• O seu Fio terra só conduz correntes poéticas?
Pretende conduzir tudo que estiver disponível – seja poético ou não. O poema “Fio terra”, mais especificamente,é um balanço de minha produção anterior, é um balanço da poesia que venho fazendo há mais de trinta anos. Tem esta importância para mim, mostrou que a poesia não precisa ser tão fugaz na sua duração escrita. O poema longo (o que abre o livro) me acompanhou durante um bom período. É um poema marcado por datas e a sua feitura durou 3 meses. A poesia deste poema não me abandonou presto, como de costume. Era como que um dever de casa. Fio terra (o livro num todo, inclusive com sua segunda parte, “No ar”) foi importante como condutor da minha poética e se essa condução serve para alimentar outras poéticas contemporâneas, fica como contribuição. A intenção primeira e natural foi, digamos, de economia doméstica e continua sendo.
• Walter Benjamim colocou o cinema como a grande arte, a maior. A epígrafe de seu livro é de Godard. Você tem alguma ligação com o cinema?
Tenho ligação forte com Godard. Tudo que ele fala e faz pode ter grande influência no que eu faço. A citação que abre o Fio terra é de um livro dele. Eu vejo todos os filmes de Godard; as vezes duas, três, quatro vezes. Ele me interessa desde 62, desde o Acossado. A partir daí fiquei fã dele como artista. Mas não sou interessado por cinema em geral, apesar de gostar como um entretenimento, na maioria das vezes, banal. Para matar o tempo. Pouquíssimos filmes são relevantes. Nesse sentido, lamento discordar de Walter Benjamim. Era muito mais seguro estar de acordo com ele. De todo modo, se é para falar de veículos de massa, tecer proximidades, minha dicção se apóia ou prefere a célere dicção radiofônica e não a narrativa lenta do cinema que está, a meu ver, mais perto da prosa. Estou… à escuta. Ao lado do repertório próprio da literatura ou da arte a influência interdisciplinar mais presente na minha poesia, portanto, é a dicção do rádio, aquela locução urgente ou que quer ser urgente. Eu gosto da mudança brusca de plano. O repórter faz uma entrevista e é interrompido por um flash, com outras notícias. Esta mudança de planos, estruturalmente, está sempre presente na minha poesia, como se eu estivesse sempre dando a última notícia para ninguém. Qualquer poema que a gente escreve é a última notícia. A primeira página do jornal impresso também tem este tipo de colagem rápida também. Sou um leitor voraz de jornal. Mas rádio e jornal são referências subalternas. A influência maior, como não podia deixar de ser, é a literatura. Estou condenado a ela.
• “Identidade é assim: itinerário” Qual a importância de um itinerário para o poeta? O poeta deve ter um projeto literário?
Julho deste ano faz 38 anos que estreei em livro. O poeta quer sempre refazer o primeiro livro. Ele vai numa trajetória semi-consciente. Um risco que um poeta inveterado corre é se tornar consciente demais desse itinerário. O poeta não faz o projeto literário. Há que se esquecer um pouco dele para que não se perca, antes do tempo, o possível frescor num universo saturado de referências. O projeto literário é que vai se fazendo concomitantemente com o poeta e a sua poesia, meio que por acaso. É um trajeto de idas e vindas. O poeta se lê, relê, treslê. Não é uma receita. É a receita que eu fui provando e… é a comida que
inventei.
• Por que é difícil “nomear o que se escreve”?
É difícil para mim escrever algo pré-determinado. O acaso entra como um flash de rádio. Este objeto complexo (que é o poema moderno) já foi mais simples. Modernamente agrega vários elementos inesperados, díspares. Surpreendente até para quem faz. Minha intenção muda quando acabo de escrever. Houve desvios. Até o próprio poeta não entende bem o que ele quis falar sobre aquilo. Vai meio às cegas, vai com os cinco sentidos. Só os olhos não bastam. O poema vai se formando. Claro que se tem algum controle, mas não um controle total. As vezes interrompo um poema devido a sensação/inspiração ter acabado. Por isso é difícil nomear de antemão.
• “Não se escreve aos gritos”. Como é escrever silenciosamente?
A operação da escrita é uma atividade que reúne coração, concentração e técnica. A concentração é a disposição de ouvir o coração e a técnica. O coração é indispensável. A técnica viabiliza o vendaval ou o sopro do coração. É uma operação interior. O poeta escreve com sua voz de dentro. É tudo visceral. Com o silêncio do corpo é que se escreve. Não criamos sem concentração e o que está fora colabora. Para isso é necessário, também, desenvolver um ouvido de bicho.
• A poesia sobre poesia é o futuro da poesia?
Não. É um recurso fechado. O poeta deve abrir-se para os acontecimentos sem ficar na masturbação do poema sobre o poema. Hoje é uma facilidade fazer uma
metapoesia. Prefiro escrever ao ar livre do que no ar viciado do escritório. Prefiro escrever ao ar livre de mim.
• E o concretismo?
Sempre tive uma relação descrente com o concretismo. Nunca acreditei naquilo e sempre me pareceu mais como um recurso eventual, e inviável ou insensato como projeto literário. Compreendo muito mais a arte concreta nas artes plásticas e na música.
• “Falo para esquecer. Rasgar/para gastar a dor(…). A dor dura um poema?
Quando se tem uma dor real a dor pode durar a vida inteira. A dor existencial não tem cura, não pode ser minorada verdadeiramente. A dor física pode ser até mais terrível, mas tem remédios: analgésicos ou a morte. Sinto muita falta da Ana Cristina, do Tite de Lemos. Da poesia calada para sempre – tão cedo! – deles. Esse tipo de perda é uma dor que não passa. A minha escrita não é catártica, não me livra de nada; ela agrega, incorpora, faz existir com mais força para mim: vale o escrito! Ela propõe séries, continuidades. O que eu escrevo vai para dentro ensejando séries de rememorações. Quando você se escreve, você não está se livrando de nada, ao contrário.
• A antítese é ainda importante na poesia? No fundo “o amor é o fogo que arde sem se ver”?
Eu não sei responder. Ou então: vale tudo. Não só a antítese vale a síntese, a tese. O poeta deve se dar ao direito de escrever sobre e sob todos os registros, todos juntos ou separadamente: a tese, a síntese ou antítese.
• Escrever a cavalo é estar possuído de um poema que nem poderia ser seu? Você acredita em inspiração?
Posso ser possuído por um poema que não é meu, a pé ou a cavalo. Acredito, sim, na inspiração que é uma disposição suada para fazer qualquer coisa que preste. Qualquer coisa que se faça na vida é preciso desse motor, que conjuga sonho e suor. Serve para tudo. É a condição essencial para se tentar fazer algo de valor razoável.
• Qual balanço pode fazer da geração mimeógrafo?
A geração mimeógrafo foi útil porque “desengravatou” a poesia. Ela estava muito séria. A poesia ficou mais livre no tempo que se vivia de paz e amor. Nem tanta paz nem tanto amor, para dizer a verdade ou sermos mais exatos, retrospectivamente, o que é sempre mais fácil. Mas é inegável que trouxe uma respiração mais ampla que até ajudou, por tabela, a melhorar a qualidade do ar durante o sufoco político. Foi útil para poesia respirar a plenos pulmões. Mas todo o movimento, toda onda tem seu prazo de validade, mas respinga em outras gerações. Todos que escrevem usufruem do passado.
• João Cabral “desperfumou” a poesia brasileira. Em sua poesia Cabral vive? Acredita na angústia da influência? De qual poeta forte descende?
Tenho uma família de poetas. Só na nossa língua tenho quatro poetas cardeais, que na verdade são três. Um é sobre-humano: Drummond. Abaixo dele, os humanos: Bandeira, Cabral e Ferreira Gullar. São para mim poetas seminais. Isto não quer dizer que eu não leia Vinícius, Jorge de Lima, Murilo Mendes, etc. Mas esses quatro são os quatro com os quais eu luto, sendo que é triste lutar contra Drummond. Sou derrotado sempre. Com os outros a gente pode, pelo menos, ter a ilusão que vai fazer um gol de honra. Com ele, não. Você perde sempre de zero.
• “Ou em dias que não diferiam, circulares no fundo”. Há uma faceta nietzscheana em João Cabral?
Não sei. Na verdade, nunca pensei nisso.
• Como encara a internet e as novas formas de fazer poesia?
A internet é um veículo. Encaro como a um aspirador de pó. Não tenho nenhuma expectativa além dela me facilitar a vida prática, o que já é jóia. É um tubo, um canal, um meio para veiculação como rádio, tv, cinema. A fôrma pode ser nova, mas, até onde posso ver, não cria nenhuma forma de pensar ou de dizer novos, substantivamente falando. Na epiderme, talvez: mas é só cosmética. Afinal, quando se passou da pena para a caneta, desta para a máquina de escrever nada de significativo aconteceu. Agora, no teclado do computador – uma máquina de escrever mais inteligente – deve ser igual.
Armando Freitas Filho nasceu no Rio, em 1940. Foi pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro, no Rio de Janeiro, pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional, assessor no gabinete da presidência da Funarte, onde se aposentou.
Sua obra literária tem merecido a atenção da crítica especializada destacando-se entre outros, os artigos, resenhas e prefácios de: José Guilherme Merquior,Heloísa Buarque de Hollanda, Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, Ana Cristina César, Flora Süssekind, José Miguel Wisnik, Sebastião Uchoa Leite, Carlito Azevedo, Sérgio Alcides e Ronald Polito. Poeta édito há 35 anos, publicou os seguintes livros: Palavra, 1963; Dual, 1966; Marca registrada, 1970; De corpo presente, 1975; À mão livre, 1979; Longa vida, 1982; 3×4, 1985; De cor, 1988; Cabeça de homem, 1991; Números anônimos, 1994; Duplo cego, 1997 e Fio terra, 2000. Recebeu, em 1986, com o livro 3×4, o prêmio Jabuti e em 2000, com o livro Fio terra, o prêmio Alphonsus de Guimaraens, concedido pela Biblioteca Nacional. Em 2001 ganhou a Bolsa Vitae de Artes.
Armando Freitas Filho participou em diversas antologias estrangeiras: tem poemas traduzidos para o francês por Serge Bourjea (Anthologie de la nouvelle poésie brésilienne, Ed. L’Hartmattan, Paris, 1988); para o alemão por Ingrid Schwamborn (Brasilien land der extreme, Ed. Haremberg, Dortmund, 1990); para o inglês por David Treece e Mike Gonzalez (The gathering of voices – The twentieth-century poetry of Latin America, Ed. Verso, London/New York, 1992); por Fritz Frosch (Manuskripte, Forum Stadtpark A8010, Viena, 1993); por David Treece (Modern poetry in translation, New series/nº6/Winter 1994-95 Special feature: Modern poetry from Brazil, King’s College London, University of London, 1994); para o chinês por Zhao Deming (Antologia da poesia brasileira, Ed. Embaixada do Brasil em Pequim, Departamento Nacional do Livro, Fundação Biblioteca Nacional, 1994); para o italiano por Giampaolo Tonini, sob a curadoria de Sílvio Castro (Poeti brasiliani contemporanei), Ed Centro Internazionale della Grafica di Venezia, 1997); para o espanhol sob a coordenação de Consuelo Triviño (Norte y sur de la Poesía Iberoamericana, Editorial Verbum, Madri, 1997); em Vozes poéticas da lusofonia, organizada pelo Instituto Camões, sob a coordenação de Alice Brás e Armandina Maia (Ed. Câmara Municipal de Sintra, 1999); para o inglês por David Treece (Journal of Latin American Cultural Studies, vol.9,number 1, march, 2000).
Em dezembro de 1995, o seu livro Cabeça de homem foi publicado, em edição bilingüe, pela Ed. Hiperión, de Madri, com introdução e tradução para o espanhol de Adolfo Montejo Navas. O livro Fio terra será lançado, este ano, em edição bilíngüe, pela DVD ediciones, de Barcelona.