).

Em A palavra inscrita, Mário Chamie analisa e faz uma interpretação da obra de escritores brasileiros e estrangeiros, como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Francis Ponge, Lévi-Strauss, Augusto dos Anjos, Gilberto Freyre e outros. Nesta entrevista, Chamie comenta o que se tornou uma espécie de norma na elaboração da poesia brasileira, partindo de um poema de João Cabral de Melo Neto. De acordo com essa regra estabelecida, um poema só seria bom se fosse seco e árido, se “tivesse um despojamento pétreo”. Cabral sentenciou que não se deve “poetizar o poema nem perfumar sua flor”. Chamie contesta. E contesta com o argumento capaz de outro poema aqui reproduzido. “Vamos poetizar o poema/ e perfumar suas flores/ que por dentro/ do poema/ é flor isenta./ Coisa pétrea/ ou coisa seca/ vamos perfumar essa flor/ na placenta do poema/ que a penetra como luz/ que por dentro/ se arrebenta”. No poema Poetas brasileiros agora — que faz parte do livro Horizonte de esgrimas (2002) — Mário Chamie faz uma análise correta dos tempos atuais na poesia brasileira. Ele descreve as várias fases da poesia e seus poetas, até chegar ao “poeta de agora”, o que restou: “É o poeta de quirelas/ e querências neutras/ o que agora gira e gera/ seus miúdos acúmulos/ e resíduos de indigência./ É o poeta sem estrada nem estrela/ em seu reinado de ausências./ É o poeta marca-passo/ que se alimenta/ e se contempla/ no santo e sonso repasto/ de sua neutra morta letra”. As palavras de Gilberto Freyre melhor explicam Mário Chamie poeta, o que vale também para o ensaísta que é: “Em Mário Chamie, a criatividade se apresenta tão dele — e tão somente dele — que é como se palavras, ou relações entre palavras, nascessem com ele, como se fossem de todo inventadas”.

• Nos últimos seis anos (de 1998 a 2004), você publicou dois livros de poemas (Caravana contrária e Horizonte de esgrimas) e dois livros de ensaios (Caminhos da carta e, agora, este A palavra inscrita). Há alguma razão especial para essa alternância?
Quem acompanha o meu trabalho deve perceber que poesia e ensaio, para mim, andam passo a passo e se interligam. Eu diria mesmo que uma coisa se desdobra na outra e se alimentam, mutuamente. Todos os meus livros de poemas, do primeiro ao último, além do seu caráter predominantemente poético, trazem uma idéia central, à espera de um desenvolvimento crítico.

• Isso seria uma característica do seu modo de escrever poesia?
Acredito que sim. Já o meu primeiro livro de poemas, Espaço inaugural (1955), demonstra isso. Dividida em duas partes (“espaço rural” e “espaço urbano”), essa minha obra de estréia já prenuncia os confrontos e as contradições entre o campo e a cidade que, em termos individuais e coletivos, tanto permeiam a vida da cultura brasileira. Daí porque os meus livros de poemas subseqüentes (O lugar, Os rodízios, Lavra Lavra e Indústria) retomam essas questões e as tratam sob o crivo de uma linguagem que confira a elas a força simbólica e comunicativa da palavra e do poema em que elas se transformam. O poema de “abertura” do livro Objeto selvagem sintetiza essa seqüência. Aqui, está ele:

No espaço do campo, passa o homem e sua miragem.
No espaço da cidade, dorme o homem em sua passagem.
No espaço da consciência, gera o vírus a sua voragem.
Por todos esses espaços, de surda força indomável,
passa o espaço da palavra com sua selva sem margem.
Na selva dessa paisagem, no centro de sua arena,
age a força do poema, meu objeto selvagem.

• O livro Objeto selvagem, citado por você, reúne os seus primeiros nove livros de poesia, somando-se aos citados acima o Planoplenário e outros títulos. Seria correto dizer que, entre um livro de poesia e outro, você vem intercalando um livro complementar de ensaios?
A sua pergunta é válida, no sentido de que os meus livros de ensaios não se desvinculam da experiência ou da produção poética que eu venha, paralelamente, realizando. Assim, tão logo escrevi o Lavra Lavra, concebi também o ensaio que, de imediato, pela peculiaridade de sua exposição e de seus argumentos fundados na escrita do Lavra Lavra, se converteu no chamado Manifesto da poesia Práxis (1962). Um ano depois (1963), publiquei o livro Palavra-levantamento na Poesia de Cassiano Ricardo, tido por muitos críticos da época como uma primeira aplicação dos princípios práxis, na análise da obra de um poeta modernista. Mais tarde (1969), publiquei outro livro de ensaios, Alguns problemas e argumentos, tentando interpretar, por certa óptica “desconstruída” do new-criticism em voga, as relações da poesia modernista e pós-moderna. Com a publicação, em 1967, do livro Indústria, que propunha, em sua elaboração, um diálogo possível (e intrínseco) entre autor-texto-leitor, na própria composição do poema, eu sinalizava o lançamento (em 1970) de Intertexto, um volumoso livro de ensaios que estabelece conexões e convergências dialogadas entre Macunaíma, de Mário de Andrade, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, e Madame Pommery, de Hilário Tácito, obra e autor retirados do limbo e postos em circulação por mim. Intertexto vinha com este subtítulo: “ensaio de leitura produtora”. Inaugurava-se, então, a crítica dialógica, entre nós. Em reforço a Intertexto, compareço, em 1972, com A transgressão do texto, que irá ter uma recepção crítica estimulante, promovendo a intercalação de A linguagem virtual (1976), novo livro de ensaios, logo após o surgimento da poesia, também dialogada, de Planoplenário (1974).

• Você fala em recepção crítica dessa “leitura produtora”. Você poderia dar algum exemplo dessa recepção?
Eu poderia apresentar vários exemplos. Penso, entretanto, que um deles daria bem a medida dessa recepção. Refiro-me ao livro O tupi e o alaúde (1979), de Gilda de Mello e Souza. Este renomado e influente ensaio de interpretação do Macunaíma assimila e adota a linha de leitura produtora instaurada por mim, antes, em A transgressão do texto (1972) e ainda no meu outro ensaio intitulado Mário de Andrade: Fato aberto e discurso carnavalesco (1975). É a própria Gilda que o reconhece, ao dizer: “Mário Chamie foi o primeiro a afirmar que a característica da sátira menipéia, em que se destacam os contrastes violentos, encontra em Macunaíma um amplo campo de atuação” (ver O tupi e o alaúde, p. 104)

• De Caravana contrária a Horizonte de esgrimas, você intercalou os seus dois últimos livros de ensaios, Caminhos da carta e A palavra inscrita. A leitura produtora, a que você se refere, repercute nesses dois livros? De que maneira?
Sem dúvida. A crítica dialógica que exerço tem por fundamento, primeiro, conhecer suficientemente bem a norma que preside a realização de um texto ou de um discurso literário. Conhecida a norma, cabe ao crítico dotar-se de repertório e de capacitação analítica para negá-la e transformar a sua negação em nova afirmação de um sentido diferenciado e de consistência real. Não existe manifestação mais ostensiva da norma do que a aparência de significação estabelecida que, em princípio, todo texto escrito exibe. No livro Caminhos da carta, procuro demonstrar que a descrição que Pero Vaz faz da paisagem e dos indígenas que vê e observa obedece a uma leitura de conveniência. Essa conveniência não compromete a beleza do texto e a veracidade das informações no texto contidas. Apenas, essa veracidade que dá sustentação à palavra escrita de Caminha, para garantir a sua pertinência conveniente, encobre e oculta a possibilidade de outras significações daquilo que foi descrito. Estas outras significações, no entanto, permanecem inscritas e dissimuladas no texto, prontas para ditarem a sua fala e darem testemunho de si. O livro A palavra inscrita, 13º volume dessa trajetória ensaística, coroa esse pensamento crítico, feito de poesia e de reflexão. Vale por uma suma morfológica de todos os desafios e prognósticos com que tenho lidado, ao longo de minha atividade literária. Digo “suma morfológica” porque A palavra inscrita condensa os pressupostos e os parâmetros que me estimulam a abordar e discutir a nossa produção literária e cultural. Um desses parâmetros, por exemplo, é o de que, em qualquer poema, conto ou romance escrito, há a inscrição inevitável de um discurso divergente interno, sem o qual nenhum romance, conto ou poema adquire valor histórico, reciclado na continuidade de suas releituras futuras. Pesquisar e sintonizar-se com o discurso divergente de uma obra literária é trazer à tona a sua força virtual de auto-renovação, livre de sua palavra escrita datada ou sob o desgaste do tempo.

• É essa pesquisa sintonizada que você realiza, em A palavra inscrita, ao estudar Machado de Assis, Euclides da Cunha, Gregório de Matos, Augusto dos Anjos, Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Francis Ponge, Raul Bopp, Drummond, Vicente Celestino, Jorge Luis Borges, voltando à “prosa peregrina”, de Caminha, e detendo-se nas obras de Lévi-Strauss e Gilberto Freyre?
Pela simples relação dos nomes citados, em sua pergunta, daria para perceber que, além de sintonizada, a minha pesquisa é sincronizada com múltiplas fontes da palavra escrita e de suas divergências intrínsecas. Essa sincronia reúne o arcaico e o novo, o popular e o erudito, a literatura e a política, sempre de uma perspectiva predominantemente estética. À luz dessa predominância, é que aqueles autores e o que eles representam integram o cenário de afinidades e contradições expostas e debatidas no livro. Assim, cada autor, de modo isolado ou em convergência com outros, recebe a sua abordagem própria. Nessa linha, é que vejo em Machado de Assis, além da sua escrita de densidade límpida e clássica, o criador portentoso de idiotias ou de idioletos fundamentais que se manifestam por meio de trocadilhos imprevisíveis que invertem, quase imperceptivelmente, o curso da realidade apresentado em suas narrações. Em função desse processo inerente à escrita machadiana, tudo nela é um jogo de ilusões póstumas que nos induzem a acreditar que Machado também acreditaria naquilo de que ele parece descrer. Daí a razão pela qual, as idéias, em Machado, nunca serem fixas e jamais ocuparem algum lugar certo e definido no corpo de alguma doutrina pré-estabelecida. As idéias machadianas são tão itinerantes que não se fixam nem mesmo no âmbito da frase em que comparecem. Veja-se esta frase: “Uma moça bonita pode bem amar os gregos e seus presentes”. Nesta frase, a idéia de amor (ou de amar) circula da boa-fé ao ludíbrio, do ludíbrio à esperança, da esperança à ilusão desavisada. A força do trocadilho, inscrita na frase escrita, é a gíria de um idioleto que desestabiliza a ordem escorreita do idioma utilizado pelo autor. Este diapasão interpretativo, aplicado a Machado, aplica-se, por extensão aos textos dos outros escritores analisados em A palavra inscrita, preservadas, é claro, as peculiridades de cada um.

• Essa idéia de inscrição comparece, também, nos seus livros de poemas. Em Horizonte de esgrimas, por exemplo, há um capítulo em que você, a pretexto de homenagear, subverte o sentido escrito e aparente de poemas (ou da poesia) de alguns poetas consagrados como Murilo Mendes, Ferreira Gullar e João Cabral de Melo Neto. Em relação a João Cabral, parece que você chega a contestar a recomendação que ele faz, por meio do seu conhecido poema Alguns toureiros, de que os poetas não devem “poetizar o poema” e nem “perfumar a sua flor”.
Ainda que possa parecer uma contestação, na verdade o que tento fazer é um redimensionamento intrínseco da idéia ou do significado poético da obra desses autores de importância emblemática, na história de nossa literatura. Cabral vem bem a calhar. Depois que ele, com o peso do seu justo prestígio, sentenciou que não se deve “poetizar o poema” e nem “perfumar as suas flores”, alastrou-se a cartilha catequética de que um poema só seria bom se fosse seco, árido e tivesse um despojamento pétreo. Ninguém se deu conta que essa recomendação cabralina diz respeito à própria composição do seu poema Alguns toureiros. É o toureiro Manolete que diz aos poetas que ele não punha ênfase na sua maneira ascética e tensa de tourear. Ou seja: é como se ele, Manolete, fosse fazer um poema, ele o faria de modo preciso, medido e geométrico. Isso, porém, não quer dizer que esse modo medido e geométrico valha por uma regra absoluta e universal, um dogma fechado a que todo poeta deva se submeter. Se fosse assim, o que seria da poesia barroca, da poesia metafísica, da poesia surrealista, ou de poetas como Rimbaud, Eliot e Jorge de Lima, só para citar alguns? O próprio João Cabral se opunha a essa leitura pobre e limitada do seu belo poema Alguns toureiros. Em longo diálogo que mantive com ele e que publiquei em meu livro Casa da época (1979), Cabral se queixava dessa interpretação empobrecedora daquele seu célebre texto. Esta é a sua queixa: “Está claro que minha poesia é, especialmente, vulnerável a esse tipo de esclerosação de julgamento porque é uma poesia, basicamente, uniforme. Com exceção de uns poucos gritos dissonantes, minha poesia é um sistema, um conjunto de formas e isso facilita a visão esclerosada e repetida da crítica. Eu gostaria que minha poesia tivesse uma leitura em que outras coisas fossem vistas”. E concluía João Cabral: “Estou dizendo que há insistência sobre um lado dela apenas, deixando outros lados que não foram vistos ainda”.

• O seu texto Vamos poetizar o poema atenderia, então, à queixa de João Cabral?
Sob certos aspectos, eu diria que atende, porque estou contestando a leitura “esclerosada” que se faz do poema dele. Sob outros aspectos, estou tentando evidenciar que nenhum poeta, por melhor que seja, é de onipotência tal que possa se permitir impor a exclusividade de sua concepção poética ou de sua visão específica do mundo. Num caso e no outro, leiamos, primeiro, o meu texto Vamos poetizar o poema. Aqui está ele:

Vamos poetizar o poema
e perfumar sua flor
que por dentro
do poema
é flor isenta.

Coisa pétrea
ou coisa seca,
vamos perfumar
essa flor
na placenta do poema
que a penetra como luz
que por dentro
se arrebenta.

A luz do poema
é a voz
que o poema inventa.
Vamos poetizar
essa voz
que a luz do poema
engendra.

Não há toureiro
que toureie
sem sua capa
vermelha.
O sangue de sua espada
é sua palavra-poema.
Vamos poetizar a palavra
com sua capa toureira:
as vísceras da metáfora
na sua espada vermelha.

Sangue e areia,
vamos perfumar
a flor neutra
na placenta do poema,
que, na arena da tourada,
ao poema se assemelha.

Flor neutra
ou flor isenta,
voz caprina
ou voz cabrália,
vamos poetizar
o poema
contra o não
da pedra árida.

Este meu poema bate de frente com aquelas leituras que querem, às custas e à revelia de João Cabral, promover e institucionalizar o “não” da pedra árida e ignorar a fecundidade da “educação pela pedra”. Como diria Francis Ponge: “quem toma o partido das coisas, não precisa coisificar-se”. Para que não coisifiquem João Cabral, e muito menos a poesia brasileira, é que prestei a homenagem do meu poema acima. Poetizar e perfumar, no caso, nada tem a ver com floreios, ornamentos ou firulas retóricas. Tem muito a ver, isto sim, com a liberdade de ler, interpretar e criar poeticamente.

A palavra inscrita
Mário Chamie
FUNPEC Editora
401 págs.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho