Santos dejetam cinzas

O ensaísta e tradutor Contador Borges destaca-se cada vez mais como um dos bons poetas da literatura brasileira
Contador Borges, autor de “A cicatriz de Marilyn Monroe”
01/05/2003

O poeta Contador Borges (São Paulo,1954) é mais uma das grandes vozes subterrâneas da poesia brasileira que nos cabe desentranhar. Vem realizando um consistente trabalho como tradutor e ensaísta, onde se incluem tanto as criteriosas traduções de Nerval (1991) e René Char (1995), quanto a direção que assina da coleção Pérolas furiosas, da editora Iluminuras (São Paulo), dedicada à publicação de obras do Marquês de Sade, de que são exemplo os volumes Diálogo entre um padre e um moribundo e A filosofia na alcova — este último cuja nova edição acaba de sair. Contador Borges lança ainda este ano mais dois livros: a prosa poética de O reino da pele, e um volume de ensaios intitulado Um suplício chinês e outros estudos sobre Georges Bataille. Embora sua estréia na poesia tenha sido em 1997, com o sugestivo Angelolatria, o fato é que este é mais um dos nomes substanciosos da literatura brasileira a merecer uma melhor atenção.

• É já uma tradição da poesia brasileira o abismo entre vida e obra, o que acaba resultando em uma perda da credibilidade nos dois componentes de uma mesma instância. Como surge o poeta Contador Borges e de que maneira convives com essa ruptura?
Essa é uma das maiores falácias da literatura. Em parte porque quem escreve, necessariamente, o faz de dentro do universo das palavras, que num certo sentido dá mesmo a impressão de correr paralelo à vida, como se estivéssemos ouvindo o tempo todo um coração pulsar fora do corpo. Como se sabe, vivemos numa dimensão simbólica (esta, aliás, deveria estar incluída entre as outras dimensões). O símbolo está no cerne da vida. Através dele podemos sentir como a vida funciona, como ela gera seus prodígios. Do contrário, como se daria um milagre? Como seria possível o êxtase, o erotismo? Assim, fica difícil conceber a vida fora do símbolo, dentro das infinitas possibilidades de trato com esse material demasiado humano que as pessoas têm conforme suas diferentes formas de percepção. Posto isso, falar de literatura é necessariamente falar de vida, fazer poesia é um modo especial de exprimir a vida. A escrita é um fluxo vital que deriva de nossa experiência de vida. Eu diria até: a literatura é um de nossos fluxos vitais, um fluxo muito singular, não há dúvida, por ser híbrido, promíscuo. Nesse sentido, a poesia é um monstro de feição janusiana, lembrando que Jano, na mitologia, deus de duas faces, era o deus da passagem. A poesia é a nossa passagem para a vida, é uma porta aberta na dureza das coisas. Ela vive de sua ambivalência, metade luz, metade sombra, metade natureza, metade artifício, metade gente, metade coisa… vive na medida em que possibilita o trânsito de um lado a outro. Acho que o que escrevo busca de certa forma reforçar isso. Intuitivamente, no início; e, de uns tempos para cá, de modo mais consciente.

• Dentro dessa perspectiva iluminada por tuas palavras como situarias a afirmação de Antonio Medina Rodrigues, em comentário a teu Angelolatria (1997), de que “a forma é o futuro da poesia”?
Entendo que a partir do momento em que a poesia alça vôo para além das ideologias, dos modismos, das escolas, ela se compromete com uma certa moralidade que lhe é imanente. É a forma assumindo seus próprios valores até as últimas conseqüências. Como diz Medina, belamente, “a forma é o que faz a consumação da vida continuar sendo vida”. O futuro da poesia, creio, é esse momento a todo instante e em toda parte no qual sua força se revela a toda prova produzindo singularidades. O singular, como na natureza, assume várias qualidades, podendo ser frágil, violento, sutil, grandioso… Qualquer que seja sua orientação ele será sempre um acontecimento vital na linguagem. Na poesia, o singular é o eterno trânsito entre a vida e a morte.

• Estás de acordo com René Char quando diz que “a poesia se incorpora ao tempo e o absorve”? O que nos permite distinguir a absorção do tempo entre um poeta e outro?
A poesia, de certo modo, faz o tempo dobrar os joelhos. O tempo nos atravessa como uma estaca, mas também nos arrasta em seu rolo compressor. Se somos feitos de tempo como diz Octavio Paz, na esteira de Ser e tempo, de Heidegger a poesia é uma forma de diálogo com o tempo, uma forma de pensá-lo e até distendê-lo como matéria. Creio que quando escrevemos (ou lemos) afetamos nossa relação com o tempo. Você pode até olhar o relógio e dizer… Já? Mas o tempo de imersão num livro requer outra forma de medição. O tempo se desdobra numa página, se esconde numa dobra, se detém numa descrição de cena, num detalhe, como a parte feminina de um corpo reluzente em “Uns braços” de Machado de Assis. A propósito, no poema À une passante, de Baudelaire, quanto tempo leva a mulher para sair de cena? Eu perguntaria: será que ela realmente sai de cena, a cena imaginária do poema? O poeta descreve uma paixão súbita, fulgurante. Nesse ponto, nada é mais efêmero, ainda que intenso. Mas por mais que você leia o poema esperando que ela vá embora, que ela desapareça da sua frente, ela está sempre lá, nas entrelinhas do texto. A arte de escrever um poema também poderia ser descrita como um corpo-a-corpo com o tempo. Às vezes ele corre contra, às vezes a favor. E quando finalmente corre a favor, o que resulta, o poema, é em si mesmo uma vitória contra o tempo. O poema é o tempo que sobrevive a si mesmo. Quanto à segunda parte de sua questão, penso que a absorção do tempo numa determinada poesia, se isso é possível, depende da relação do poeta com sua escrita. Há poetas que exibem poemas grávidos de tempo, como René Char ou Jorge de Lima, e outros que parecem fugir do tempo ou evitá-lo, como Oswald de Andrade. Mas brevidade e/ou concisão não correspondem necessariamente à pouca concentração temporal. Muitas vezes uma eternidade pode estar contida num verso como este de Manoel de Barros: “Eu sou o medo da lucidez”. Ou nestes de Salvatore Quasimodo: “Nessuna cosa muore/ che in me non viva”. Assim poderíamos, quem sabe, se gostamos das especulações, estabelecer um critério para os poemas e sua absorção de tempo. Quanto mais fulgurante é um poema, maior deve ser sua carga temporal. Uma carga temporal, acredito, sujeita a raios e trovoadas.

• E onde nasce então o poeta Contador Borges? Há uma genealogia a ser considerada ou acaso rejeitas a identificação de pistas?
Não rejeito, não. Acho muito interessante vasculhar o chão histórico das pegadas, identificar linhas, afinidades, filiações. A rigor ninguém está livre disso. Picasso dizia que tirava dos outros tudo aquilo que lhe interessava, e que só tinha horror de copiar a si mesmo. Li uma entrevista do José Kozer em que ele diz quase a mesma coisa. Ou seja: o pessoal só nasce da intimidade com o alheio, terra ancestral do Outro. Todos os que de algum modo escrevem o fazem a partir de cruzamentos com outros autores, e, muitas vezes, impulsionados por eles. Há provavelmente uma matéria escura feita de traços de nossos fantasmas literários por trás de tudo o que escrevemos. Uma obra resulta de um processo de decantação dessa mistura efervescente, cujos elementos nem sempre podem ser identificados. Como se forja a sonoridade de um poeta? Será ele ao fim das contas dono de sua voz? A voz está para os poetas como a pele para o corpo. Poderíamos dizer que esta voz vai se tornando própria na medida em que o poeta vai apagando as marcas à sua volta, sem necessariamente esconder suas origens. Se a vocação de fato se confirma, haverá um momento em que esta voz terá de exprimir a singularidade do poeta. A voz é a forma que sua poesia adquire. Isto sem levar em conta que esta mesma voz pode ainda se modificar com o tempo, e até ser renegada. Então haverá outra, ou mais de uma, como no caso de Fernando Pessoa. A base química que produz a voz também se altera com o tempo. Outros reagentes interferem, mas fundamentalmente a substância é a mesma. Assim, a obra de um autor resulta de uma operação de “diferença” obtida não somente a partir do que leu, mas também a partir do modo como este material refluiu em sua vivência concreta. Acho que temos a tendência de ler para reforçar nossas afinidades. Estamos sempre em busca de “assonâncias familiares”. É como se déssemos continuidade ao trabalho de certos autores, à nossa maneira, é claro, e representássemos mais um eco nessa “concha maior” formada pelos autores de nossa predileção. Escrever é seguir de perto o halo de nossos fantasmas. Para onde vão? Para onde vamos? Eis o curso da literatura. O segredo do rio parece estar nas margens. A poesia que busco é um ideal nebuloso que se forma entre as linhas, mas que aos poucos vai sumindo de vista. Acho que o poeta Contador Borges nasce dessa insuficiência, entre a linha insinuante e a que esvanece.

• Acho que apagas bem as pistas (risos). Estava revendo tuas traduções de René Char e os ensaios sobre Georges Bataille que publicamos na Agulha, o que me recordou que Bataille, em seu Método de meditação, parte justamente de uma epígrafe de Char: “se o homem não fechasse soberanamente os olhos, acabaria por não ver o que valesse a pena ser visto”. O que crês que valha a pena ser visto?
Esta frase é mesmo ótima, reluzente em sua ambivalência. Para ver realmente o que vale a pena é necessário um afastamento em relação ao sentido utilitário das coisas. Não é desse movimento que nasce a arte? É a arte, a poesia, que nos ensina a ver melhor. É o sentido imanente de “fechar soberanamente os olhos”. Esse olhar que se fecha em sua escuridão luminosa fazendo “respirar” a visão, retirando-a de sua função normativa. Para mim, vale a pena ser visto justamente aquilo que se esconde, que não se presta ao olhar e aos usos utilitários da visão. O vão entre os raios de uma roda são mais importantes que os próprios raios como diz o poema de Lao Tse. O que faz o vaso de barro vaso é o vazio que tem dentro etc. O que interessa, nesse sentido, é uma aproximação com o invisível, entrar em seu horizonte de eventos, se posso tomar emprestado este termo da física contemporânea. “Natureza ama esconder-se” já dizia o célebre aforismo de Heráclito.

• Em um ensaio sobre Surrealismo chamas a atenção para um aspecto a ser ressaltado nas idéias defendidas por Breton & amigos, a de que “a literatura e a arte podem conservar em si mesmas um permanente desejo de revolução”. Contudo, a escrita automática acabou se tornando uma espécie de cavalo de batalha para toda rejeição ao Surrealismo. A argentina Olga Orozco refere-se à sua identificação com “a valorização do onírico, a emoção exaltada da liberdade, a justiça e o amor”, em seguida destacando: “mas nunca fiz automatismo nem poemas subconscientes”. Até que ponto se mesclam, neste caso, falha de interpretação e preconceito?
Muito dessa crítica e/ou preconceito se deve ao fato de que a “tal revolução” não vingou, tornando conseqüentemente o surrealismo um movimento datado. No entanto, o que a meu ver é definitivo nesta fórmula é que ela resume a função da literatura e das artes naquilo que considero essencial: a sinalização de um horizonte, de um rasgo de possibilidades imanentes ao homem, à cultura, à civilização. Se a escrita automática não resulta em todos os casos (ou definitivamente) das comportas abertas do sonho, do inconsciente, ao menos reforçou na literatura a idéia de que uma certa margem é sempre necessária à criação. As margens são tão necessárias à arte quanto os guetos às minorias discriminadas. Mas só na medida em que aos poucos serão abandonados para a livre vazão de seus fluxos, pois estas margens serão fatalmente incorporadas à cultura, às instituições e tornar-se-ão inoperantes. Cabe à arte instalar novas margens, pois é lá que sopram os ventos da utopia que impulsionam a existência e a vida. A arte, provavelmente, não tem o poder de transformar o mundo, mas pode materializar esteticamente esta possibilidade e difundir este ideal ao eco das gerações. Como diz René Char, “quem não vem ao mundo para perturbar não merece respeito nem paciência”. Provocar sim, incomodar e ousar além dos limites, acomodar-se jamais.

• Vamos agora a Bataille e a intrínseca relação que traça entre mal e literatura. Consideras acaso a tragédia — “memória do infortúnio”, como lhe chama o venezuelano José Antonio Ramos Sucre — uma arte superior? Segundo Ramos Sucre, “o mal introduz a surpresa, a inovação neste mundo rotineiro”, observando ainda que, sem ele, “chegaríamos à uniformidade, sucumbiríamos na idiotice”. Como relacionar esse entendimento do mal como o pai de toda beleza com a angelolatria que propões em teu livro homônimo?
Pois é, a literatura, como diz Bataille, “é essencial ou não é nada”. E ser essencial é fatalmente apelar às profundezas do homem, para além (ou aquém) de todo lirismo. O “mal” é essa dimensão que a civilização procurou varrer para debaixo do tapete em nome de um bem moral arquitetado em seu nome, isto é, em nome da ocultação dos poderes do homem. A poesia é a liberação de outros gastos excessivos análogos ao erotismo, ao riso, à morte. A poesia, segundo Bataille, leva ao mesmo ponto que o erotismo, ou seja: libera a “parte maldita” do homem, a sua verdade mais íntima. Nesse sentido, a grande poesia é a da negação. Uma poesia violenta como a de Rimbaud, por exemplo. É preciso violentar a língua para que ela reaprenda a exprimir docemente o sentido do homem. Essa violência é necessária, porque ela visa o sublime. O sublime é onde o homem estaria se não fosse o homem.

• Diz um poema teu: “A pele desta sombra/ tem o peso de uma chama/ alegre e lúcida/ em sinal de fúria”. Traças uma surpreendente aliança entre alegria e lucidez, que sugere uma outra, entre ciência e imaginário. Talvez seja verdade que as máscaras acabam protegendo o rosto vazio do autor. Como convives com essas alusões ou zonas de tensão?
Convivo muito bem. A poesia é uma arte de agenciamentos. Pode-se dizer que o romance é naturalmente o gênero de maior pluralidade discursiva, o texto dialógico etc. A poesia, entretanto, apela a outros discursos e seu temas de maneira mais íntima, como “música de câmara” que é. Acho que levar a “sonda” da poesia, seu “olhar invertido” de anamorfose para outros territórios é produtivo não apenas para a poesia como também para eles. O que seria da ciência sem as metáforas poéticas? Um físico certa vez disse que a matéria escura que preenche a maior parte do cosmo é como uma multidão de senhores invisíveis de smoking dançando com as belas damas brilhantes, as estrelas. Isto não é poesia? Da mesma forma, a poesia faz a “ciência” das coisas, isto é, faz as coisas falarem. Com a poesia, as coisas falam, as coisas sentem, e, assim fazendo, deixam de ser coisas. Tornam-se simplesmente (nobremente) seres de linguagem. A poesia, diz o filósofo Heidegger, é a casa do ser.

• Em teu novo livro chama a atenção a presença valiosa do poema em prosa, com raros antecedentes em nossa tradição poética. O que te levou a esse gênero de exceção?
O poema em prosa é a prova contundente de que a poesia não depende de seu tradicional gênero histórico de natureza versificada. Ela está além dos gêneros, ou melhor, entre os gêneros, uma vez que seu empenho todo é dar conta dessa “outra voz” de que fala Octavio Paz, a enunciação que o poeta amealha no embate interno da língua. A poesia, sim, se serve dos gêneros (prosa ou verso) para debelar-se. Ela não se reduz, portanto, a um gênero exclusivo, na medida em que um fluxo, um líquido não depende necessariamente de um único meio condutor, mas se espalha em várias direções e formas. O que é fantástico no poema em prosa, a meu ver, é que ele é uma espécie de exercício de “poesia nua”, se você quiser, uma poesia despida de seus tradicionais “calções de banho”, o verso ou a linha curta. Isso faz do mergulho um acontecimento estranho, onde o olhar parece perder-se num emaranhado que aos poucos vai fazendo sentido, revelando seus segredos de meandro, seus claro-escuros instigantes, a pura ambivalência. O poema em prosa é um texto plural, feito de enxertos de várias modalidades discursivas, todas ali, jogando um papel novo no palco da fabulação poética. O poema em prosa potencializa a poesia, é a liberdade da poesia. Acho que fui levado a ele pela leitura dos franceses, sobretudo, Char e Michaux, e também dos surrealistas. Foi uma grande satisfação para mim constatar depois que havia poetas brasileiros fazendo isso, como Claudio Willer e Roberto Piva, dois exímios praticantes desta arte. Hoje em dia vejo que este “gênero de exceção” encontrou novos cultores entre nós como Jorge Lucio de Campos, Juliano Garcia Pessanha, Carpinejar (uma verdadeira usina de metáforas) e você mesmo, é claro, com este livro que gosto muito, Cinzas do sol.

Floriano Martins
Rascunho