Para escrever sobre Neide Archanjo será sempre necessário utilizar a linguagem de poesia. Não pode ser diferente. A exemplo de outros poetas da Geração 60, Neide Archanjo também está lançando sua obra poética reunida, Todas as horas e antes. Um belo livro de poemas em que Neide revela sua trajetória sempre dedicada e honesta. Livros assim mostram que a poesia está viva, apesar do que ocorre no país tropical de tantas festividades e mediocridades medonhas.
E tudo amparado por uma mídia que se diz cultural neste país de tantas mentiras. E haja mentira, quando o assunto é literatura. O poeta José Nêumanne Pinto faz a apresentação do livro, citando um verso de Neide: “Contigo emergem a lucidez e o alumbramento”. Explica: “… esta pequena jóia literária resume em começo, meio e fim não apenas a trajetória de Sor Juana Inês de la Cruz, mas também a da própria autora”. Está certo. A poesia de Neide Archanjo é luminosa, desse brilho quase impossível de se encontrar no mundo de escombros em que todos vivemos. O volume começa com o inédito Todas as horas e vai voltando para Epifanias (1999), Pequeno oratório do poeta para o anjo (1997), Tudo é sempre agora (1994), As marinhas (1984), Escavações (1980), Quixote, tango e foxtrote (1975), Poesia na praça (1970), O poeta itinerante (1968) e Primeiros ofícios da memória (1964).
No poema Loa a Inés, do livro inédito, Neide escreve: “A poesia amanheceu certeira/ nos cômodos/ que uma luz risível atravessava/ flecha preciosa, tangendo a escrita/ beleza e maestria/ completas”. Essa é a linguagem do poema e a linguagem necessária para situar Neide Archanjo na poesia brasileira contemporânea como uma de suas vozes mais importantes. “Algumas coisas vivem/ debaixo da nossa pele/ que não conhecemos/ …/ Sentimos o lastro/ de todas elas:/ desenho que atravessa/ a pele e a carne/ de certas horas pequenas/ em que fomos felizes”, diz ela em outro poema, sem revelar seus mistérios que vivem cada vez mais intensos dentro dela, desde a paixão até a possível respiração para viver. “Chamo Rilke ou Pessoa/ posto que estou derivando/ à toa./ Ninguém me acode/ nestes versos/ onde uma paixão/ me amaldiçoa./ Dela resta uma coisa dura/ que o tempo perpetua”. No livro Tudo é sempre agora, ela diz que “a fome do poeta/ é a fome do mundo”. Acrescenta: “E dói a fome/ e dói o mundo/ ainda que sob os céus/ dobrem os sinos:/ Camões/ Donne Rimbaud/ Eliot Pound/ Pavese Kavafis/ Rilke Lorca Pessoa/ poesia convertendo/ esta carne esta alma/ em relâmpagos!”. Outra sinalização dessa poesia que enobrece a poesia: “Poesia/ grão amargo/ entre meus dentes”.
A paisagem poética de Neide Archanjo é densa. Uma poeta que há 40 anos semeia a possibilidade do verso, do poema, de toda a poética, de toda a poesia feita sempre com o árduo trabalho dos que têm na poesia a própria vida, sem fugas, sem máscaras. É Neide por inteiro, mulher, pastora, a que ousa sonhar, a que realiza o sonho e a semente do poema, para que o poema e a poesia não morram, que possam viver nessa emoção de cada instante que se reinventa, os rumos das coisas, o necessário do momento, a palavra e a magia da palavra. Todas as horas e antes é isso tudo e muito mais que a alma não alcança, tal o brilho e a beleza.
Ao ver toda a sua obra poética produzida em 40 anos, qual é o sentimento, o que lhe vem à cabeça, à alma, ao pensamento? Você conseguiu realizar o que planejou?
O sentimento que me perpassa na comemoração desses 40 anos de poesia é o de dever cumprido, ou seja, ter sido fiel à minha vocação. Meu trabalho teve um planejamento muito sério. Depois de Escavações, percebi que havia conseguido realizar dois poemas longos de temática única: o Poeta itinerante — meu segundo livro — e Quixote, tango e foxtrote. Aí As marinhas se impuseram. Meu editor Pedro Paulo de Sena Madureira, na época na editora Salamandra, não acreditou que eu pudesse realizar um projeto de tal envergadura. Iniciei As marinhas com um mapa à minha frente, desenhado por meu irmão José Luís Archanjo, contendo o percurso da Odisséia, mas uma odisséia contemporânea. Por exemplo, as passagens sombrias, os episódios como os de Circe foram relatados no Cais da agonia (Nova York) e no País de Circe. Impressionante como a visão de Nova York foi apocalíptica e apesar de estarmos em 1982, dá para antever a peste da aids e o 11 de Setembro. Mas o grande salto para completar o poema foi a concessão de uma bolsa da Fundação Gulbenkian em Portugal, onde durante um ano fui poeta residente. Lá busquei raízes, retomei a fala e descobri que tipo de delírio teria levado um povo constituído de um milhão de pessoas apenas a unir-se a seu rei e partir para a descoberta da outra metade do mundo, para a junção definitiva do Oriente ao Ocidente, acarretando com isso uma revolução cultural, científica e geopolítica poderosíssima. Abri os olhos, os ouvidos, a boca e o coração e deixei os sentidos correrem frouxos, tensos, aglutinados e então Portugal surgiu inteiro diante de mim, do Minho ao Algarve, Alentejo, Beiras, Ribatejo, Restelo, Lisboa e, se mais terra houvera eu lá chegaria. Fui hóspede de Natália Correia e Maria Isabel Barreno, escritoras consagradas e grandes amigas. Retornei ao Brasil com a sensação de ter redescoberto o país, as pessoas, as coisas e a minha própria poesia. Nas Marinhas esse é o Canto III e foi chamado de Oceânico. Os livros que se seguiram foram: Antologia — Poesia de 1964-1984, com seleção e estudo crítico de Pedro Lyra; Tudo é sempre agora, Pequeno oratório do poeta para o anjo, com direito ao CD gravado por Maria Bethânia, declamando poemas do livro. Em 2003, o Anjo foi traduzido para o francês e lançado pela editora Eulina de Carvalho. Depois vieram o CD Neide Archanjo por Neide Archanjo pela gravadora Luzes da Cidade e Epifanias (prêmio de poesia da Associação Paulista de Críticos de Arte) e agora Todas as horas, que a editora A Girafa, leia-se novamente Pedro Paulo de Sena Madureira, resolveu publicar juntamente com toda minha poesia, em celebração aos meus quarenta anos de atividade literária, num só volume intitulado Todas as horas e antes. Publicar 500 páginas de poesia neste momento é uma grande ousadia, convenhamos.
Nós já conversamos muito sobre isso, mas quero que você me diga: você quer ser chamada de poeta ou poetisa? Por quê?
Esse papo é muito antigo. Não sou Cecília Meireles, mas sigo a mestra que proclamava: “não sou alegre nem triste, sou poeta”. Depois desta declaração, não há como escapar. Se você escreve e é publicada regularmente ou não; se você dá um sentido profissional a sua carreira; se a poesia é para você como queria Rilke, então você não é uma poetisa, você é uma poeta. Entretanto, prefiro ficar com Fernando Pessoa (sempre ele): “Há um poeta em mim que Deus me disse”. Procuro cumprir o meu destino de poeta e humildemente ouvir o que Deus me diz.
Existe poesia feminina no Brasil? Os poetas escrevem diferente das mulheres?
Existe uma poesia feminina no Brasil. Francisca Júlia, Cecília Meireles, Gilka Machado e a grande Hilda Hilst, com quem tive a oportunidade de conviver durante vários anos desde a minha estréia. Aliás, Primeiros ofícios da memória lhe é dedicado. Ela me apresentou a obra do grego Nikos Kazantizakis, por exemplo, e a poesia de Salvatore Quasimodo. Éramos discípulas de Neli Dutra figura antológica que ensinava alquimia, mitologia, literatura e secretas filosofias. Seus discípulos iam de Hilda e eu a Jô Soares e o costureiro Denner. Mas não sendo crítica literária nem professora de literatura, posso apenas perceber certas nuances e sutilezas femininas em versos escritos por mulheres. Leio o suficiente para saber quem das poetas vai ficar. Mas das minhas contemporâneas só o futuro dirá.
São 40 anos de poesia, um trabalho sempre levado a sério por você, uma luta de todos os dias em busca da palavra, do poema. Como é isso?
Sabe, é uma questão de obstinato rigore. É um exercício cotidiano. Embora eu não escreva todos os dias — Deus me livre disso —, vou caçando, armazenando os momentos para depois elaborá-los num futuro poema. Tenho um verso que diz: “Não se abandona a vida/ para se escrever o poema”. A vida é o poema. Gosto de caminhar, ver os amigos, tomar uns vinhos, conviver com as minhas três gatas (Clhoé, Yasmin e Beja), cuidar das plantas, trabalhar na Biblioteca Nacional, namorar, amar e viajar. É bom ter ilusões; apreciar a rotação do mundo; contemplar e nomear. Ter uns certos golpes de asas… Cito Leila Perrone Moisés: “O seixo participa de dois meios físicos: o mar e a praia. Na praia ele está em desordem e é opaco. O mar o arrasta, embala, sacode e lustra; o mar, sobretudo o faz luzir. O seixo seco na praia é a palavra em seu uso cotidiano e o mar é o texto do poema no qual a palavra se põe em movimento e brilha”. Então, o que resta ao poeta, é bater a palavra na forja da língua até que ela se transforme em epifania, isto é, claridade, revelação, aparição, emergência da verdade. Eu sempre tentei ser o meu poema vivo: lucidez e alumbramento, posto que a poesia é uma arte marcial, nela há recuos e avanços exatos. Ela é sabiamente zen.
O Brasil respeita seus poetas?
Acho que não. Em Portugal desde Camões com D. Sebastião, usa-se a expressão: “O rei vai ao poeta”. O poder ouve a poesia. Aqui é tão diferente. Só nos momentos de grande perda nacional como nas mortes de Tancredo Neves, Ayrton Sena e outros notáveis, as redes de TV, os jornais , a imprensa em geral, buscam os poetas e seus dizeres, Também nas datas-mídias (dia das mães, namorados, Natal, reveillon) algum publicitário coloca na mídia um verso, umas palavras poéticas. Também quando uma pessoa encontra um novo amor, corre para ler Vinicius, Drummond, Bandeira. João Cabral dizia mais ou menos isto: “A poesia é como um licor, é preciso degustá-la intensamente, devagar e comedidamente”. Nesta sociedade ávida, consumista, imediatista, quem sabe ou está interessado nisso?
Afinal, o que é ser poeta no Brasil?
Ser poeta no Brasil é publicar um livro e atirar suas pétalas (páginas) num profundo abismo e ficar esperando pelo eco. Os amigos compram; você consegue uma notinha nos jornais; entrevistas e críticas nos suplementos literários são dificílimas. A caminhada poética é grande e quase obscura. Depois de 40 anos de publicações bem-sucedidas, prêmios, entrevistas na mídia, teses sobre seu trabalho, você é um quase desconhecido. Quando apresentado fora de seu círculo social e mesmo literário, tem que repetidamente apresentar sua biografia. Mas vamos nos fazendo em fazendo a poesia. Note-se que esse desconhecimento, essa apatia não é privilégio do Brasil. Li que os ingleses desconhecem as obras literárias do seu país e que pesquisas provam que as frases de séries de TV são mais populares e famosas para eles do que trechos das obras de Shakespeare ou Oscar Wilde. Se isso está acontecendo na Inglaterra, imagine no Brasil.
Alguns dizem que a poesia é uma arte menor. Você concorda com isso?
Sem Dante o que seria da língua italiana; sem Shakespeare, da língua inglesa; sem Goethe ou Rilke, do alemão; sem Camões, do português; sem Guimarães Rosa, Jorge de Lima, Drummond, Castro Alves e tanto e tantos, o que seria do Brasil? Arte menor não existe, arte é arte. Só é preciso reconhecê-la. A língua, seja qual for, precisa da poesia para forjá-la.
Quem se interessa por poesia?
Quem se interessa por poesia é um público reduzidíssimo. Penso que não se pode contar nem mesmo com os próprios poetas. Quando sai um livro novo de um nome consagrado, as pessoas do meio literário e acadêmico, mais alguns amigos, compram. Entretanto, ler mesmo, poucos o fazem. Minha obra completa está sendo publicada, juntamente com um livro inédito Todas as horas. Você acha que alimento a esperança que alguém vai enfrentar todo aquele volume de poesia? O que espero é que num dia, diante de uma perda, ou da incerteza de um novo amor, ou mesmo diante de uma simples insônia, esse alguém abra uma página, leia um poema e se comova. Isso já basta. Penso que o leitor ocasional fará renascer o que escrevi. E se esse momento o fizer feliz e agasalhá-lo, o poema e eu teremos cumprido nossa missão.
Você sabe que o Brasil está repleto de coisas engraçadas, especialmente na área da literatura. Como tem gente engraçada na área da literatura… Chega a doer na alma. Você acha que uma poesia séria e honesta como a sua tem lugar nessa paisagem deprimente a que, em muitos casos, se transformou a poesia brasileira?
Hoje não há movimento de poesia pelo país. Há poetas esparsos e pequenos grupos dispersos, agora inseridos na internet, nos blogs e sites, onde circula uma poesia ávida por divulgação, poucas vezes razoável, outras engraçadas e quase desprezíveis. O momento é esse e há que reconhecê-lo. Mas nada tem tanta importância, porque se estamos caminhando para uma nova Idade Média, como prevêem alguns (é sério), esses textos ficarão adormecidos por muitos séculos, até que um novo Renascimento aconteça. E haja, desculpe, humildade para aceitar isso!
Nessa reunião de toda sua obra poética você fez muitas revisões? Você renegou algum poema ou mesmo algum livro?
Tive a alegria de reencontrar Pedro Paulo de Sena Madureira. Ele é o editor de minha poesia desde 1980, quando publicou Escavações pela editora Nova Fronteira. Apenas o lendário editor Massao Ohno, que publicou os meus Primeiros ofícios da memória em 1964, pode ser reconhecido ao seu lado como editor, no sentido pleno de ler, repassar o texto com o autor, apontar deficiências, sugerir, cortar, fazer o livro acontecer. Estive em outras grandes editoras, mas, editores, para mim, só Massao Ohno e Pedro Paulo de Sena Madureira. Daí que Pedro Paulo agora editor de A Girafa em São Paulo me convidar para publicar meu livro Todas as horas, mais minha poesia reunida — dez livros em um só volume — é uma ousadia. Todas as horas e antes reúne em suas 500 páginas toda a minha poesia anterior e novo livro. Nada foi cortado. Tive absoluta liberdade para isso. O livro será lançado em São Paulo, Rio, Salvador e em outras capitais. Estamos celebrando a poesia e 40 anos de trabalho. Agora é pedir que confiram. Isto é, que me leiam. Senão, daqui para frente só escreverei uns haicais, se evidentemente, tiver talento para isso.