Lourenço Mutarelli vive um momento extremamente fértil e versátil de sua carreira. Após ter declarado que não mais se dedicaria às histórias em quadrinhos, anunciou, para breve, o lançamento da HQ Quando meu pai se encontrou com um ET fazia um dia quente, pela Companhia das Letras. Além disso, pouco depois de ver seu livro A arte de produzir efeito sem causa ficar entre os vencedores do Prêmio Portugal Telecom do ano passado, o artista já se prepara para lançar dois novos romances: Nada me faltará e Ninguém gritava na ponte, este último pela coleção Amores Expressos. Mesmo assim, Mutarelli conta haver experimentado um grave bloqueio criativo a partir de 2008, tendo voltado a beber recentemente, após uma longa abstinência. E, apesar de se queixar de certo cansaço, o autor de Miguel e os demônios também tem investido na carreira de ator, tanto de cinema quanto de teatro: integra o elenco de filmes como O cheiro do ralo, de Heitor Dhalia, e O natimorto, de Paulo Machline — ambos baseados em romances de sua própria lavra —, e da peça Música para ninar dinossauros, em que contracena com o dramaturgo Mário Bortolotto.
Na entrevista abaixo, concedida via e-mail, Lourenço Mutarelli falou rapidamente sobre esses assuntos. Um pouco a respeito de cada um deles.
• Em determinado momento de O natimorto, o Agente narra uma história cuja moral sugere que somos todos monstros. Já em Miguel e os demônios, o protagonista diz que não somos nós que alimentamos os monstros, mas sim eles, os monstros, que nos alimentam. Que monstros alimentam o escritor Lourenço Mutarelli?
Acho que é um mesmo monstro, e que nos alimentamos alternadamente. A diferença desses monstros nos textos em questão é que um seria um monstro que nasceu na minha infância e o outro, um monstro ancestral, que não me pertence.
• Tempos atrás, você declarou que abandonaria os quadrinhos por estar cansado do imenso trabalho que lhe davam (cerca de dez horas diárias), passando a se dedicar mais à literatura. De que forma o trabalho literário seria menos cansativo? Qual o seu processo de criação literária — se é que possui algum processo fixo — e como ele difere do seu método de produção de HQs?
No início, o trabalho literário era muito mais fácil, principalmente nos meus dois primeiros livros (O cheiro do ralo e O natimorto); foram jogos. As coisas simplesmente vertiam. A partir do terceiro livro (Jesus Kid), que foi uma encomenda e, mesmo assim, fluiu de forma rápida, as coisas já não foram mais tão fáceis. Acredito que meu método para a produção literária seja fruto de fermentação. Vou pensando coisas, deixo-as fermentar e, em algum momento, sinto que é hora de começar. Quanto aos quadrinhos, gostaria mesmo de ter parado. São processos muito diferentes. Mas percebi, a partir de um convite, que, na verdade, o quadrinho será o meu ganha-pão deste ano (ou seja, não tive muita escolha) e que ele pode ser interessante se eu mudar a forma como sempre trabalhei. Quando penso numa história em quadrinhos, a imagem vem junto, simplificando muita coisa. Acho que o mais difícil, no caso dos quadrinhos, é conseguir o prazer da experimentação, e é isso que busco no meu novo trabalho (Quando meu pai se encontrou com um ET fazia um dia quente, HQ a ser lançada em breve, pela Companhia das Letras).
• Essa experiência mais profunda com a literatura já mudou alguma coisa na maneira como você escreve para os quadrinhos?
Acredito que sim. Acredito que todas essas experiências afetam o meu trabalho. Mas o afetam num sentido muito positivo. O que é perigoso — e, felizmente, percebi isso a tempo — é a profissionalização. Ou seja, antes eu era um quadrinista obscuro, e tudo que eu fazia eram experimentações. A partir do momento em que meu nome ganhou certo destaque, apareceram muitas encomendas, e aí existe o risco de se perder a espontaneidade.
• Sua produção literária também o levou ao cinema e ao teatro, inclusive como ator. De que maneira essa nova experiência, que envolve tanta exposição física, nos palcos e nas telas, interferiu no trabalho do Mutarelli escritor?
No início, principalmente em A arte de produzir efeito sem causa, eu tentei trazer a experiência física de um personagem para o trabalho literário. Por isso, eu sentia a necessidade de criar os gráficos que o personagem desenvolvia durante a trama; não pelo fator estético, mas para compreender seu mecanismo físico. Fiz também alguns trajetos pelas ruas em que o personagem caminhava, tentando sentir o que ele sentiria. Mas, depois da experiência de protagonizar O natimorto, acho que minha maior vontade é mergulhar mais fundo, puramente, no campo da idéia. Quero esquecer o corpo.
• Como você lutou ou conviveu com seu primeiro bloqueio criativo, sofrido quando se preparava para escrever o romance Ninguém gritava na ponte, para a coleção Amores Expressos?
Esse bloqueio começou em 2008 e durou quase um ano. Foi horrível. Uma experiência amarga. Algo próximo da impotência. Não sei como saí dele. Sei que lutei, mas sinto que ficaram cicatrizes. Quando eu trabalhava, sempre existia algo de que não me dava conta e que eu chamaria de “arrogância criativa”. É aquele momento em que se pega um papel e se atira sem medo de errar. Sem medo de ser julgado. Durante o bloqueio, perdi essa arrogância.
• Numa edição recente do caderno Prosa & Verso, de O Globo, você contou que voltou a beber depois de 15 anos de abstinência. Também revelou que abandonou o uso de vários antidepressivos, mantendo apenas um. O uso de álcool e de medicamentos influencia, de algum modo, o seu processo de criação? Você nota alguma diferença?
Acredito que sim. Acho que até mesmo essa “arrogância” é fruto de combinações químicas, naturais ou não. O problema com os excessos é o preço. É o cansaço. Principalmente o cansaço mental. Mas, por outro lado, esse cansaço também é fruto das cobranças. Para quem trabalha combinando e associando idéias, é muito difícil descansar.
• Sobre seus interesses e influências: a que você assiste na tevê?
Em família, assisto Two and a half man (série cômica americana estrelada por Charlie Sheen). Sozinho, gosto de Monsterquest (série de documentários sobre monstros notórios, como o Lobisomem e o Pé-grande) e Caçadores de óvnis, no History Channel. Fiquei muito tempo sem ver tevê. Aí, no ano passado, minha mulher viajou e voltei a assistir.
• Que tipo de música gosta de ouvir?
Gosto de música concreta, minimalista ou, como a chamaria Philip Glass, “música com estrutura repetitiva”. Gosto de ouvir esse tipo de música porque sinto que ele aciona regiões do meu cérebro que, de outra forma, não são acionadas.
• Que livros e filmes foram mais importantes à sua formação?
Kafka, com A metamorfose e O processo, e Dostoievski, com Crime e castigo, pois foram os primeiros clássicos que li. Inúmeros filmes me marcaram, mas sempre destaco As três coroas do marinheiro (1983), de Raoul Ruiz (cineasta chileno radicado na França). Além de ter gerado em mim uma profunda sensação de familiaridade, o filme, ao mesmo tempo, me desnorteou.
• O que você está lendo agora?
Diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu, de Maurice Joly (obra política, desfavorável a Napoleão III, escrita na França do século 19, e que décadas depois teria sido plagiada com intenções anti-semitas pelos autores de Os protocolos dos sábios de Sião).
• E a literatura brasileira contemporânea, você acompanha?
Por alguma razão não acompanho a literatura brasileira contemporânea. São poucos os que leio. Há sempre muito para ler.
• É comum perguntarem aos escritores o que os faz escrever. Você escreve pelos mesmos motivos que desenha?
Hoje, não mais. Desenhava de forma compulsiva e desmedida. Hoje, me disciplino e me organizo para trabalhar.
• Numa rara e antiga entrevista (concedida a Fernando Granato), Dalton Trevisan disse que todo escritor precisa “acreditar no demônio”. Você acredita? O que é o demônio para você?
O demônio, para mim, é o verdadeiro Senhor dos homens. Nada de verdadeiramente sagrado nos espelha.
• Em Miguel e os demônios, o leitor se depara com a seguinte afirmação: “Eu te garanto que não há nada melhor que a ficção”. Em relação às artes, você concorda com o que diz o personagem Miguel?
Nem lembro disso ter sido dito pelo personagem. Não lembro o contexto. Mas a realidade só pode se comparar à ficção através de uma mente muito criativa. De um olhar extremamente poético, medicado e depois de algumas doses.
• O escritor irlandês John Banville costuma dizer que sente um “ódio profundo e contínuo” de todos os livros que já escreveu. Que tipo de sentimento você tem em relação à sua produção literária?
Com raras exceções, um certo embaraço. Costumava dizer que não me orgulhava nem me envergonhava do meu trabalho. Hoje em dia, posso dizer que me orgulho muito do livro O natimorto. E tenho uma vergonha profunda de alguns outros títulos.
*Colaborou Rogério Pereira.