Raiva que transforma

Monique Malcher estreia no romance com a história de uma infância marcada por ocupação e memórias fragmentadas
Monique Malcher, autora de “Degola” Foto: Renato Parada
01/10/2025

Depois de publicar um dos livros de contos mais impactantes da literatura brasileira dos últimos anos (Flor de gume, vencedor do Prêmio Jabuti de 2021), a paraense Monique Malcher estreia no romance com Degola. A narrativa é protagonizada por Sol, uma criança que vive em uma ocupação em Manaus, no Amazonas, e vivencia diversas formas de violência ligadas à injustiça.

Com linguagem poética e temas dolorosos, o livro se aprofunda nos conflitos internos e externos de uma menina diante da crueldade e da necessidade de manter a esperança para enfrentar seus medos e identificar os perigos ao seu redor.

A obra ainda reúne outras personagens marcantes, como Alfredo e Joana (pais de Sol) e Irmã Eliana, uma líder comunitária que se torna a melhor amiga da protagonista. Todas essas pessoas têm espaço relevante no enredo e sofrem — cada qual à sua maneira — com a violência causada pelos poderosos.

A ambientação também é essencial para o desenvolvimento do romance. Aliás, assim como Sol, Monique Malcher viveu em uma ocupação na infância, embora tenha poucas memórias desse período. “Degola nasce da vontade de ler uma história que honrasse os meus. Sol tem memória da ocupação, eu não tive o mesmo privilégio. Lembro pouco da época em que fui criança naquele espaço, lembro só da mão da minha mãe agarrando a minha e a gente caminhando pelas ruas do bairro ou do que a gente sonhava que um dia seria um bairro”, conta a autora.

Ao longo de entrevista concedida por e-mail, Malcher comenta sobre os temas centrais do romance, sua preocupação com a linguagem, a influência da poesia em sua escrita e a nova edição de Flor de gume.

• A injustiça social é um dos temas centrais de Degola. Em que momento percebeu que o assunto se tornaria tão relevante dentro do romance?
Escrever é entrar em uma arena de luta, antes de erguer um livro é preciso dar nome ao que sentimos. Sei que junto ao meu sorriso há uma tristeza e depois dela vem uma raiva que só escrever abraça. Fui criada por uma comunidade de pessoas que não deixavam a raiva morrer para dentro, foi sempre com a palavra que erguemos um futuro. Foi por acreditar em um futuro em que o silêncio não nos protege, que meu olhar sempre esteve atento, mesmo na infância, para algumas coisas que não deveriam ser como eram. A busca pela moradia e pela educação sempre foi uma luta de família. Depois percebi que minha família era como muitas outras daquele território nortista. Essa forma de estar no mundo é a forma que meu corpo se comporta também na lida com a literatura. Então entrei nesse livro sabendo que a injustiça estava nos dentes dessa história, mas que ela seria também uma história de esperança, esse sentir que acredito e preservo falando o que é necessário.

• A narrativa apresenta diversos momentos em que a personagem Sol é exposta a situações violentas. O encontro com a crueldade é o que coloca fim à inocência?
Sol, assim como muitas meninas desse país, tem de encarar muito cedo a dureza que a sociedade nos impõe. Acredito que a inocência morre quando olha nos olhos da crueldade, porque é quando sabemos da existência do mal, um movimento que vem daquilo que o humano deixou morrer para que nascesse o dano, que abocanha quase tudo. Mas acredito que mesmo em lugares onde a vida sufoca o pescoço também sempre existirá o fôlego e a resistência. Morre a inocência e nasce a força.

• Sol passa a infância em uma ocupação em Manaus (AM), local que desempenha um papel bastante importante para a história. Quando e como definiu que essa seria a principal ambientação de Degola?
Tenho movimentado meu corpo de escrita para pisar firme por temas que criam em mim uma espécie de ferida. Escrevo o que, acima de tudo, preciso ler, sou minha primeira leitora, me dou o que só eu poderia me dar. Degola nasce da vontade de ler uma história que honrasse os meus. Sol tem memória da ocupação, eu não tive o mesmo privilégio. Lembro pouco da época em que fui criança naquele espaço, lembro só da mão da minha mãe agarrando a minha e a gente caminhando pelas ruas do bairro ou do que a gente sonhava que um dia seria um bairro. E a memória não é apenas sobre o que vivemos, mas o acúmulo do que lemos. Assim, a ficção vem preenchendo o vazio dos que não lembram ou nunca tiveram contato com essa realidade. Para ser mais precisa, foi em 2021 que entendi que eu queria contar uma história em uma ocupação, mas ainda não tinha Sol, ela veio aos poucos.

• Você também viveu em uma ocupação. Em quais aspectos sua história e a de Sol se aproximam?
Nós nos aproximamos quase somente no fato de termos sido crianças que moraram em uma ocupação, pois temos relações familiares e uma história íntima diferentes. Mas me identifico com a criatividade e desobediência de Sol. Sou uma assumidamente desobediente e é natural amar criar personagens que também sejam.

• Ao longo da história, as galinhas da família de Sol ganham novos significados para as personagens e para a própria narrativa. Quando começou a planejar o livro, já pensava que os animais seriam tão relevantes?
Existe o livro que pensei que escreveria e o que eu escrevi. E amo o fato de as galinhas terem reivindicado um lugar maior na história enquanto eu achava que elas seriam apenas paisagem. Isso ficou bem mais óbvio quando viajei pelas estradas do Mato Grosso do Sul e paramos para almoçar. Quando desci do carro, uma galinha apareceu do nada e bicou meu pé. Fiquei andando atrás dela, fazendo fotos e vídeos. Quando retomamos a viagem, lembro de anotar no meu caderno de campo: então era você, Juvinha? E assim ampliei minha pesquisa sobre galinhas e fui compreendendo que elas eram companheiras de vida para Sol, elas eram suas meninas e não seus animais de estimação.

Degola traz acontecimentos inspirados em histórias reais. Como foi o trabalho de pesquisa para o livro?
Sempre escrevo ficção fazendo etnografia, então é um processo que acontece ao mesmo tempo. Parto da ideia de que não sei nada e assim estranho até mesmo aquilo com que estou familiarizada. Além de conversar com pessoas que efetivamente moraram em ocupações no Amazonas, também mantive um caderno de campo com minhas colagens, desenhos, recortes de jornais e referências acadêmicas sobre o tema. O caderno de campo sempre esteve comigo enquanto escrevia, como um guia. Aproveitei para homenagear várias pessoas da luta por moradia na Amazônia, trazendo um pouco de suas lutas e personalidades para os personagens adultos da história.

• Uma das personagens mais importantes do romance, Irmã Eliana, é baseada em uma mulher real. Quem foi Irmã Helena Augusta Walcott e por que decidiu homenageá-la?
Onde a revolução habita, sempre vai ter uma mulher na luta. Eu me perguntei: quais mulheres estão na história das ocupações em Manaus? E no processo etnográfico encontrei Irmã Helena. Imagine a força de uma mulher negra que esteve à frente da criação de mais de quinze bairros? E que fez tudo isso desafiando elite, grileiros e até mesmo a burocracia governamental. Ela era filha de barbadianos, os pais estavam na construção da estrada de ferro Madeira Mamoré, como muitos imigrantes. Assim nasceu a Irmã Eliana, a melhor amiga da protagonista Sol.

• Conforme a narrativa avança, Sol experimenta diferentes sentimentos pelos seus pais, Alfredo e Joana. Acredita que as relações familiares são um dos grandes temas da literatura?
Não posso falar de forma tão ampla, mas com toda certeza é um dos meus temas favoritos. Dizem que cada escritor tem suas obsessões, concordo muito com isso. Falar sobre relações familiares é uma das minhas.

• Jarid Arraes escreve na quarta capa de Degola que “com essa obra, a literatura brasileira se torna mais autêntica, mais honesta”. Alcançar a autenticidade é um processo trabalhoso para escritores e escritoras?
Ser autêntica não é uma preocupação para mim, porque creio que, se você escreve sem querer agradar os outros ou parecer com a escrita de alguém, com o tempo sua voz emerge. Não dá para emular uma voz, o que podemos fazer é trabalhar para aperfeiçoar nossa própria centelha. É mesmo um desafio, mas não deve ser um farol, ele vem como consequência da liberdade que só nós podemos nos dar nesse processo.

Degola tem um nítido trabalho com a linguagem. Em sua literatura, a forma é tão importante quanto o conteúdo?
Com absoluta certeza, a forma do texto é muito importante no meu processo de escrita. Não acredito que um livro se erga apenas com um bom tema — é preciso usar a linguagem para contar como só eu poderia contar. Sou uma leitora apaixonada por poesia, confesso até que leio bem mais poesia do que prosa, mesmo que eu prefira escrever prosa. Em algum nível, isso foi formando meu olhar e guiando minhas decisões literárias. O caminho que podemos fazer com a linguagem é impressionante, por qual motivo eu abriria mão de experimentar? Gosto da brincadeira com a palavra, tenho essa mania de me divertir no processo.

Flor de gume, seu livro de contos que venceu o Prêmio Jabuti em 2021, acaba de ganhar uma nova edição, publicada pela Moinhos. Como tem sido a recepção?
Fico sempre impressionada como Flor de gume segue encontrando muitos leitores interessados e apaixonados. É um livro que me ensinou sobre a força da palavra e foi com ele que encontrei minha voz, que abracei minhas estranhezas e subversões. Se antes isso tudo me causava desconforto, foi com Flor de gume que entendi que era nessas pequenas diabruras e belezas da linguagem que habitava minha força.

Monique Malcher. Foto: Renato Parada

• Seus dois livros têm crianças marcadas pelo trauma e pela violência. O texto de orelha de Degola diz que “tornar-se adulto é desfazer, ao menos em parte, o que de nós foi feito quando crianças”. Escrever sobre os traumas de infância dessas personagens fez com que você revisitasse os seus?
Gostaria de ter tido por perto quando criança a adulta que me tornei. Então, escrever essas meninas é também se aproximar dessa garotinha que fui e ainda sou. Foi a poesia que minha mãe insistia em me apresentar que segurou minhas quedas e dores. É sempre uma vingança escrever meninas que, mesmo diante da dor, conseguem sobreviver. Minha existência e minha escrita são um acerto de contas com a sociedade. Falhei em tudo que imaginaram para mim, e por isso sou um sucesso.

• Ambas as obras também compartilham uma escrita bastante poética, ainda que lidem com temas profundamente dolorosos. Quais leituras fizeram você se interessar pela escrita poética?
Desde criança, sempre li muita poesia por conta do gosto literário de minha mãe, que me apresentou Cora Coralina, Drummond e Cecilia Meireles. Mas meu caminho com a linguagem poética ficou mais forte quando li um poema de Sylvia Plath chamado Daddy. Esse poema me tocou tão profundamente que fui em busca de tudo dela, até hoje é minha poeta favorita e Ariel, meu livro favorito. Depois vieram Maya Angelou e a prosa poética de Raduan Nassar. Esses momentos foram decisivos para entender que eu tinha uma voz.

• Quais dificuldades encontrou ao escrever seu primeiro romance?
Não senti dificuldade com a linguagem ou com a composição do livro. A maior dificuldade foi me manter feliz na vida pessoal, porque eu vivo profundamente meus livros, sinto tudo com muita força. Eu precisei lidar com a dor daqueles personagens e manter alguma sanidade.

• Quais foram as semelhanças e diferenças nos processos de escrita de Flor de gume e Degola?
Uma das maiores diferenças foi que, em Degola, eu tinha meu espaço para escrever pela primeira vez, foi muito bom escrever em uma realidade menos precarizada. Senti que estava ainda mais segura da minha própria voz. Mas em ambos, o processo de esculpir bastante o texto permaneceu, percebi que gosto muito da subtração na escrita.

• Sua formação acadêmica passa pelo jornalismo e pela antropologia. De que forma cada área influencia sua literatura?
Sempre brinco falando que minha formação acadêmica mostra que sou uma grande hacker. Fui estudar jornalismo porque queria me aproximar do texto e pelo fascínio que tinha em ser aquela que traduz a realidade para as pessoas, mesmo que o real não exista, tudo é ficção. E a antropologia foi o lugar onde se alargou a relação com o outro, eu seguia querendo escrever partindo do encontro com as pessoas. Então, todo esse percurso foi feito por e pela escrita literária. A maioria das coisas que estudo, seja sobre comida, arquitetura, música, artesanato… tudo eu entrego no colo da literatura, uso para escrever.

Degola
Monique Malcher
Companhia das Letras
176 págs.
Bruno Inácio

É jornalista e escritor. Autor de Desprazeres existenciais em colapso (contos) e Desemprego e outras heresias (romance)

Rascunho