Por Yasmin Taketani e Guilherme Magalhães
Ricardo Filho tem um leitor bem específico em mente para seus livros: ele mesmo, quando criança. É com esse menino exigente que o escritor busca dialogar em seus livros infantis e juvenis e, mais do que ganhar pelos ensinamentos, conquistar pelo prazer de suas histórias. Nascido no Rio de Janeiro, em 1954, mas logo tendo se mudado para São Paulo, Ricardo Filho entrou em contato com a literatura já na infância, por influência do ambiente familiar — neto de Graciliano Ramos, descobriu o prazer da leitura principalmente por incentivo de seu pai, o também escritor Ricardo Ramos. Nesta entrevista concedida via e-mail, o autor de O livro dentro da concha, João Bolão e Sobre o telhado das árvores, entre outros, e mestrando em Literatura Infantil e Juvenil pela USP fala sobre as suas primeiras leituras, as preocupações que guiam sua escrita e as mudanças na literatura dedicada a este público, entre outros assuntos.
• Como se deu o seu primeiro contato com a literatura? Destas leituras iniciais, quais foram as mais marcantes?
Cresci em uma casa onde a literatura estava muito presente. Meu pai, o escritor Ricardo Ramos, era muito disciplinado, sempre o vi em contato diário com o ofício de escrever. Aprendi com ele, desde muito cedo, que era um trabalho como outro qualquer; defendia com muita convicção a idéia de que a produção literária deveria ser realizada com disciplina. O barulho do martelar da máquina de escrever nunca irá se apagar de minha memória. Ele lia o que escrevia para minha mãe e eu prestava atenção. Escritores amigos dele freqüentavam minha casa e as conversas literárias gradativamente foram despertando minha curiosidade. Fui muito estimulado a ler e criei um hábito de leitura que mantenho até hoje. Sempre li bastante. Meu primeiro livro foi Reinações de Narizinho, do Monteiro Lobato, aos sete anos. Acabei lendo a coleção inteira. Considero que aprendi a ler com Lobato. Daí, li tudo o que se lia na época: A ilha do tesouro; Moby Dick; Robinson Crusoé; a coleção dos livros do Tarzan, do Edgar Rice Burroughs; Os três mosqueteiros; Robin Hood; os livros do Jack London; tudo do Mark Twain; Cazuza, do Viriato Corrêa; Saudade, do Thales de Andrade; Coração, do Edmundo de Amicis, livro que me ensinou que se podia chorar lendo; os livros do Francisco Marins; a coleção dos Três escoteiros em férias no rio… (Tietê, Paraná, Araguaia, Paraguai), do Francisco Barros Júnior — eu lia compulsivamente. Uma coleção escrita pela escritora norte-americana Laura Ingalls Wilder, Little house, também fez minha cabeça. Li e reli várias vezes. Tenho saudade do prazer que a leitura me despertava nessa época, era um alumbramento. Eu lia com sofreguidão.
• Qual a importância da escola e da família na sua formação como leitor?
A escola não foi assim tão importante. Como mediadora considero que não realizou um trabalho relevante. Os livros que nos davam para ler normalmente eram mal escolhidos. Não levavam em conta uma coisa que considero fundamental hoje: a necessidade que a criança tem de encontrar diversão nas histórias. Escolhiam textos não apropriados para nossa idade. Acho que fizeram de tudo para nos afastar do prazer da leitura. Ler, por exemplo, O guarani antes da hora fez com que até hoje eu tenha má vontade com o pobre do José de Alencar. A minha sorte foi ter em casa alguém que sabia orientar e que me apresentou aos textos mais importantes da literatura infantil e juvenil. Meu pai, além do mais, tinha lido os livros e conversava comigo a respeito. Falávamos sobre as tramas, discutíamos, cada um dizia o que achava do texto. Desde muito cedo entendi que livros eram um bom assunto para conversas.
• O que o levou especificamente à literatura infantil e juvenil? Qual o ponto de partida para criar um diálogo com crianças e adolescentes, alcançar esse público-leitor através de seus livros?
Considero essa pergunta difícil de responder. Poderia dar muitas respostas, não sei até que ponto verdadeiras. Como sou neto de um escritor que se notabilizou como romancista, e filho de outro que tem importância na área do conto, talvez tenha escolhido, penso que inconscientemente, um segmento onde pudesse ser menos comparado, uma área por onde eles circulassem menos. Só que existem constatações também importantes. Meu texto, na hora em que vou escrever, normalmente já é pensado ou para crianças, ou jovens. É para esses leitores que escrevo, é neles que penso quando imagino minhas histórias. Talvez por ter o meu primeiro leitor, o escritor Ricardo Filho, muito das características daquele menino e jovem leitor apaixonado pela leitura do passado. Esse menino revive quando escrevo, é por ele e para ele que o texto flui. Embora eu continue lendo muito, aquele fogo, aquela paixão, a capacidade de varar uma noite inteira lendo, isso tudo ficou lá atrás, virou saudade. O ponto de partida para se alcançar esse público-leitor é esse, a capacidade de voltar a ser criança na hora de escrever. E conseguir enxergar as histórias que estão por aí. A ficção sempre parte da realidade.
• Quais são suas principais preocupações ao escrever para este público? Alguma delas diz respeito aos pais que vão ler junto a seus filhos?
De maneira geral a minha preocupação é, principalmente, contar uma boa história. Como já disse, eu escrevo, na prática, para o menino que fui. Ele é um leitor exigente e experiente. Quer que o texto seja bem escrito do ponto de vista formal, deseja se emocionar, divertir-se, fantasiar, ser fisgado pelo texto e encontrar prazer na leitura. Só que isso tudo acontece naturalmente. Procuro me afastar daquela visão inicial da literatura infantil e juvenil, dos primórdios dela, da idéia de que preciso passar ensinamentos. Preocupo-me em manter uma visão humana das pessoas e passar esse contexto para as personagens. Definitivamente não me preocupo com os pais. Quero agradar aos filhos. Mas tenho certeza de que mantendo as qualidades principais aqui colocadas, por tabela, também os comovo.
• A partir de seu estudo sobre a área, quais erros e acertos da atual produção brasileira o senhor destacaria?
Errado é querer passar ensinamentos morais no texto. Isso é velho, antigo, incomoda. Certo é poder falar qualquer coisa, não limitar os assuntos com tabus — tudo pode ser tratado, desde que com sensibilidade. Está aí a Lygia Bojunga, que não me deixa mentir. Considero A bolsa amarela e Sapato de salto, duas obras escritas por ela, marcos da nova literatura para jovens. Outra coisa bacana que está acontecendo é a evolução dos textos visuais. Temos hoje grandes ilustradores. Eles estão transformando a literatura infantil, aliando-se aos textos verbais e construindo um todo maior, mais inteligente, ajudando na tarefa de conquistar os pequeninos. Gente como Nelson Cruz, Roger Mello, Odilon Moraes e Fernando Vilela, só para citar alguns, está construindo, com suas imagens, um diálogo muito importante com os leitores.