Sai o tradutor, fica o poeta

O poeta Marco Lucchesi, aos 37 anos, trabalha na tradução de Baudolino, de Humberto Eco, e, ao fim da empreitada, espera dedicar-se somente à poesia
01/06/2001

Por Jeferson de Souza e Rodrigo de Souza Leão

O poeta Marco Lucchesi, aos 37 anos, trabalha na tradução de Baudolino, de Humberto Eco, e, ao fim da empreitada, espera dedicar-se somente à poesia

• Uma antologia dá sempre a noção de balanço, revisão da obra. Não te causou estranhamento a proposta de lançar Poemas Reunidos aos 37 anos, apesar de possuir uma obra reconhecidamente madura?
No meu caso, jamais desejei que representasse uma revisão ou um acerto de contas. O fato é que eu precisava ver uma parte do meu rosto, e de minhas vísceras, e de meu coração, com uma clareza paradoxal, de que apenas o volume é capaz de iluminar de modo inclemente, belo e perverso. Foi a necessidade de um rosto. O processo, não o resultado. O risco, não o desenho. Como se buscasse um todo possível. A poesia é um acontecimento em minha vida. Primeiro, ao piano. Uma poesia silenciosa, em termos de palavras. Mas com o ímpeto de uma forma ao mesmo tempo nítida e obscura. Depois, camuflada em ensaios, cartas e traduções. Mais, então, o processo de autoconhecimento, o abismo do autoconhecimento (nosce te ipsum) irrompeu de maneira abissal. Era um homem à procura de um rosto. Uma poesia à procura de um poeta. Não havia então como não aceitar o convite para reunir não exatamente uma forma acabada, mas um opus alquímico, a mudança que tomou
conta de mim, que foi mais forte do que eu poderia supor ou desejar. Poesia
como Salvação. Poesia como forma de Conhecimento. Lembro de Limite, de Mário Peixoto, com seus vórtices, com sua deriva permanente. Trago meus vórtices e derivas…

• Como o crítico Marco Lucchesi avaliaria a própria trajetória literária? Quais os erros e acertos deste poeta?
O maior erro: não me admitir, durante tantos anos, como operário da poesia. Escravo e Senhor (em termos hegelianos). O maior acerto: não compreender a poesia não como quem segue a bula de remédio, olhando, temeroso, para as contra-indicações. Sempre busquei na arte uma atitude comunicativa, plenamente dialogante, sem exclusão de diferenças, ou de racismos intelectuais, diálogo com todos os tempos, como a máquina de Drummond, ou  Camões. Uma página de Platão e outra de Jorge de Lima. Guimarães Rosa e  Clarice Lispector. O poeta como leitor. Mas também o crítico como poeta. Igualmente aberto para o diálogo. Compreender a poesia em sentido mais amplo, não necessariamente preso a questões imediatamente segmentadas, exclusivas. A poesia não habita apenas o poema. O poema é uma parte
(ínfima, aliás) da poesia. Na semana passada olhei a noite escura com o meu telescópio (sou um astrônomo amador… aliás sou sempre e em tanta coisa amador) e acompanhei boquiaberto a beleza absurda da nebulosa de Órion. A matemática. As estrelas. A poesia. Se a crítica não tiver essa capacidade de admiração, essa paixão pelo que não sabe, deixa de ser uma aventura, passa a ser um exercício meramente burocrático, desprovido de sangue e de sonho. A crítica e a poesia formam a mesma atitude. Erram e acertam juntas. Mas, se for para cometer um erro, que seja grande, generoso, descomunal. Como é bela a nebulosa de Órion!!!

O fato de ser um erudito prejudica no sentido de uma forte autocrítica ao seu fazer poético?
Não sei o que sou. Mas cultura e terra se identificam Vejam o Raduan Nassar. Penso que a autocrítica não impede, a autocrítica auxilia. É preciso Ter um equilíbrio entre aquilo que impede e aquilo que auxilia. O conhecimento não impede, o que impede é não buscar o conhecimento, não estar tocado por uma sede incandescente de conhecimento e, portanto, ao contrário, conhecimento e poesia não podem estar longe um do outro. O que mata não e a autocrítica, mas a autopiedade. O desinteresse e mortal.

• Qual é a diferença de escrever poesia, algo tão subjetivo, em português, italiano e árabe? Existe um Marco Lucchesi em cada língua ou você vê uma unidade nesse material?
O italiano e o português nasceram comigo. A primeira língua em casa, do primeiro leite, do choro desesperado das crianças, do descobrimento do tempo e do espaço aconteceu em italiano. O português foi quando comecei a brincar na rua, sabor das frutas, e pitangas e cajueiros, e abacates. Mas ao escrever tentei sempre negar-me em italiano. Pensava em tantas coisas, que me afastavam de mim. Que realmente me exilavam de mim. Como negar dois lados que me formam, optando apenas por uma vertente? A poesia veio-me também na língua italiana (e a contragosto: pensava em Mário, no Modernismo). Compreendi depois que não seria um crime de lesa-pátria ou cultura. Praticar outras paisagens. O árabe (que nos Poemas reunidos podem ser lidos como se fossem desenhos, riscos, adornos) veio de uma necessidade, sobre a qual falo em meus livros, como Saudades do paraíso ou Os olhos do deserto, de atingir o outro e de trabalhar com uma língua áspera e bela, que condensa de maneira direta e exemplar frases e palavras. Mas entendo que a voz poética seja a mesma, presidida por esse meu piano interior, com minhas sonatas e sonatinas, que ouço dentro de mim e que procuro vesti-las de modo diverso. A mesma mulher com seus mistérios. O
mesmo Deus com seu mesmo rosto. O mesmo endereço dos Quanta, na física. Ou da escala microtonal da música indiana.

• Você é um poeta cosmopolita, poliglota, erudito… tantos predicados elevam seus textos à condição de alta literatura. Nesses termos, cabe uma preocupação do poeta em “popularizar”, ou melhor, em tornar sua obra acessível a um universo maior de leitores, já que poesia não vende?
A poesia tem uma pele, um sabor, um sentido, um aroma. Antes de tudo, ela se apresenta como um corpo. Nesta ou naquela condição. Autoconhecimento, de um lado. Revolução, de outro. Mas por que de um e de outro lado, se, como disse antes, é tudo uma atitude dramaticamente interligada? Erudito é também quem cultiva a terra. Ou o tocador de pífaros, que conheci em Cocorobo. Ou o romeiro do Padre Cícero. Buscar o diálogo é uma tarefa crucial, no Brasil de nosso tempo, não há dúvida alguma. Ouvi uns poetas do Tadjikistão, falando numa língua própria seus poemas. Não compreendi nada. Mas foi uma das grandes experiências de minha vida. Não entender é uma forma de entender. Era cultura popular. Eram poetas populares. Porque a cultura é eminentemente popular. O abismo no Brasil é porém de outra ordem. Ausência de bibliotecas nas escolas. Não acesso à plenitude cidadã. A poesia não vende? Pode ser verdade. Mas e o poeta, como poderá ser o que não é? Antes, falei de Maiakovski, mas veja-se o caso de Iessiênin, que forçou uma natureza que não lhe pertencia, e como teve de apressar o seu destino!!!

• Eco, Leopardi, Khliébnikov, Hölderlin…todos estes grandes nomes, cujas obras você traduziu formam o mosaico do que Marco Lucchesi é hoje. Claro que existe um catalisador intrínseco a quem se aventura, a quem topa esta empreitada literária. Na sua opinião o que “forma” um poeta?
Sua compreensão de que a poesia deve prescindir, se possível, do poeta.
Em outras palavras, o que forma o poeta, ou o escritor, deveria ser uma atenção maior com a diferença. Tirar-se do centro do mundo, como tantos lamentável e deploravelmente acreditam… A leitura de outras vozes colabora com a própria polifonia. E torna a mensagem mais original. Basta que a poesia saiba e possa abranger um equilíbrio de harmonias…

• Em Os olhos do deserto a opulência literária flui justamente deste e para este “personagem”: o deserto. Seria “a terra prometida” do teu escrever, um deserto povoado de achados literários?
Sim, e sim, e sim, e mais sim. O deserto… Com seus olhos. Suas tentações. Seus horizontes de fogo. Seus abandonos. A terra prometida feita de nada. De areia. Frio e calor. As estrelas de noite, com seus íntimos e secretos acenos. Eis a Terra Prometida. A coragem e o medo. Mas o risco. A tentativa. O itinerário. Sim, o deserto e a noite se combinam. Porque literatura e infinito se confundem. E a poesia é algo que nos precede. É algo que tentamos. É algo pelo qual chegamos à Terra desconhecida, à Pasárgada de todas as possibilidades…

• Bizâncio é o seu livro de estréia com poemas próprios. Nos diz Ivan Junqueira que não é bem uma estréia, já que você verteu para o português grandes poetas de diversas nacionalidades. Você considera que fez o caminho inverso, indo da tradução para seus próprios poemas? O que aproveitou de sua experiência como tradutor?
De fato, Bizâncio é, como bem disse Ivan, não um livro de estréia porque a poesia é minha forma fundamental, é o meu habitus primordial e que naturalmente ganhou em Bizâncio a sua autonomia. Fiquei feliz pois com ele fui finalista do Jabuti desse ano. Acaba agora mesmo de ser publicado e tendo uma repercussão acolhedora na Itália o livro Poesie, escrito na minha segunda língua, o italiano, e com alguns poemas em árabe, que é uma das minhas paixões viscerais: o Oriente, o mundo islâmico, o mundo judaico, o mundo semita como um todo de que nós, portugueses, brasileiros, mediterrânicos, descendemos. Da minha experiência de tradutor colhi diversas situações e, como cheguei a escrever num artigo que abre o livro O Teatro Alquímico, já não sei onde começo e tampouco onde termino, tal a minha necessidade de confundir a tradução com a criação. No entanto, não me considero um tradutor, mas alguém que na tradução tem buscado uma das formas de expressão mais intensas e genuínas. A leitura dos outros não me ameaça, bem ao contrário, me alimenta e assim deveria ser.

• Ainda em Bizâncio, vemos, no poema homônimo, uma opção pelo verso curto e de ritmo veloz… Poema que dá uma noção de movimento… de traveling. Por que esta opção?
Sim, o verso curto e veloz e o movimento me atraem de fato, mas Bizâncio não é tudo isso, Bizâncio também está marcado por poemas como os Sonetos, escritos à maneira antiga, à maneira da tradição, por assim dizer, provençal, que na Península Ibérica com as contribuições de Sá de Miranda e Camões se mantiveram até o século 16. No entanto, guardo poemas extremamente longos em que não busco o ritmo veloz, mas a essencialidade, o osso, a pedra.

• Quantos poetas fortes estão presentes na sua poesia? A angústia à moda de Harold Bloom está presente?
A angústia está sempre presente, antes e depois de Harold Bloom. Os poetas fortes que me pertencem são efetivamente aqueles que estão e não estão no Cânone ocidental. Mas são os grandes poetas e os poetas brasileiros, os grandes poetas brasileiros Carlos Drummond de Andrade, de quem fui amigo e aluno, no pior e melhor sentido da palavra aluno. O grande e imenso Drummond. O grande João Cabral de Melo Netto e, sobretudo, os grandes poetas que são, por essência, apátridas, pois que são todos moradores da linguagem.

Há muito desrespeito e brigas entre poetas?
Não sei dizer se há brigas, se deixa de haver brigas. O meu amor é pela poesia e sei muitas vezes até fazer — o que nem sempre é fácil —, uma distinção entre a má pessoa e o ótimo poeta, que lamentavelmente ou não podem muitas vezes
coabitar. Não sei o que responder, apenas digo que o meu interesse é pela poesia que está fora do tempo e fora dos nomes. Mas é um fenômeno, é um acontecimento e como tal dispensa nomes, lutas e coisas do gênero.

• Como classificaria a poesia brasileira hoje?
A poesia brasileira hoje é uma poesia extremamente rica, mas pouco conhecida, pouco espaço, grandes poetas em todas as regiões, de norte a sul, sudeste, nordeste. A força da poesia brasileira é extremamente fascinante e tem dado provas de ser contínua e riquíssima.

• Inconvocados, impresença, incontecida, incontaminadas, são neologismos que dão a idéia de devir, de poder ter acontecido. Cria-se um véu de maleabilidade e dúvida. O poeta vê coisas e acontecimentos possíveis mas que não ocorreram. Ficamos com uma noção de abandono (Istambul já não é mais) e não de decadência. É isso? Como é o seu processo criativo? Acredita na inspiração?}
A sua questão é muito acertada e, de fato, o neologismo é um recurso que encontra na poesia longas tradições, que podem remontar mesmo a Homero e, de modo mais especial, a Virgílio e a Dante. De fato, a impossibilidade é uma marca da minha poesia e este véu de maia, labilidade e dúvida a que você se refere me parece, essencialmente, o coração das coisas que vou buscando. E a sensação de abandono me parece igualmente uma visão muito clara do que se passa na poesia; um abandono de si para si, o que se torna efetivamente um imenso desafio e que marca, portanto, as formas da minha procura, e que não coincidem com a geografia, mas que nem por isso são avarentas com a geografia. E assim, portanto, tenho buscado esse abandono dentro de mim, no Brasil, nos sertões físicos de Euclides da Cunha, na Bahia, sobre os quais escrevi em Saudades do Paraíso, mas também no deserto, deserto do Saara, deserto da Mauritânia, nas pedras da Síria — abandono e inspiração ou algo que seja parecido com inspiração. Meu livro Os olhos do deserto traz um pouco de minhas inquisições. Agora, com o lançamento de meus Poemas reunidos, pode-se ter uma visão mais completa de minha precária e destemida trajetória, incluindo mesmo os dois livros italianos, sendo sete livros no total…

• Quais os livros de ensaio que não podem faltar na estante de um poeta?
Um poeta deve buscar um conhecimento do todo. Mito ou fantasma, o paradigma de um Leonardo da Vinci deve persistir hoje, mesmo que as desculpas em torno da impossibilidade de um conhecimento como o de sua época esbarrem naquilo que hoje se afirma como a multiplicidade quase que infinita do conhecimento. Não, o conhecimento é uma proposta interdisciplinar abrangente e deve fazer cortes, produzir interseções, anéis, vaso-comunicações. Portanto, os ensaios que devem estar na estante do poeta são todos os ensaios e mais alguns, sobretudo aqueles que ainda não foram escritos e que esperam um lugar não apenas na estante, mas no sistema da
poesia.

Ivo Barroso fez um trabalho soberbo na tradução do Rimbaud. É o melhor trabalho que um tradutor brasileiro já realizou?
Ivo Barroso é um dos nomes mais altos da tradução-poesia e Rimbaud é inquestionavelmente o seu acme. Assim como Ivan Junqueira, Haroldo de Campos, Dora Ferreira da Silva, e muitos outros que não saberia citar, sem cometer injustiça. Gostava de lembrar dos meus queridos amigos José Paulo Paes e Jorge Wanderley, habitados pela literatura.

No trabalho de tradução, o contato com um outro universo sócio-lingüístico-cultural requer certos “malabarismos” lingüísticos por parte do tradutor. qual obra traduzida por você exigiu um esforço além do comum?
Acabo de receber o Prêmio Jabuti pela tradução do poeta persa Rumî. E outros, ainda. Traduzi muito. E hoje mesmo terminei o romance de Eco, Baudolino, que deve sair em agosto no Brasil. Requer malabarismos, noites de insônia, imaginação poética, loucuras, e um processo de alquimia, como disse num livro meu chamado Teatro alquímico. É para mim algo extremamente penoso. Um exercício kantiano, uma ascensão ao céu de Fausto. Nunca chegamos. A torre de Babel é um sonho. Devo ter ainda os poemas de Jivago, que traduzi para o romance homônimo, cuja prosa está sendo trabalhada pela Zóia Prestes. Traduzi muito. Intensamente. Khliébnikov, Hölderlin… e tantos outros. Mas agora, o tradutor está desaparecendo. Transmigrando. Liqüefazendo. Desaparecendo. Para mim, Baudolino será a última tradução. É um esforço físico terrível. Seiscentas páginas, de trabalho, de suspensão,
de alegria. Mas a torre de Babel faz uma sombra muito fria.

• Há possibilidade de uma tradução se aproximar de um novo original?
É um estar perto quando se está longe. É um não querer querendo. Uma nostalgia. Um abandono. Quando mais próximo, mais distante e vice-versa. Do ponto de vista físico, não. Mas do ponto de vista mais profundo acontecem coisas maravilhosas. O Romeu e Julieta, de Shakespeare. O Corvo, de Edgard Allan Poe, O lustre, de Clarice Lispector. As grandes obras conversam silenciosamente entre si. E as línguas. E seus suportes. O tradutor, dentro de sua botica alquímica, vai misturando líqüidos de palavras, ácidos de substantivos, vai medindo, refazendo, transmutando. Porque o maior sonho de todos, é o da pedra filosofal. A pureza de um ouro que repousa na ausência, no vazio, na subtração. O ouro é o do leitor. Próximo e distante, como o físico quântico, de sua partícula, como Fausto, próximo e distante de Deus.

• Quer dizer que depois do Prêmio Jabuti o tradutor sai de cena ou é só um cansaço natural e passageiro depois de traduzir Baudolino, mais uma obra de peso do grande Umberto Eco? Aliás, como foi este trabalho?
Sai de cena. Porque traduziu muita coisa. E existem outras inquietações que me preocupam mais e mais. Não é uma decisão passageira. Pasternak sairá depois, mas foi já traduzida a minha parte, da poesia de Jivago. De Eco, traduzi A ilha do dia anterior e agora Baudolino. O esforço maior ocorreu com o primeiro romance. Mas o segundo não é coisa fácil. Não apenas o primeiro capítulo, mas uma série de referências realmente sutis, quase imperceptíveis. Mantivemos desde a Ilha uma correspondência (saíram dois ou três bilhetes no meu livro Saudades do paraíso). Mas foi só nesse ano que o encontrei em Bolonha, e que solidificamos nossa
amizade. A tradução foi feita no rio, na Itália e no Irã (nos dez dias que passei por lá).Posso dizer que Baudolino é uma história deliciosíssima e o leitor dará boas gargalhadas, com o reino do Preste João, a história das relíquias e de um crime, e da Utopia. Trata-se de um belo romance. E o tradutor dele, acabará como Baudolino numa terra perdida.

• Se o tradutor se for… (o que será uma lástima) haverá mais espaço para o competente prosador, que já se revelou, ou a poesia é o teu fim?
Acho que ambas devem ganhar uma atenção maior, juntamente com o ensaio e outras tentativas, como uma novela, que estou terminando. A tradução foi importante e não deixará de o ser, como problemática e desafio. Mas outros horizontes me consomem e, decerto, ocupam esse espaço de sonho e aventura. Alguns ensaios sobre a História, que estou ultimando, e um livro sobre o tempo. O fluxo de todas as coisas… Os apelos mais fortes…

• O Sorriso do Caos é um compêndio de sua atividade “jornalística”. Qual foi o critério para a seleção dos textos? Como classifica as “matérias”? O que lhe agrada na função de “jornalista”?
O Sorriso do Caos é, digamos, uma presença no jornalismo que me intriga e me desperta uma vocação começada aos 15 anos e que tem, inquestionavelmente, uma presença importante dentro da minha busca. Portanto, o Sorriso do Caos reúne ensaios que apareceram na sua maior na grande imprensa brasileira. Também saiu pela Editora Artium um livro chamado O Teatro Alquímico, que é uma sondagem, ou melhor dizendo, um teatro de leituras que têm pontuado a minha vida. Contraponto de O sorriso, este guarda ensaios mais longos, tirados de livros e revistas, mas transido por uma busca ferrenha de unidade, na qual não se distingue entre o Livro do Mundo e o Mundo dos Livros, mas que confunde essas duas dimensões porque só o conhecimento e a estética podem dizer algo mais intenso ao coração do homem.

• O Sorriso do Caos tem textos sobre escritores que lhe agradam uns mais e outros menos. Quais, dentre os que estão no livro, fazem a sua cabeça?
Nenhum faz a minha cabeça, todos fazem a minha cabeça, a vida faz a minha cabeça, a pluralidade faz a minha cabeça e acabo muitas vezes por perder a pouca cabeça que me falta.

• Para quem daria um Nobel de Literatura?
Para ninguém porque o Nobel não diz nada. Homero não tem Nobel, Shakespeare não tem Nobel. Eu não daria um Nobel para muitos, mas a questão do merecimento via Nobel não é algo que me comova de modo intenso. Aplaudo profundamente Saramago. Vejo que Saramago é indubitavelmente, “apesar do Nobel”, um dos maiores escritores de língua portuguesa de todos os tempos. Meu amigo Mario Luzi é um daqueles que “estão a merecer um Nobel”. Conheci no Egito o Nobel Nagib Mahfuz e é um dos meus preferidíssimos prosadores deste fim de século tão árido.

• Fazer uma interpretação freudiana de Shakespeare é uma besteira enorme. Quais outras sandices foram feitas em nome de uma análise literária “pós-moderna”?
Uma interpretação freudiana de Shakespeare… O apequenamento do fenômeno literário não é exatamente privilégio de algumas correntes pós-modernas. Isso já aconteceu com o marxismo vulgar, com o positivismo vulgar, e, portanto, com todos os ismos vulgares, que fazem da obra mero refém, vítima despreparada da sua vontade feroz de a reduzir a um monte de escombros que sejam capazes de emprestar uma unidade inexistente à obra. No entanto, vítima na verdade não é a obra, essa mera ilusão da prepotência daqueles que porventura a seqüestram; ao contrário disso, a obra é muito poderosa e acaba devorando aqueles que pretensamente têm intenção de fazer dela um banquete de cinzas.

• Como conseguiu, em 37 anos de vida, obter esta cultura enciclopédica?
Cada segundo e minuto dessa idade me são profundamente importantes. A cultura enciclopédica, como a consegui? Não sei se é enciclopédica. Sei apenas que tenho sede. Sede e fome de conhecimento, mas não de uma cultura imóvel, glacial, estúpida, de academites e outros bacilos de um pseudo verniz ou daqueles que buscam borboletas alfinetadas. Tenho tido profunda intensidade em tudo que faço nas páginas que leio e na vida que escrevo.

• Qual a relação tem com a cultura pop americana, os beats, os rockers e as manifestações populares de arte?
Quanto à próxima pergunta, todas as manifestações populares de arte me são caras. Pelo simples fato de que nós buscamos cultura, mas estamos impedidos de produzi-la. E essa cultura popular para mim está na alta, aliás, altíssima MPB brasileira, está nos sertões onde fui buscar contato com a arte delicada e rude, intensíssima desse povo, está na breve e intensa amizade que fiz com Luiz Gonzaga, com o qual aprendi como se faz a arte do Brasil. E com os berberes, a cultura popular me interessa. Em geral, no entanto, os bits, os rockers, tudo isso não guarda de mim o mínimo, o leve interesse. A não ser por um viés da sociologia e da historia, que representam para mim a primeira formação na academia. Quando me sento ao piano, não toco o que me parece mais sociológico (e interessante nesse espaço). Passa muito longe de mim a vontade de buscar essas formas.

• Tem alguma epígrafe que o acompanhe pela vida?
Eu não chego a ter uma epígrafe, mas a minha atitude diante da vida é de intensidade, de procura, de desespero, conhecimento como fogo e a poesia como esse incêndio. O conhecimento dos dois, a busca do mundo, do universo. Confundir-me buscando latitudes distintíssimas, que vão do Atlântico ao deserto, ao interior do Brasil, aos Alpes na Itália, leituras do mundo, o mundo das leituras, e buscando uma essência, uma vontade forte, porque para mim literatura e vida se confundem de tal maneira que uma, distinta da outra, não poderia e nem deveria viver.

Jeferson de Souza
Rascunho