Pensar muito, escrever pouco

A mexicana Valeria Luiselli se consolida entre os principais jovens autores latino-americanos
A mexicana Valeria Luiselli, autora de “A história dos meus dentes”
22/08/2016

À guisa da música que alimentou a obra de Thomas Mann, Doutor Fausto, o mais recente romance da jovem escritora mexicana Valeria Luiselli, A história dos meus dentes, recorre à arte tendo como palco uma galeria da fábrica de sucos Jumex no México, e resulta da comunicação entre a escritora e os funcionários da fábrica. Em outro projeto literário-artístico (where-you-are.com), com ajuda do Google’s Creative Lab, Valeria percorreu os parques infantis de Nova York acompanhada de sua filha pequena e a máquina Polaroid, novos sapatos, um mapa verdadeiro e dobrável, dois cadernos e duas canetas, casacos com bolsos grandes e um pano para cobrir as fotos. Esta experiência urbana e táctil do espaço leva o leitor a uma atemporalidade convidativa e transfixante. Nestes saltos pelas cidades, ou nos saltos entre cidades, vive Valeria Luiselli.

Tem sido dado à literatura ibero-americana impor-se com vigor e originalidade no contexto da criação. De amarras soltas, os escritores contemporâneos com raízes nas línguas espanhola e portuguesa ocupam novos espaços do imaginário e da estética. Ultrajar gêneros e transportar o leitor a um espaço onde há uma confluência da arte, da arquitetura, da filosofia e da palavra escrita permite novas explorações pelo leitor ativo e coadjuvante. Tal perspectiva garante poder aos que se submetem a ela.

Em A história dos meus dentes, o leitor encontrará o protagonista Estrada no centro de uma jornada existencial, espiritualmente conectado com o Pedro Páramo, de Juan Rulfo, em uma busca nada mística, submetida a presságios e rica dose de humor sutil, vinculando o homem ao que o cerca, inclusive objetos como biscoitos da sorte chineses e os dentes de Marilyn Monroe obtidos através de seu trabalho como leiloeiro, para além das figuras estilísticas de linguagem.

Ainda no âmbito das transformações urbanas, Valeria publicou um longo ensaio no jornal The Guardian sobre a revolução cultural na década de 1920 nas “azoteas”, os telhados da Cidade do México. O olhar de artistas e intelectuais a partir das “azoteas” é o mesmo olhar da Valeria que sobrevoa a cidade pensativa do caos congelado nos telhados como no poema de Apollinaire.

Em inúmeras aterrissagens na Cidade do México, onde a autora nasceu em agosto de 1983, ela descreve os sintomas de uma vertigem invertida, uma resistência à gravidade do chão que a levam a lágrimas desconectadas da tristeza mas expressivas da descida em um mundo futuro que se aproxima e é imensurável. Este imensurável é o que mais surpreende no trabalho da Valeria Luiselli.

No Earth Café, no Upper West Side de Manhattan, Valeria e eu iniciamos a conversa sobre o ofício da escrita, doutorado, imagem pública, literatura, imigração e a vida em Nova York em geral. Trago ao Rascunho fragmentos deste diálogo, que passou por diferentes cafés e mesas em Roma, Paris, Paraty, Rio de Janeiro e Lisboa.

• Em A história dos meus dentes, alguns personagens recebem nomes de escritores renomados, alguns antigos, outros atuais. Até mesmo Valeria Luiselli é personagem. Isso faz parte de um jogo?
Há escritores que usam a língua como um veículo — um meio para um fim — e escritores que usam a língua como uma espécie de parque de diversões — um fim em si mesmo. Acho que me encaixo na segunda categoria. A seção a qual você se refere no livro chama-se Os alegóricos e realmente brinca com nomes de escritores — alguns famosos, outros não. Os alegóricos são basicamente uma meditação sobre o discurso e as práticas de descontextualização na arte. Esta novela é escrita numa observação tranquila das práticas da arte contemporânea e é uma meditação que busca estabelecer uma ponte e comparar arte contemporânea com literatura contemporânea. Usei instrumentos de narrativa para refletir um pouco sobre questões como a velha dicotomia entre imitação e criatividade. Também usei recursos e procedimentos tradicionalmente associados à arte moderna e contemporânea — tais como descontextualização, deslocamento ou redefinição de propósito — para refletir sobre como os objetos adquirem ou perdem valor num mundo que parece sobrecarregado de produtividade, informação e discurso. Em Os alegóricos, todos os objetos são substituídos pelo discurso — alguns aludem ao número de práticas artísticas recentes que tratam mais de apropriação de um discurso sobre os processos ao invés de resultados (a obra de arte). O processo do qual Os alegóricos se apropria é uma versão narrativa do tropismo dominante na arte produzida nos séculos 20 e 21: os ready-mades. Basicamente, usei uma série de escritores latino-americanos, inclusive eu, como ready-mades e fiz o que muitos executaram antes de mim: desloquei-os do contexto tradicional e os coloquei em um outro, ou os descontextualizei e lhes dei nova finalidade, a fim de refletir sobre o seu valor — seja o valor de uso, troca ou simbólico.

• Ainda sobre A história dos meus dentes, Estrada, o protagonista, entende de decifrar biscoitos da sorte chineses. Deus existe ou lidamos com presságios?
Não sei, mas desde que me encontrei sem deuses, creio ferozmente nas pequenas coincidências.

• Robert Walser e Walter Benjamin marcam clara presença nos seus ensaios. Em alguns deles, você trata de questões urbanas como a importância dos telhados (“azoteas”) na cultura revolucionária da Cidade do México no início do século passado e da cartografia. Como se desenvolve esta relação entre o autor itinerante e a cidade que controla e protege (ou não)?
Escritores como Benjamin e Walser me ensinaram um modo de observar a cidade. Eles me deram o olhar. Apesar de as cidades sobre as quais eles escreveram, cidades europeias no apogeu do século 20, serem tão diferentes das nossas cidades latino-americanas, a maneira pela qual eles as observaram é traduzível em certo grau para estas últimas. Gosto particularmente dos telhados da Cidade do México, onde passei os melhores momentos dos meus anos adolescentes e em homenagem aos quais dediquei um capítulo da minha tese de doutorado e alguns artigos como o que você menciona. Eu me sinto particularmente fascinada pelos telhados e pelas pessoas que os ocupavam na década de 1920. Pessoas como Tina Modotti, Edward Weston, Salvador Novo e Dr. Arlt. Se pensarmos numa cidade como a Cidade do México em termos dos seus diversos níveis horizontais — rés do chão, primeiro andar, segundo andar —, o nível que se espalhou na década de 1920 horizontalmente quinze metros acima do chão pode ser interpretado como um tipo de laboratório experimental semi-invisível para a criatividade moderna e uma alternância de parâmetros morais. Num distanciamento dos espaços públicos mas não totalmente particulares consistiam em “ambientes próprios”. A invisibilidade relativa, física e cultural, dos cômodos permitia um modo de vida alternativo e, concomitantemente, levava a uma forma de produção cultural que empurrava as fronteiras da cultura literária e visual mexicanas. Eram os lugares-chave para as vanguardas mexicanas. Eles me interessam tanto como espaços para viver e trabalhar como de transformação cultural.

• Em seu romance Rostos na multidão a abertura é um diálogo no qual o menino pergunta à mãe, de onde vêm os mosquitos?, do chuveiro, ela responde. Em La transmigración de los cuerpos, do mexicano Yuri Herrera, ele relata já nas páginas iniciais uma epidemia disseminada pelo mosquito, o mosquito egípcio. O que falar de nós e dos mosquitos?
Não, realmente não. Não atribuo nenhum valor simbólico a eles. Os mosquitos são apenas mosquitos, não metáforas. (Um mosquito é um mosquito é um mosquito…). Em Rostos na multidão, os mosquitos cumprem a mesma função que na nossa vida real: eles nos mordem, nos fodem e nos adoecem.

 

A boa literatura está sempre redefinindo as cartografias. Traça espaços que não foram vistos antes. Creio que é algo que a literatura latino-americana tem feito, pouco a pouco.

• Um escritor equivale a um arquiteto?
Os bons escritores, como os bons arquitetos, constroem espaços habitáveis. Apenas os bons o fazem. Agora já não estou mais em Ipanema mas em um apartamento na Île Saint-Louis, em Paris. Se o arquiteto que projetou este apartamento houvesse sido escritor, teria escrito uma pequena obra de mestre.

• Enquanto flaneurs ou, como você genialmente sugere em um dos seus textos, cycleurs, quais os nossos papéis?
Não sei se entendo a pergunta. Mas diria a você que o nosso papel é sempre ser bons observadores. Não me interessam nem as pessoas nem os escritores que se preocupam em fabricar e impor uma voz autêntica e forte. Os olhares me interessam, porquanto sempre mais silenciosos, sutis e honestos.

• A literatura contemporânea produzida por escritores latino-americanos e, em especial, mexicanos, busca se definir?
As gerações, como diziam os poetas do grupo Los contemporâneos no México formam uma constelação de solidões. O papel dos críticos consiste em desenhar os mapas dessas gerações. O papel dos escritores é pensar muito e escrever um pouco.

• E o que significa o recém-surgido termo “narco-literatura”?
Significa “ruído” e “lixo” e “restos” e, às vezes, inclusive “merda”.

• Dos autores contemporâneos, quais você destacaria? Algumas escritoras? Você vê uma presença forte feminina na escrita em espanhol?
Sim, há uma presença cada vez mais notória das mulheres nas letras, mas a balança segue pendendo para um único lado — o da testosterona, da competição e da visão limitadíssima de que a literatura é uma carreira. Muitos homens que conheço não participam absolutamente disso, com certeza. Esta não é uma lista completa (as listas nunca o são), mas me entusiasmam os trabalhos de Samanta Schweblin, Laia Jufresa, Guadalupe Nettel e Daniel Saldaña París, que quase nunca é mulher. Do mundo anglo-saxão, que é o meu outro mundo, Kathleen Alcott, Neil Leysnon e Kate Tempest me impressionaram recentemente. Também Naja Marie Aidt, que escreve em dinamarquês e felizmente tem a obra traduzida para o inglês. E Nathalie Léger, que escreve em francês.

• Julio Cortázar dizia acreditar que uma das melhores esperanças revolucionárias estaria na literatura latino-americana. Ao tratarmos de mapas e cartografias, nossas fronteiras e realidades poderiam ser reconfiguradas de alguma forma pelas narrativas que despontam?
A boa literatura está sempre redefinindo as cartografias. Traça espaços que não foram vistos antes. Creio que é algo que a literatura latino-americana tem feito, pouco a pouco.

• Você vê um espaço para a literatura latino-americana em Nova York como foi Paris para o chamado boom?
Sim, a “República das Letras” possuía o seu centro de poder em Paris. Agora não mais, há muito tempo que não. Entretanto, acredito que Nova York não tenha substituído Paris porque o mundo se tornou um lugar simultaneamente conectado e fragmentado. Além disso, a literatura tem passado por uma “comoditização”, como um bem de consumo nos circuitos internacionais. Há uma rede de espaços editoriais e de mercados com nódulos especialmente grandes em lugares óbvios como Frankfurt, Munique, Londres, Nova York, mas também outros onde se organizam grandes feiras internacionais como Guadalajara, no México, ou Calcutá, na Índia, ou Xangai, na China. Estou falando apenas de mercado editorial e não sobre os espaços literários cosmopolitas onde vivem e trabalham muitos escritores. Neste último sentido, sim, Nova York oferece esse espaço. É uma cidade que aceita o estrangeiro para si, de modo que vários escritores gravitam ali. No entanto, Nova York está em decadência, é a metrópole mais decadente do mundo. Gosto da decadência de modo que vivo naturalmente em Nova York.

• O advento da “Fridamania” exemplifica o culto à celebridade artística: quais os efeitos desta mitificação sobre o sujeito criativo?
Diego Rivera e Frida Kahlo foram os primeiros artistas de performance mexicanos. Eles eram o casal poderoso da modernidade mexicana: completamente cosmopolitas, sofisticados, bem conectados, mas também mais mexicanos do que o México. Em várias formas, Frida Kahlo e Diego Rivera atuaram como tradutores culturais, tanto importando quanto exportando capital cultural de e para o México. O que vemos ainda hoje são os últimos resquícios deste fenômeno que eles criaram.

Os bons escritores, como os bons arquitetos, constroem espaços habitáveis. Apenas os bons o fazem. Agora já não estou mais em Ipanema mas em um apartamento na Île Saint-Louis, em Paris. Se o arquiteto que projetou este apartamento houvesse sido escritor, teria escrito uma pequena obra de mestre.

•  O escritor sul africano J. M. Coetzee em conversa com a psicanalista Arabella Kurtz, publicada em The good story, exchanges on truth, fiction and psychotherapy (2015), discute as qualidades de uma boa história e cita o papel-chave das omissões na descoberta da verdade mais profunda. Dos seus trabalhos, você poderia citar uma ou mais omissões reveladoras?
Não. São secretas.

• Você se definiria como uma autora em busca de personagens ou seriam os personagens que a buscam?
Nenhum dos dois. Sou uma pessoa que observa as pessoas e ao seu redor e registra os detalhes dos seus comportamentos, sem impor ideias prévias ou moldes que simplifiquem e ofusquem as suas belas complexidades.

• Os romances são condicionados por leis? Os gêneros devem ser demolidos?
Não acredito na demolição por demolição (tipo Brexit). Como dizia antes, gosto da decadência. O romance, o gênero mais decadente neste momento, se encontra em esplendor. As ruínas são mais habitáveis do que os novos lofts de pedra de papelão.

• Da África do Sul, temos diversos livros de escritores de origem europeia expressando-se sobre o apartheid. Como manter o equilíbrio entre a escrita consciente, a liberdade e a apropriação/desapropriação da voz do outro? Os ensaios se sobrepõem à ficção nesta esfera?
Nenhum tema deve estar vedado a um escritor de ficção, tudo pode ser apropriado. Os escritores de ficção têm o direito à imaginação. E tanto possuem este direito que devem ter a responsabilidade de usar bem a imaginação. O ensaio e o jornalismo requerem outro tipo de responsabilidade. Aí não se pode apropriar-se da voz de ninguém: você está completamente sozinho, à mercê das suas limitações intelectuais, de seus fracassos, de suas ideias próprias.

• Um fio condutor a mantém ligada ao México?
Sim: o fio condutor do pesadelo no qual vivemos me mantém atada. O México hoje em dia é como um pesadelo do qual não conseguimos acordar. Contudo, é um pesadelo coletivo e como tal criou laços profundos nas pessoas que estamos tratando de deixar de sonhar. Uma boa consequência possível (muito futura) desses anos obscuros no México poderia ser a maior sensação de responsabilidade comunitária, de dever cívico e social compartilhado.

• Você tem se deslocado para o Arizona a fim de elaborar um novo projeto. Do que se trata?
Dizem que dá azar falar em demasia sobre um projeto inconcluso. O único que posso dizer é que estou escrevendo um romance que passa parcialmente neste território. Creio que é o melhor que já escrevi. Mas tudo, sempre, pode se arruinar.

• Qual o seu envolvimento com a questão dos imigrantes, em especial, as crianças desacompanhadas que atravessam as fronteiras para chegar aos Estados Unidos?
Trabalho como intérprete na Corte Federal de Imigração, na sede de Nova York. O meu trabalho ali é simples embora difícil: traduzo, do espanhol para o inglês, histórias de crianças sem documentos legais. Repasso as perguntas de um questionário imigratório, uma por uma, e o menino ou a menina respondem. Transcrevo em inglês as suas respostas, tomo algumas notas marginais e mais tarde me reúno com os advogados para lhes entregar e explicar. A partir disso, os advogados analisam, baseando-se nas respostas ao questionário, se o menor sem documentos tem um caso suficientemente sólido para impedir uma ordem final de deportação e conseguir status imigratório legal. Se os advogados determinam que existem possibilidades reais de ganhar o caso na corte, o passo seguinte é buscar um representante legal para o menor.

• Em um de seus ensaios, você sai de bicicleta em busca de um dicionário de português. Encontrou-o?
Nunca! E depois chegou o Google Translate e acabou comigo para sempre. Usei-o para traduzir as suas perguntas e todas parecem no Google Translate como versos surrealistas. Por outro lado, leio em português sem dicionário. Depois da visita a Paraty, durante a minha longa espera em Ipanema e logo no meu voo para Roma, li O alienista, de Machado de Assis. E agora, na França, estou lendo Lavoura arcaica, do Raduan Nassar, ambos livros que me foram recomendados consecutivamente pelo Luiz, Marcelo e a brilhante Laura, os meus editores brasileiros.

A história dos meus dentes
Valeria Luiselli
Trad.: Ari Roitman
Alfaguara
164 págs.
Katia Bandeira de Mello Gerlach

Mestre em Direito Internacional pelas Universidades de Londres e Nova York. Professora e escritora, Colisões particular(res) bestiais (Editora Oitoemeio, 2015) é o seu terceiro livro de contos.

Rascunho