“Posso trabalhar um dia inteiro numa simples frase”

Entrevista com Luiz Antonio de Assis Brasil
Luiz Antonio de Assis Brasil. Foto: Gilson Abreu
01/11/2003

• Em O pintor de retratos, o personagem encarnava a transição da pintura à fotografia, agora traz o historiador em A margem imóvel do rio, que repercute a transição do Império para a República. Pretende flagrar a reação do homem diante de situações históricas extremas?
É bem possível. A questão é que, ao fim e ao cabo, todas as situações históricas acabam por ser extremas. Não há quem não seja tocado por elas, mesmo que esteja num quarto escuro cheirando a remédio. A política “contamina” todos nossos atos, vale dizer: a História agarra-se a nós como uma sombra, e quanto mais fugimos, mais ela nos persegue, com perdão pela metáfora quase obscena de tão clichê. Mesmo os artistas que, no século 19 pregavam a “arte pela arte”, mesmo esses se deram logo conta de que isso seria impossível.

• Se tudo colaborava para uma única impressão em O pintor de retratos, percebo no novo livro que há núcleos sobrepostos que se encontram ao final. É um livro para várias impressões. Houve essa preocupação de sugerir diferentes abordagens?
Perfeitíssima a conclusão. Creio que em A margem imóvel do rio há vários planos que, distintos (mas complementares) permitem essa multiplicidade exegética. A meu juízo há a questão coletiva, “pública”, que confronta a personagem central com aquele final de época que era o moribundo Império; há a questão “ideológica” (no sentido originário da palavra), em que são discutidas as (im)possibilidades da escrita da História; a par dessa perspectiva, há as infidelidades da memória, tão miseráveis e tão assíduas, seja ao indivíduo, seja aos povos. Há, ainda, o viés pessoal do Historiador, em busca de sua sensibilidade perdida nos páramos de uma viuvez não sentida; há, e por que não, a enfermidade auditiva do Historiador, que é a mesma de que eu próprio sofro, e com a qual tento conviver, e que serve de imagem a todas essas visões do mesmo romance. Tudo isso que disse nessa resposta, por evidente, deve ser entendido como um mero palpite do escritor (o menos indicado para isso). Caberá aos leitores a palavra final.

• A doença do personagem pode ser entendida como uma virtude do processo narrativo?
A doença age como motivo propulsor de vários momentos, e, ao mesmo tempo, é o resultado (porque a doença se agudiza em certos instantes) desses momentos. Resolvi, neste livro, privilegiar a enfermidade física que, em geral, é esquecida pelos ficcionistas, que talvez não lhe reconhecem nada de transcendental ou épico. Sofre-se, apenas, seja de uma dor de dentes, seja de um zunir nos ouvidos — e nega-se qualquer resultado ou dignidade neste sofrer. E, no entanto, ele existe, e pode determinar a conduta de uma vida.

• A história vence a História? O senhor sempre foi caracterizado como um romancista histórico. Para evitar dúvidas de que é um criador (e nunca descobridor da realidade), não estaria fazendo uma auto-referência irônica ao criar um historiador perdendo sua memória e provando que tudo é lembrança da invenção?
De fato. É uma brilhante conclusão. É possível que A margem imóvel do rio (a propósito, e antes que pensem em Guimarães Rosa, o título é de um poema de Horácio) seja o momento crucial de uma longa dúvida que acumulo nos últimos anos. Cada vez mais a História me parece intrigante. Quanto mais a leio, mais me fascino e mais descreio dela. O fascínio vem da capacidade imaginadora dos historiadores, que manipulando elementos da ficção narrativa, “criam” seus mundos pretéritos; a descrença vem das inúmeras versões históricas, tingidas sempre pela ideologia de quem as conta. Nesse aspecto, meus romances, a quem tiver a paciência de lê-los todos, apresentam um crescente desconfiar dos compêndios. Ganha a ficção (boa ou má), e ganho eu em liberdade.

• Atinge a culminância de um estilo, concentrado e econômico. Sua arte está ficando cada vez mais musical? A música é a narrativa ideal, a ambição da prosa?
Estou cada vez mais obsessivo pela palavra. Ou melhor, pela frase. Posso trabalhar um dia inteiro numa simples frase. Leio-a silenciosamente; leio-a em voz alta; reescrevo-a, faço experimentos ao trocar um dissílabo por um polissílabo; substituo as que contiverem muitas vogais abertas (ou deixo-as, dependendo da intenção), tudo isso para que a frase me ocorra musical, “redonda” (ou áspera, se o momento exige). São coisas em que o leitor não pensa — mas seguramente “escuta” em seu silêncio. (Já não gostei da sibilância dessas duas últimas palavras). Mas esse é um trabalho para depois, para a revisão. No momento da escrita, preservo minha liberdade de expressar-me sem limites. Depois, me imponho esses limites que visam, antes de mais nada, a respeitar o leitor em seu sentido estético e musical.

• O Rio Grande do Sul ainda é um caso literário à parte? Em recente artigo, sinaliza a emancipação dos escritores gaúchos como literatura brasileira. Lya Luft, Verissimo e Scliar, por exemplo, encabeçam a lista dos mais vendidos no país. A absorção de autores pelo mercado carioca e paulista não está contribuindo para essa nacionalização?
Já é o momento de o Rio Grande do Sul reavaliar a sua atitude às vezes arrogante em relação ao “Centro” do País. Qualquer escritor (passe a generalização indevida, como todas as generalizações) pode pensar em “construir” sua “carreira” sem arredar pé do Estado. As listas dos mais vendidos “nacionais” o expressam de modo muito claro. Creio que em pouco tempo considerar-se-á a literatura “gaúcha” tão brasileira como sempre o foi a literatura “baiana”. Ademais, em tempos de mundialização, seria ridículo estarmos fazendo distinções internas. Não que sejamos um só, mas partilhamos uma mesma língua e, de certo modo, a mesma cultura.

LEIA RESENHA DE A MARGEM IMÓVEL DO RIO

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho