Marina Colasanti, ao lançar o livro Fino sangue, define-se como uma “franciscana”. Quer fazer uma “poesia descalça”, algo que não peque pelo excesso de palavras ou pela falta de objetividades. Nesta entrevista a Álvaro Alves de Faria, Marina também expõe suas opiniões sobre o que se convencionou chamar de literatura e poesia femininas; fala sobre a força mítica e sedutora dos contos de fada; e lamenta que o Brasil, apesar de laurear tantos de seus “poetas vitoriosos”, não acredite realmente na poesia como “fala nobre de uma nação”.
Você é uma escritora de ensaios, contos, literatura para a infância, e atua em vários gêneros, inclusive a pintura. Quem é a mulher poeta de Fino sangue?
É a mesma dos ensaios, das crônicas, dos contos. E também a mesma da pintura, dos desenhos. A mesma, mas em outro espaço criativo. A mesma, mas com outra entonação de voz. Trabalhar em vários gêneros não tem para mim um sentido de fragmentação, como poderia parecer. Pelo contrário. Uso gêneros diferentes, justamente porque cada um me permite um tipo de penetração, uma outra entrada em temas e inquietações que são o eixo do meu trabalho. E é com essa multiplicidade que me iludo. Tudo nesse fazer são ilusões de obter uma maior unidade. Tentei tornar isso explícito no livro Um espinho de marfim, coletânea em que juntei/misturei gêneros diferentes em narrativas de algum modo interligadas. Mas não incluí a poesia. A poesia tem caminhos próprios. A mulher poeta de Fino sangue é franciscana. Quer fazer poesia descalça, uma poesia que, sem jogos de luzes, sem volteios, com o mínimo de palavras e o máximo de objetividade, tenta dizer umas tantas coisas a respeito da vida. Não sou inocente, sei que o franciscanismo é também uma forma de pretensão. Para usar o mínimo e chegar a algum lugar é necessário ser exato. E despir-se de qualquer excesso pode equivaler a dizer: “Não preciso de tanto, uma agulha me basta”. Mas não estou falando de resultados, estou falando de projeto, do rumo que escolhi para mim. E é bem provável que qualquer rumo que a gente acredite escolher tenha sido escolhido em nós muito antes.
Existe poesia feminina no Brasil? A pergunta é inevitável diante deste belo livro, uma linguagem poética que é uma profunda viagem pela sensibilidade. Especialmente num momento em que a ordem parece primar pela brutalidade.
Há muito existe. Mas é claro que ao calar-se a voz social da mulher, calou-se também, grandemente, sua voz poética. E havia impedimentos, temas que as mulheres não eram autorizadas a abordar, palavras que não podiam fazer parte do seu vocabulário. Um homem poeta, casado que fosse, sempre esteve autorizado a falar livremente de formas femininas, de amores, de peles alabastrinas. Tudo era tributado às musas, à fêmea lírica, uma espécie de amante do eu lírico. Mas à poeta casada certamente não cabia o macho lírico. E nem podia a solteira expandir plenamente o seu eu erótico, sob risco de rejeição social. Hoje, quando elas já conquistaram sua voz, estão falando com uma objetividade que parece surpreender quem sempre esperou ouvir delas apenas trinadinhos de pássaro.
Lya Luft discorreu sobre esse assunto numa longa entrevista, reproduzida em meu livro Palavra de mulher. Ela não gosta dessa comparação de homem e mulher na literatura. Observou: “Não existe isso de homem com escritura vigorosa, enquanto as mulheres se perdem na doçura. Eu quero escrever com o vigor de uma mulher. Não me interessa escrever como homem”. Como é que você vê essa questão?
A comparação entre homens e mulheres na literatura é inevitável, uma vez que ainda existe em todos os outros campos. O que certamente incomoda Lya é que essa comparação seja feita a partir de estereótipos, como a força dos homens e a delicadeza das mulheres. Mas esse tema é sempre complicado, porque envolve questões sociais e econômicas. Em última análise, está ligado à luta pelo poder no sistema literário. Tratei dele em um artigo do livro Fragatas para terras distantes, intitulado justamente Porque nos perguntam se existimos. Por coincidência, trata-se de uma palestra que fiz em um seminário na Universidade de Illinois, do qual Lya também participou. A mim o que incomoda é que, ao questionar a existência de uma literatura feminina, a sociedade está, na verdade, pondo em dúvida a sua validade, está desqualificando toda a produção literária das mulheres, está dizendo que as mulheres não têm voz própria — pois que valor pode ter uma produção macaqueada dos homens? E me incomoda também quando, tentando contornar a questão ou esquivar-se dos preconceitos, algumas mulheres respondem que em literatura não existe diferença entre homem e mulher, que literatura não tem sexo ou gênero. Logo na arte da palavra, aquela que exige nomear os sentimentos, que vive do olhar pessoal sobre o mundo, homens e mulheres seriam iguais? A sensibilidade de um igualzinha à sensibilidade do outro, o olhar, a vivência corporal, a experiência erótica, tudo igual. Que surpreendente! A ciência nos diz que somos diferentes na fala, diferentes na leitura, diferentes na utilização dos lobos cerebrais, diferentes na expressão dos sentimentos. Mas ainda há quem pretenda que sejamos iguais justamente na arte que traduz tudo isso em palavra escrita. Masculino e feminino diferenciam-se em literatura como em tudo o mais. Mas o direito a uma voz própria, livre dos modelos que nos haviam sido impostos, é historicamente recente.
Num poema de Fino sangue — Pontos de vista —, você diz que olha melhor o mundo através das palavras. Que palavra é essa?
Olho melhor o mundo quando o elaboro através das palavras. A verbalização nos ajuda a ver mais claramente. Como bem sabia Freud. E é provável que eu seja viciada em palavras. Além de ler e trabalhar com palavras o dia inteiro, penso com palavras, ou seja, penso consciente das palavras que compõem o pensamento, escolhendo-as como se as escrevesse. E falo muito sozinha. Falar sozinho é ótimo, ensaiam-se situações, armam-se diálogos espetaculares e ousadíssimos, pontuam-se os fatos. Louco não é quem fala sozinho, é quem nunca fala sozinho, quem não quer ouvir em voz alta seu próprio pensar, quem guarda tudo trancado atrás dos dentes, não ensaia, não treina, e depois se atira na fala com o outro de supetão, despreparado. O mais curioso é que quando falo sozinha, geralmente falo em italiano. É até hoje a língua da minha intimidade, a minha língua mais pessoal, anímica.
Em tantos gêneros literários que você escreve, qual o que lhe agrada mais? Onde a poesia entra nisso?
Todos me agradam e preciso de todos, porque cada um tem sua função na construção da minha vida. Não fosse assim, deixaria um ou outro de lado. Mas minha alma de jornalista me liga no real, enquanto minha alma de narradora foge do realismo, e preciso exercer meu pensamento lógico com a mesma intensidade com que preciso escrever contos de fada. Trabalho com os opostos, abrindo um espaço para cada um, e eles se dão muito bem, obrigada, se completam, e me completam. De tudo o que faço e que preciso fazer, porém, os contos de fada e a poesia são o que mais me seduz. Porque são os mais especiais, os mais exigentes, os mais tremendamente difíceis. São também dois gêneros que andam muito próximos, pois ambos jorram do inconsciente, ambos constituem um discurso metafórico do qual muitas vezes o próprio autor só controla uma parte. A diferença é que a poesia precisa do suporte da razão, é arte de pensamento, cosa mentale. Com a poesia estou tentando dizer algo específico, usando uma linguagem por vezes cifrada para alcançar coisas profundas que lutam para continuar na penumbra. Mas tenho uma meta, um ponto ao qual quero chegar desde o início. Já os contos de fada, ao contrário de todos os outros gêneros literários, prescindem da razão. São narrativas geradas exclusivamente pelo sentimento — eu diria pelo inconsciente —, nas quais tanto mais acredito quanto mais me surpreendem. Não estou falando de continhos com fadas e bruxas, coisas para criancinhas, estou falando de narrativas de fundo mítico, intensas e sedutoras para qualquer idade. Quando as escrevo, não saio em busca de mensagens, visão crítica do mundo, desmontes ou construções ideológicas. Sou a humilde ouvinte de uma história que é contada em mim, que uma parte mais profunda de mim me conta. E agradeço aos deuses que me seja permitido escrevê-la.
Hoje são tantas as mazelas e as angústias que tornou-se difícil respirar. Isso atinge também a literatura e a poesia. Ser poeta é quase um ato de loucura. Há ainda lugar para a poesia?
É quando fica difícil respirar que a poesia se torna mais necessária, e o poeta perde sua aura de loucura para tornar-se um emissário, voz audível do coletivo que não consegue se expressar. O poeta fala justamente para tentar um outro tipo de diálogo lá onde não encontramos resposta às nossas inquietações. Talvez por isso se esboce agora, no Brasil, um revigorar da poesia, da poesia falada, plural. Na paz, na plenitude, desejos todos satisfeitos, aí, sim, é que moer-se em sofrimentos poéticos pode parecer loucura. Sempre haverá lugar para a poesia, ainda que as dimensões desse lugar variem de sociedade para sociedade, de um momento histórico ao outro. Sendo a poesia uma manifestação vital do ser humano, não vejo como acabaria antes dele acabar.
A poesia é levada a sério no Brasil?
O que significa ser levado a sério, no Brasil? Qual a nossa medida de “levado a sério”? O Brasil reverencia seus poetas depois que eles estão prontos, depois que venceram sozinhos todas as dificuldades, que conseguiram se impor. Mas não cria condições favoráveis ao seu trabalho, não dá suporte ao mercado de livros de poesia, não valoriza o estudo da poesia nas escolas, não estimula os jovens poetas, e pouco espaço abre para a poesia na mídia. O Brasil louva seus poetas vitoriosos, mas não acredita, de fato, que a poesia seja a fala nobre de uma nação. No Brasil, o poeta que consegue se afirmar é um sobrevivente, um lutador, um obstinado. E ponha isso tudo também no feminino.
Como começou sua trajetória na poesia? Como foi esse caminho desde Eu sozinha, de 1968, até agora?
Sempre fui uma grande leitora de poesia, desde muito jovem, desde menina. Primeiro em italiano; depois em francês — porque meu pai, que era um amante de poesia, apresentou-me a Paul Éluard e foi logo um caso de paixão —; e, por fim, em português, quando descobri Bandeira e Drummond. Mais tarde, talvez até mesmo conduzida pelo amor poético, me enamorei de um poeta, casei com ele, e levamos a poesia para morar conosco. Mas aí ela já tinha dono, eu delegava, não ousava me expor ou não me sentia pronta. A infiltrava, sempre a infiltrei, na prosa, ensaiava o namoro, disfarçava, mas não me sentia com ímpeto nem segurança para encará-la de frente. Precisei de muito ensaio secreto, secreto até para mim mesma. Mas chegou o momento em que ela me chamou com mais força, e eu atendi.