Nauro (Diniz) Machado nasceu em São Luís do Maranhão, no dia 2 de agosto de 1935. Um dos poetas brasileiros mais fecundos e importantes de todos os tempos, ainda esperando por uma devida consagração crítica e de público de sua imensa obra, com mais de trinta títulos até o momento. Nesta entrevista, a maior e uma das poucas concedida (por ele mesmo considerada a mais importante até agora), Nauro faz um depoimento nodal, complexo, em que compõe um quadro amplo de sua visão ímpar da vida e da poesia. Comparado por alguns críticos a Fernando Pessoa, Nauro possui uma obra realmente singular, distinta de qualquer poeta contemporâneo, mesmo de sua geração, por apresentar traços de reflexão existencial angustiada e violenta que encontra poucas comparações na lírica de língua portuguesa. Conhecido, traduzido e citado por um não diminuto círculo de intelectuais (Drummond, Cabral, Cassiano Ricardo, Alfredo Bosi, Luciana Stegnano Picchio, Fábio Lucas, Ferreira Gullar, entre muitos outros), em livros de história literária e antologias internacionais, enciclopédias e dicionários, este solitário poeta maranhense é um convicto criador, sem concessões ao fácil e ao midiático em sua poesia. Uma das grandes razões para sua obra não seja vastamente conhecida é o fato de que seus livros se encontram, em sua maioria, esgotados. As poucas antologias publicadas e, mais recentemente, a vigorosa Nau de Urano (2002) — com mais de 800 sonetos de sua obra —, têm sido responsáveis pelo pouco que se conhece de sua literatura entre os leitores brasileiros. Acompanhe agora a vigorosa entrevista concedida a Rascunho.
• Quais obras e autores, de sua permanente leitura, acreditas serem as principais influências diretas, que apontam para as grandes vertentes não apenas temáticas, mas estilísticas de tua poesia?
Por ser em parte um depoimento da verdadeira biografia do homem que a faz, como você diz ao perguntar não apenas sobre as influências diretas por mim sofridas na elaboração de uma hipotética Obra Poética, mas principalmente sobre as vertentes temáticas e estilísticas que a enformam e desvelam, creio ser mais importante, para aquilo a que você se propôs, rastrear as coordenadas psíquico-conteudísticas que me permeiam a simbiose homem-poeta (veja o poema O parto) nessa verdadeira busca pela palavra a revelar-se de uma forma que intento pessoal. E a forma, como você sabe, é o fim coeso e irredutível dessa busca que o homem, quando poeta, empreende como retorno visionário à sua própria, única e inalienável origem. Devo dizer-lhe assim, para início de conversa, que aquelas vertentes, caso sejam poemas aquilo com que sempre me vi e vejo vivendo na cotidianidade anômala e cinzenta da minha existência provinciana, deságuam, em forma poética, na pessoa que sou e as tenta viver e equacionar de maneira menos abjeta que a daquela vivida na constatação das minhas vísceras, para suprir uma falha ou fissura ontológica no fundo fraccionado do meu ser; para me situar nesse espaço sem fundo que sou e perceber o que perdi e sobra naquilo que ainda tenho ou mereço ter, de acordo com os cálculos das minhas probabilidades mínimas ou espaços maximamente reduzidos. Daí o serem, aquelas vertentes, uma queda ininterrupta no vácuo de meu espírito, uma abissal angústia existenciária buscando a forma real e única que me dê ao menos a possibilidade de vir à tona do verbo, a fim de desvelar-me além da hipotética aparência da minha vida, que é um mistério inapreendido e ainda inacabado como poesia. Poesia que só é poesia quando traz em si um segredo, como disse Ungaretti em entrevista concedida a Alfredo Bosi. Um segredo que, no meu caso, está encerrado no fundo inconsciente da minha “alma cerebral”, numa paisagem ambígua de trevas e luzes, com seus acontecimentos pretéritos talvez informuláveis pela palavra e que tento trazer, repito, à tona da minha visualidade de pura emoção verbal, como emoção pensada, conforme o célebre verso pessoano, e a revelar-se também através de seus correlatos objetivos, de acordo com a não menos célebre definição eliotiana. Sobre quais autores e obras se constituíram numa influência direta da minha poesia e da minha maneira de viver-lhe o apelo ou chamado existencial, no momento mais propício e exato para fazê-lo, posso sintetizá-los, numa soma por exclusão, em apenas três: Netotchka Nezvênova, de Dostoievski, Poesia e prosa, de Edgar Allan Poe e Morte em veneza, de Thomas Mann.
• Tua poesia apresenta, como toda grande poesia da lírica moderna desde Baudelaire, a característica apontada por Hugo Friedrich como dissonância, sobretudo imagética, possível de ser encontrada na maioria de teus poemas na forma de insólitos oxymorons. Em quais pontos concordas e em quais (se é que os há) discordas essencialmente desta visão? Acreditas estar vinculado a esta tradição da lírica moderna?
Minha poesia, como você diz, apresenta uma grande dissonância imagética, se vista sobretudo sobre o foco exaustivo dos seus oxymorons, como tópico às avessas do meu inerradável pasmo existencial. Minha lírica, versando sobre o escatológico no seu duplo sentido e com suas perquirições metafísicas, de abissal inquinação no âmbito até mesmo lingüístico do homem que a faz, está vinculada à tradição lírica moderna, transcendendo a simples compreensão de uma elementaridade vocabular simplesmente confessional (no seu termo mais amplo) para ater-se às culminâncias de um sistema lingüístico epistemologicamente interativo e em torno do qual giram, como estrelas (ainda que sujas), as galáxias de outros mundos e universos. O sentido dessa lírica desenreda um fio narrativo infenso a qualquer enredo fundado pela codificação mecanicista do fato consensual e público. Penhora do divino na catarse humanitária da dor, o poema lírico, como o vejo e faço, pertence a uma categoria inclassificável, além de qualquer dor comprometida simplesmente com o humano enquanto diminuição associativa do simples e estéril sentimento, pertencendo, pois, à categoria do salto teológico indispensável para que o eterno possa revelar-se, no plano humano, na sua condição de aposta feita também por um jogo a não abolir jamais o acaso. Assim, por ser uma arte anacorética, como a definiu Been, a lírica potencializa o incurso individualista no território indiviso de suas fronteiras, sem o arrimo de qualquer utopia de salvação coletiva capaz de validar-lhe — ou dele inferir — qualquer utilidade consentudinária com as estruturas sociais vigentes. Só, iniludivelmente só, diante do eu-próprio que lhe individualiza o ser, moldando-lhe os espaços, e dos seres que lhe emblematizam a objetividade duvidosa ainda que real dos outros seres, o lírico não pode constituir-se ou arrimar-se no simples apêndice supurado no corpo textual da natureza e do universo. “Sou um homem só/um só inferno”, nos ensina o verso sóbrio e dorido de Quasimodo.
• Em um primeiro contato com tua poesia, tem-se a tendência, profundamente relativa e mesmo equivocada, de tê-la como de difícil entendimento e até hermética. Isto me lembra a passagem em que Northrop Frye, o grande crítico americano, em sua obra Anatomia da crítica, particularmente na Introdução polêmica, assinala a preocupação que muitos poetas ou subliteratos têm em tornar suas obras comunicáveis, tentando assim facilitar, de modo expresso, o diálogo (como é possível medi-lo?) entre leitor e obra e, porventura, o autor. Contudo, Frye alerta que esta preocupação sempre traz consigo o risco de cairmos em níveis subliterários, tais como a prosa versificada ou simplesmente a fala métrica, destituída de qualquer poesia, entretanto largamente confundida com o fenômeno poético, como sucede atualmente, na poesia brasileira. Uma das conseqüências deste fenômeno é o fato de gerar-se uma panacéia crítica que culmina em falsas celebridades e, outra, o surgimento no meio literário, de acordo com Octavio Paz, de hábeis construtores de versos e artefatos literários, a exemplo dos árcades e parnasianos, mas não de legítimos poetas, aqueles que realmente teriam algo a dizer. Contudo, voltando ao primeiro ponto da questão, Baudelaire afirma que, quanto menos um poeta é compreendido, maior é sua glória. Como te posicionas diante deste quadro?
Sempre escrevi sabendo que um único verso traz consigo uma carga de experiências vivenciadas no âmbito dos acontecimentos e dos seres. Não estou evidentemente falando do poema como um produto do meio ou receptador somente das correntes migratórias levadas ou trazidas ao poema pela mais-valia ou menor-valor de um econômico temporal: todos sabemos que o radicalismo da maior hermeticidade pressupõe, em regiões mais fundas que a do simplório mais simples, a argamassa e as pulsões até mesmo de projetos políticos que ao poeta cabe testemunha e viver. Um poema de Paul Célan, por exemplo, chega por vezes (ou quase sempre?) a alcançar a dimensão mais abrangente de um fazer social: seu hermetismo, como já dito algumas vezes, faz-se através da negação e da negação da negação. Portanto, como dialética da própria existência humana. E se assim é, como não haverá o poeta medianamente culto de fazer-se pelo acúmulo existenciário do em-si vivido? Gostaria, pois, de dirimir alguns equívocos que a fazem ser vista como fruto apenas da história particular do homem que me individualiza psicologicamente, o que tem induzido algumas pessoas ao erro de vê-la como “metaforização hermética” de problemas insistentemente revoluteando em torno de um insondável e informulável centro. Nunca fui um poeta criptográfico, como já disseram alguns, pois o hermetismo jamais foi por mim cultivado como um contraponto à falha de um real não aceito ou resolvido existencialmente através de uma visão defeituosa e redutora das coisas, e nem tampouco para atingir, pelo acréscimo de enxertos obscuros, uma desejada supra-realidade sensível que poderia, à maneira de Rimbaud, implantar minhas talvez monstruosas verrugas no terreno árido do meu Parto ininterruptamente laborioso. É inegável que existe em mim uma imensa carga inconsciente de temas obsessivos e que tornar esse fundo obscuro em matéria objetiva a que o verbo insufla, como necessidade eu diria agônica, a forma particular do criador que lhe dá extensão e vida, é a tarefa maior e talvez impossível de quantos têm por fim, como eu, a realização final de um poema. Finalizando: pelo fato de minha poesia abordar certas zonas profundas de uma experiência particular, ela se reveste de uma radicalização metafórica a que falta por vezes a normatividade dos conceitos generalizantes. Embora não elitista, ela nunca chegará a ser compreendida verdadeiramente por muitos. O poeta que a faz e que a vive (ouso dizê-lo) é, não obstante, como tenho observado e sentido, apreciado ou mesmo amado por camadas significativas do nosso povo.
• Uma questão que intriga os teóricos da literatura são as forças que concorrem para o ato criador. Sabe-se que, desde o ensaio sobre o espírito da tragédia, de Nietzsche, o ato criador tem sido dividido em duas categorias: a apolínea e a dionisíaca. A visão do poeta apolíneo, mestre absoluto da engenharia poética, foi difundida pela modernidade desde a falência do mito do artista inspirado, possesso, porta-voz de forças misteriosas e, no lugar dele, surge o poeta que trava uma luta interna e eterna por transformar a matéria-prima da poesia, a linguagem, em obra de arte, cujo valor estético reside, talvez, em si mesma. Por outro lado, não se nega que a inspiração interfere de modo intrínseco, direta ou indiretamente, no ato criador. O que achas de tudo isto?
Fritz Teixeira de Salles, que tanta falta faz à crítica de poesia hoje feita no Brasil, tocou com certeira visão analítica o corpus aberto da minha matéria verbal, ao dizer, referindo-se ao meu livro A antibiótica nomenclatura do inferno (1977), que “sua (minha) poesia é uma encruzilhada de dois caminhos do mundo ocidental: o apolíneo (no seu classicismo formal e vigoroso) e o dionisíaco (no sentido existencial da tragédia). Nauro Machado oscila e vacila entre Homero e Arquíloco, os dois caminhos do ontem que fabricam o hoje. Com sua sensibilidade algo brutal, num erotismo selvagem de poderosa fluidez sintática, a poesia de Nauro Machado sofre na alegria do sexo e vive na dor de viver”. A título de informação, devo dizer-lhe que um dos livros que mais me influenciaram na minha longínqua juventude foi justamente A origem da tragédia proveniente do espírito da música, o que me levou a ler quase toda a obra de Nietzsche publicada em língua portuguesa, e que ponho ao lado da de Heidegger, filósofo-poeta que me entreabriu com seus insights o mais lato pasmo-pânico-existencial necessário à intuição majestática da vida como mistério. De fato: na conciliação desses dois extremos, o apolíneo e o dionisíaco, é que vivo minha existência de artista-homem dividido entre o cerebral (forma) e o instintivamente desmesurado e anômalo (conteúdo), tentando unir a metodologia poética de Poe à inspiração sem limites do espírito trágico que me impulsiona e fundamenta o ser dividido que sou. Mas a verdade é que nenhum consolo ou paz me arrima nesse percurso intuído e revelado através da nadificação do Ser pela linguagem como presença ontológica-sensorial do poema.
• O que achas que impede a larga difusão de tua obra a todos os recantos deste país? Por que aparentemente se ergue uma barreira de resistência e silêncio em torno dela? Ou esta barreira não existe, é apenas fruto de nossa incapacidade atávica ou crítica de julgar sem etnocentrismo ou preconceito?
Não creio sinceramente que haja qualquer impedimento à difusão da minha poesia no Brasil ou que exista tampouco algum propósito deliberado em fazê-la desconhecida do grande público, tornando-a vítima propiciatória de uma conspiração do silêncio. Não sei também se essa omissão é apenas fruto do que você chama de “incapacidade atávica ou crítica de julgar sem etnocentrismo ou preconceito”, levantando a suspeita de isso se verificar pela minha situação de insularidade nordestina, preso a uma ilha esquecida, e sem vocação nenhuma para a sociabilidade literária de grupo ou igreja. O certo é que ela, talvez também por minha exclusiva culpa, continua reduzida a um número limitado de leitores, ocupando um espaço geográfico a não extrapolar os estreitos limites de minha província natal. O que não me impede de ser conhecido pelos principais poetas brasileiros contemporâneos e daqueles críticos que respeito como insuspeitados homens de honorabilidade mental. Aliás, devo dizer-lhe que não tenho desejo algum em fazer-me chegar como poeta ao ominoso leitor-telespectador de hoje, ao qual oponho um irredutível nojo pessoal a não compactuar com a chacrinagem trumbiqueira de uma espúria comunicação humana. Vez por outra, para minha grande alegria ou forma de compensação humana, essa situação de silêncio é quebrada por alguma voz de além-mar, como a que recentemente me chegou através das palavras de Luciana Stegnano Pichio (autora do livro Storia della letteratura brasiliana), com o recente lançamento do meu livro Nau de Urano, uma antologia reunindo oitocentas e seis peças sonetísticas. Disse-me ela: “Sua poesia é áspera e bela, profunda e dorida. Corroborando Adonias Filho, eu diria: um dos grandes poetas brasileiros de todos os tempos”. Continuo, pois, cumprindo minha sina de solitário poeta maranhense, conforme a exata visão crítica que de mim teve José Guilherme Merquior.
• Há pessoas que classificam tua poesia como “assustadora” e “violenta demais”, apesar de “instigante”. Algumas, de sensibilidade mais dócil, recusam-se a lê-la. O que achas disto?
Seria de bom alvitre saber se essa pretensa violência da minha poesia possui uma força expressiva de valoração estética capaz de validar-lhe o produto final e em que contexto se move essa violência para uma possível aferição como obra artística. Sei que de fato a minha poesia é violenta, tanto em suas metáforas como no uso exagerado de seus vocábulos corporais, apresentando ainda um permanente e azedo clima de “guerra na Indochina/ e na alma também/ guerra na oliveira/ na empregada negra/ e no vira-lata/ que a criança acarinha/ com mão de granada”. Antônio Olinto, ainda nos idos de 1960, publicava na sua coluna Porta de Livraria, do jornal O Globo, um artigo intitulado A violência de uma poesia mansa, enfatizando que “de nenhum poeta sei no mundo de hoje que tenha violência mais autêntica que a desse maranhense chamado Nauro Machado, e que é para mim o ápice da poesia brasileira pós Jorge de Lima”. E em um comentário feito sobre a poesia brasileira no ano de 1972: “Há, em Nauro Machado, um satanismo que faz pensar no poeta inglês Francis Thompson e que produz, no maranhense de hoje, um tipo de poesia desesperada de que não temos outra igual”. E também a suave Henriqueta Lisboa, assim se expressou sobre ela: “O teor de sua poesia é de violência, tanto maior ao aproximar-se do plano metafísico, em angustiado perquirir a que a lógica não atende, pelo afã de captar o inefável através de uma linguagem sempre mais dura e amarga”. Sei também que a minha poesia tem uma violência de status metafísico, caso possa parodiar o Mesfistófeles do Fausto thommasmanniano ao dizer que a mediocridade não possui status teológico. Assim, no plano teológico da negação divina — se for isso possível — ou na vivência intuída como forma positiva do transcendente, sei que a violência poética, quando introvertida no homem que a pensa em versos ou que por reflexo social a vive e sofre no seu dia-a-dia, tem se constituído, ao longo dos séculos, como conteúdo temático e até mesmo de estilhaçamento estrutural do poema. Estou a lembrar-me agora do Paraíso perdido, de John Milton, na vociferação luciferina contra a violência divina que o expulsara de um plácido e perfeito Verbo, obrigando-o àquela miserabilidade imprecatória, fruto do orgulho, ao dizer que preferia ser o primeiro no inferno ao último nos céus. Estou a lembrar-me também daquele Dante luciferino, banido para sempre da sua Florença celestial, como já o fora na terra do amor sepulcral à sua Beatriz perdida. Este tópico, aparentemente supérfluo, é necessário explicar-lhe, ainda que de modo imperfeito, como nascem meus versos violentos na substância que lhes estrutura o ser fenomenológico como encarnação de um Verbo a ser visto e (a)palpado: esse Lúcifer miltoniano me influenciou também, ou até mais, quando transposto para um personagem cinematográfico tirado do romance O lobo do mar, escrito por Jack London, também ele um autor luciferino. Neste filme, o personagem Lobo Larsen, no caminho da completa cegueira, assim como Milton, quando escrevia seu Paraíso (duplamente perdido na terra em que viveu e nos olhos que lhe negaram vê-lo), cita aqueles versos como uma justificativa para assenhorear-se da sua maldade intrínseca, como atributo sonoro-estético da sua existência. Digo sonoro, por servir-me também da violência maldosa dos meus versos, tentando justificar-me, embora de maneira subalterna e inferior, através da minha poesia. Meus atos humanos diários se fazem pela imagem vivida e vívida da minha poesia. Já escrevi centenas de versos em salas cinematográficas, como aquele poema Reinado, que é o reino da minha principesca vida imaginária e onde poderia dizer, como nos versos de Lucy Teixeira (poetisa maranhense), que tanto admiro: “Sou o tirano da minha propriedade”. Naquele poema, digo logo no seu início: “Para viver noutro lugar/ e de fome indiferente/ é muito melhor ficar/ nos pobres subúrbios da mente”. Minha violência é mais à maneira sousandradina, de um Sousândrade inferior, é claro, mas vítima também de uma sociedade castradora, igual à daquela “sociedade celeste”, tipicamente miltoniana, contra a qual me ergo e volto também na violência contida dos meus versos.
• Harold Bloom acredita que a existência de um poeta forte (strong poet), segundo sua terminologia de fundo psicanalítico, deve-se sobretudo à superação dos modelos que o inspiraram, chegando mesmo a devorá-los, transfigurando-os, através deles, em outro. Supondo que exista, ou não exista, uma tradição anterior à tua obra, à qual ela se vincularia ou não, uma vez que não é de acreditar que, tendo-a ultrapassado, não podemos reconhecê-la mais no interior de teus versos? Que pensas disso?
Não creio que minha poesia tenha superado, como você diz, devorando-os mesmo, os vários modelos que a inspiraram, pois considero a tradição indispensável para o desenvolvimento de novos modelos culturais, como produto expressivo da civilização. Nunca procurei me enquadrar em nenhuma categoria gradual de poeta maior ou menor, mais forte ou mais fraco, dentro de conceitos que julgo dispensáveis e de nenhum significado para o ato particular de fazer poesia, assim como não creio que o poeta faça seu poema para encaixá-lo numa teoria adredemente preparada para recebê-lo. O poema, ao contrário do que disseram Poe, Valéry e alguns outros, não é uma fórmula matemática a ser resolvida friamente numa “psicologia da composição” à maneira cabralina de fazer versos como artefatos de uma produção exclusivamente mental, pois, embora podendo prever até mesmo a sua disposição final na página em branco enquanto o vai mentalizando como forma acolhedora de pensamentos expressivos pessoais, o poeta precisa daquelas emoções que são particularidades suas, a serem recriadas pelo homem-criador que as consiga viver para serem transferidas e mostradas no corpo imaterial, conquanto vivo, do poema.
• Em que medida a crítica literária contribui para que uma obra seja aceita ou não? Existe uma função para a crítica, ou ela é apenas uma arte de muletas, ou ainda, o marketing da obra de arte, porém, em muitos casos, descartável, porquanto atrasada e/ou equivocada? A poesia necessita da crítica literária? Se sim, de que forma?
A crítica, muitas vezes difícil, pode transformar-se num exercício de hermenêutica autotélica, divorciada da sua finalidade precípua, que é a de revelar o poema como um produto alheio, com suas características próprias e indivisas, e não de revelar, revelando-se, os conhecimentos idiossincráticos e às vezes anormais de quem dela se serve para obscurecer ainda mais o que em si já é muitas vezes fechado, por querer dar um “sentido mais alto às palavras da tribo”.
• Uma das coisas que impressionam em tua poesia é o fôlego, uma vez que já superas o número fantástico de mais de trinta livros de poemas publicados ao longo de tua vida, e com tanta qualidade. É impressionante. Prova de um apetite poético voraz, insaciável talvez, que deve elevá-lo, inevitavelmente, à condição de recordista de publicações na lírica de língua portuguesa, talvez universal. Queres publicar até o último de teus dias? Quantos livros inéditos de poemas ainda tens? Trabalhas em algum neste momento?
Minha lírica — com trinta e um títulos já publicados, sem incluir suas duas grandes antologias, a primeira delas com poemas reunidos sob a responsabilidade crítica de Nelly Novais Coelho, contendo quase quinhentas páginas, e a que foi lançada pela Editora Imago, em convênio com a Fundação Biblioteca Nacional e Universidade de Mogi das Cruzes, com aproximadamente quatrocentas páginas, além de uma outra bem menor, feita pela escritora-poeta Arlete Nogueira da Cruz, intitulada Jardim de infância, para uso dos universitários maranhenses — é realmente muito vasta, movendo-se no círculo de um compasso poético distendido anormalmente, se visto sob a ótica redutora de alguns poetas de parca criatividade. Não vou citar, por redundante, os títulos de todos os livros que a compõem, limitando-me a relacionar os daqueles inéditos e que já se encontram à espera de alguma editora que os queira publicar: A rocha e a rosca, um único poema composto de cerca de mil e quinhentos versos em redondilha maior; Chumbo e rugas do trigésimo; Pão maligno com miolo de rosas; e um imenso poema, ainda em andamento e sem título definitivo, já tendo aproximadamente quatro mil versos, todos em decassílabos. Escrevo, sem dúvida, por uma necessidade de querer fazer-me presença viva para os outros, como uma forma pensante de existir e por saber que a poesia é, para mim, um caso de vida ou morte, como já disse alhures, e “não um simples pretexto para malabarismos vazios ou teoremas que digam respeito a um modismo falho e de autenticidade duvidosa”.
• Concordas com a visão adotada pela crítica especializada, segundo a qual tua obra se filia também ao esforço estetizante da geração de 45? Ou tua formação deve-se exclusivamente a um esforço pessoal, livre dos influxos temporais de uma geração ou de qualquer “ismo” de natureza estética? Acreditas que é possível transcender, de acordo com Octavio Paz, o estilo meramente histórico, projetando sua obra para além de sua época?
Apesar da minha leitura inicial e constante de Bocage e Camões, ainda nos meus treze anos de idade, seguida, logo após, de Antero de Quental, Raimundo Correia, Alphonsus de Guimaraens (e alguns outros), até chegar aos simbolistas franceses, quando incipientemente comecei a escrever por uma necessidade que era impulso compensatório para a perda física de meu pai, a purgar-se também através de uma pungente e auto-destrutiva solidão alcoólica, não posso, em sã consciência, dizer que a geração de 45 influenciou minha obra sonetística — principal vetor dos seus pressupostos formais-estéticos. Minha poesia, posterior à daqueles anos iniciais, fez-se influenciar, sobretudo, por paradoxal que seja, pela leitura apaixonada dos grandes romancistas mundiais, como Dostoievski, com sua angústia metafísica e dolorosa consciência do mal, e Thomas Mann, pelo seu incurso nos domínios sombrios da morte e da arte. Minha poesia, seus sonetos que o digam, foge por completo aos cânones daquela geração, que reputo contudo importante pela expressividade de alguns nomes que a compõem.
• Há em tua obra uma quantidade notável de poemas sumulares, de métrica curta. Alguns, curtíssimos. Chegaste mesmo a publicar um livro apenas de pequenos poemas (Funil do ser), no qual expressas a síntese poética em sua expressão lapidar. Isto chega a lembrar, sem sugerir influência ou algo similar, a obra de Emily Dickinson, evidentemente com distinções temáticas e vocabulares pontuais e díspares. Acreditas que, no futuro, farão uma aproximação desta parte de tua obra com a da grande poetisa americana, ou esta aproximação não é válida? Em qualquer resposta, por quê?
Forma de uma técnica redutora a visar, no entanto, a largueza sonora de um pensamento a não se exaurir no verso, encapsulando o instante como um flagrante da eternidade, a forma do poema curto, excetuando-se a do soneto, é a que mais me atrai e obsessiona no meu continuum ofício existencial. Há alguns anos, Frederick Williams, autor do livro Sousândrade: vida e obra, tese de doutoramento defendida em universidade norte-americana, escreveu-me dizendo do seu interesse em verter para o inglês, num único volume, todos os meus poemas curtos até então vindos a lume. Ele os relacionou para mim, classificando-os de acordo com o número de suas estrofes, que se reduzem às vezes a apenas um verso. Depois dessa carta, fiz publicar o livro Funil do ser (1995), que apresenta também a particularidade de em suas 126 peças não mostrar uma única rima. Estou também, no momento, como disse acima, concluindo um novo livro (já está pronto) exclusivamente de poemas curtos. Creio que, com ele, dou um passo adiante na minha maneira de realizar esse “afunilamento” formal e existencial, como introjeção metafísica de uma dor sonora na sua inseparabilidade entre forma e conteúdo. Quanto à aproximação, em nível de linguagem, influência ou algo similar com a lírica de Emily Dickinson, o que para mim seria honroso, ela praticamente inexiste, exceto pelo fato biográfico de aquela poeta haver vivido como reclusa em sua cidade natal e de eu cumprir na minha ainda provinciana São Luís um destino solitário, conquanto de menor, muito menor grandeza em todos os seus níveis.
• Como a perda de teu pai impulsionou-te à poesia? Ou este impulso já existia, independentemente de qualquer perda? Como surgiram os teus primeiros poemas? Já ensaiavas versos quando criança, ou esta vocação confirmou-se após uma infinidade de leituras?
Se o que existe na feitura do poema é um encontro como aquilo ou aquelas coisas que estão latentes e como que incluídas já na sua própria busca, e como “falhei de tudo o pouco que ainda pude”, sempre associei o impulso poético à perda que lhe acompanha o ilusório ganho textual. E se o poeta é também um “fingidor”, aí me incluindo por exclusão de outras máscaras, minha poesia começou pelo entendimento de que a ela competiria a vida, o que é falso, por habitá-la o silêncio de uma inabitável solidão. Acredito por vezes, e não como certeza, que a perda física de meu pai fez aflorar o impulso poético que em mim já existia latente, antes daquela dor que me fez órfão para sempre do que em mim — sobrevivendo em mim — eu posso até hoje sou.
• Meses atrás, o poeta Alexei Bueno — com o qual manténs, fora o rigor extremamente clássico, algumas afinidades líricas — iniciou uma polêmica muito produtiva e interessante sobre a predominância de uma determinada mentalidade literária que tem prejudicado a devida apreciação de obras de poetas como você, aos quais Bueno se soma e solidariza. Acreditas que estamos diante de uma diatribe importante, diante do quadro lírico que a literatura apresenta hoje?
Alexei Bueno, pelo que me tem chegado por via indireta, visto eu não ler, pois aqui não chegam os jornais em que ele vem travando uma polêmica contra alguns corifeus da poesia brasileira contemporânea, fez-se arauto de uma poesia na qual eu gostaria de me incluir, por exclusão deliberada e consciente de um grupo que tomou conta de todos os espaços divulgatórios existentes, graças ao poder dos círculos acadêmicos que lhes respaldam os anêmicos e inconsistentes poemas. Aliás, Pedro Lyra, autor da antologia intitulada Sincretismo: geração 60, foi combatido pelos chanssoniers que nela não foram incluídos, e a quem ele depois fulminou em dois artigos, se me não engano, publicados neste Suplemento Literário.
• Acreditas que, se não morasses em São Luís, a tua obra não seria a mesma? As admoestações que viveste na capital maranhense contribuíram de modo significativo para a construção de teus principais temas?
Costumo dizer que sou um poeta do tempo das diligências, onde as coisas são lentas e os espaços reduzidos mais imensos, se vistos pelas lentes da interioridade. E é nesse miolo interior, à semelhança de um funil onde desemboca meu ser, que venho, numa relação permanente de amor-ódio, reconstruindo em quase todos os meus poemas, de maneira transfigurada, as ruínas dos objetos e das coisas, das lembranças provincianas, dos sobrados decadentes e/ou arruinados, com sua atmosfera de mazelas físicas e espirituais, com seus becos tortuosos e a disformidade anômala de seus mendigos, tudo que está parado ou se move nessa minha cidade-berço, onde os mortos é que estão nascendo e os vivos apodrecem reais e como póstumos. Não canto a cidade de São Luís à maneira sentimental-escatológica de um Gullar, do modo ufânico-lírico como o fez Tribuzi, ou de forma irônica e mordaz, embora de grande incurso fenomenológico na sua temporalidade de grande beleza histórica, como José Chagas o faz. Tenho um livro inteiro, lido apenas por pouquíssimas pessoas, que demonstra essa minha relação sadomasoquista com a Ilha que é vista por mim, até mesmo em suas noites, como uma lamparina na aurora. Escrevo meus versos, vivendo em São Luís na sua máscara-esfíngica de mãe carrasca ou musa sublime. A verdade é que venho tecendo, livro após livro, a biografia metafísica de uma épica às avessas, infernalizada dentro, por um poeta ancorado sem qualquer laivo de grandeza entre as muralhas de uma Tróia provinciana. Uma Tróia a invadir minha obra inteira, fazendo-se presença física obrigatória e pertinaz, amalgamada pela metaforização transfiguradora de seus espaços e da sua história temporal. Minha poesia, para quem se dê ao trabalho de rastrear-lhe as influências formais/conteudísticas, está impregnada até mesmo pelas anomalias deste espaço a estender-se sobretudo entre os rios Anil e Bacanga e cujo coração se faz sentir e bater na Praia Grande. Se não cheguei ao extremo de estender as mãos para pedir esmola “na mesma língua em que a pediu Camões”, conforme o célebre verso junqueirano, com certeza tenho estendido alguns dedos. E dedos sem anéis, acostumados apenas e algumas vezes à imprecação do dedo médio, naquela maneira blasfematória de quem por Dante foi jogado nos últimos círculos do inferno. Posso tranqüilamente dizer-lhe que conheço e vivi os versos do meu poema Ofício, cujo título original era Fundação SESP. Mas a verdade é que de alguns anos para cá, sobretudo a partir do governo da minha querida amiga, senadora Roseana Sarney Murad, ganhei o reconhecimento oficial dos meus conterrâneos, sendo até mesmo nome de praça e tema da Escola de Samba Turma do Quinto, que ganhou o carnaval de São Luís no ano passado, com um enredo baseado em minha vida e poesia.
• Desejando ser útil aos leitores e poetas neófitos, lembro-me que, há anos, mais de quinze, recebi um conselho seu de natureza literária. Disseste, naquela ocasião, isto: “Leia muito. Escreva muito. Pesquise muito”. O que dirias aos que têm pretensões de ser poetas, conhecer as leis que regem esta arte da palavra, no intuito de se tornar donos de uma grande obra, como a tua?
Diria novamente o que você, com a generosidade que lhe é própria, chamou de conselho de natureza literária, acrescentando apenas, àquela tríplice súmula, com a experiência de quem chega quase ao final do seu malogrado projeto poético, para esse futuro e hipotético poeta jamais procurar ver-se no espelho dos outros, aceitando com humildade o seu próprio e intransferível rosto e a subseqüente solidão que lhe advirá com a certeza de que a poesia, desde que imagem sua, reflexo somente do seu rosto, ainda que disforme, é uma presença mais viva e necessária, porque verdadeira, do que o seu próprio corpo. Veja, poeta: eu faço parte de uma geração maranhense que já ultrapassou a metade de seu tempo de vida e que ainda continua escrevendo como única e possível maneira de testemunhar seu tempo e suas individualidades. Chagas faz uma poesia diferente da de Gullar, que faz uma poesia diferente da de Tribuzi, que fez uma poesia diferente da dos dois, que fizeram e fazem uma poesia diferente da minha, que a faço diferente da deles três. Pois, como disse e. e. cummings: “O país estritamente ilimitável de cada artista é ele mesmo. Um artista que trai esse país se suicidou; e nem mesmo um bom advogado conseguirá matar esse morto. Mas um ser humano que é fiel a si mesmo — qualquer que seja esse si mesmo — é imortal. E todas as bombas atômicas de todos os anti-artistas do espaço-tempo não civilizarão jamais a imortalidade”.
Obras de Nauro Machado
Campo sem base 1958
O exercício do Caos 1961
Do frustrado órfico 1963
Segunda comunhão 1964
Ouro noturno 1965
Zoologia da alma 1966
Necessidade do divino 1967
Noite ambulatória 1969
Do eterno indeferido 1971
Décimo divisor comum 1972
Testamento provincial 1973
A vigésima jaula 1974
Os parreirais de Deus 1975
Os órgãos apocalípticos 1976
A antibiótica nomenclatura do inferno 1977
As órbitas da água 1978
Masmorra didática 1979
Antologia poética 1980
O calcanhar do humano 1981
O cavalo de Tróia 1982
O signo das tetas 1984
Apicerum da clausura 1985
Opus da agonia 1986
O anafilático desespero da esperança 1987
A rosa blindada 1989
Mar abstêmio 1991
Lamparina da aurora 1992
Funil do ser 1995
A travessia do Ródano 1997
Antologia poética 1998
Túnica de Ecos 1999
Jardim de infância 2000
Nau de Urano 2002
A rocha e a rosca 2003