O cineasta Luis Buñuel conta que os surrealistas atacaram e destruíram um bulevar nos anos 30, porque o dono batizou o lugar de Cantos de Maldoror, obra máxima de Lautréamont. O fanatismo purista dos adeptos do poeta não permitiram que o comércio se apropriasse do título do livro.
Essa veneração intolerante explica os efeitos que Lautréamont provocou — e ainda provoca — na história da literatura. Nunca uma obra foi tão clara, ao contrário da biografia misteriosa do poeta que mal preenche as linhas pessoais de um verbete na enciclopédia. Chega a ser um crime falar em vão o nome de Isidore Ducasse (1846-1870), autodeclarado Conde de Lautréamont. Foi um dos adolescentes geniais de vida curta, filho único da poesia ao lado de Rimbaud e do dramaturgo Georg Büchner. Morreu aos 24 anos, mudando definitivamente a lírica francesa dos meados do século retrasado. Com o pai cônsul francês em Montevidéu, Isidore passou a primeira metade de sua vida na capital do Uruguai, tendo sido encaminhado à França para completar seus estudos. Há boatos que participou dos círculos revolucionários. Em 1869, publicou a versão completa dos Cantos de Maldoror. Mais do que isso, pouco se tem certeza. Suposições foram feitas ao longo dos anos, em função da crueldade histérica de seus escritos, do debate de uma homossexualidade na subcorrente dos textos e outros pormenores como o complexo de castração que só serviram para garantir aposentadoria a alguns exegetas. Lautrémont é um Sade em versos. Como dizia Mario Faustino, representa um anunciador como São João Batista. Fez um escândalo ao misturar o animal e o mito, atendendo a um único desejo: o de querer atacar e esmagar tudo o que respira. Surpreendeu o bom gosto da época (de todas as épocas) com a ferocidade do bestiário e instinto erótico-agressivo. Para se ter uma noção da arena zoológica, 185 animais diferentes são citados nos cantos e mais de 400 referências à vida animal. A animalização ducasseana corresponde a uma adoração da metamorfose, da fusão entre os mundos e da execração dos hábitos. “Os piolhos me roem. Os porcos, quando me olham, vomitam.” Anticanônico por excelência, Lautréamont conseguiu escrever a loucura e fazer a loucura escrever. Desmoraliza a si mesmo para ultrapassar o mundo podre. Destrói o universo ao pensá-lo. É quase impossível ler sua poesia nervosa e terrificante sentado. Preferível que seja de pé, em estado de alerta. “Devemos deixar crescer as unhas durante quinze dias”, recomendava.
O que era maldição, o escritor brasileiro Ruy Câmara, 49 anos, transformou em bendição. Natural de Recife e radicado em Fortaleza, estreou com uma maturidade invejável. Abdicou da carreira empresarial e mergulhou na clarividência e cegueira verbal. Com Cantos de outono, decidiu reconstituir a passagem meteórica de Isidore Ducasse. A partir de poucas cartas deixadas e viagens repisando a via-crúcis, compôs uma sinfonia do indizível, descrevendo o que poderia ter pensado e sofrido o poeta maldito. Fez uma biografia da imaginação, sentindo como e no lugar do autor. Uma vida imaginada é a forma mais fiel e violenta de vivê-la. Como aponta Ivan Junqueira na apresentação, “se já é espantoso o que conseguiu reunir o romancista no que toca a uma documentação já esquecida ou ignorada, mais espantoso ainda é como operou o milagre de conferir tamanha veracidade ficcional a todo esse frio e distante resíduo biográfico”.
Em uma prosa lírica, minuciosa e sensível, Câmara explora o espírito da leitura a partir da ficção, narrando um encontro entre Baudelaire e Ducasse, onde a mãe do segundo teria sugerido o clássico título “Flores do mal”. Mesmo se Cantos de outono não tematizasse a biografia de Lautréamont, ainda assim a prosa voluptuosa compensaria o fluxo da consciência: “Só não sabe o que é depressão, quem não teve infância, nem adolescência, ou aquele que já morreu e não deu conta do fato, ou está muito velho e cansado para admitir que só vale a pena viver quando os limites não são impostos pela prescrição do tempo, ou da bula farmacêutica, que sem alarde, insinua que é hora de partir”. Méritos para Ruy Câmara, que não compete com Lautréamont, nem o substitui, mas permite uma paridade piedosa e compreensiva, própria de quem voltou do inferno e não se arrepende das lembranças. Não imita o poeta como um copista. Porém, estranha sua dicção com um distanciamento íntimo. Projeta o tempo perdido com reversões, espiando pela linguagem tal buraco da fechadura. A erudição é de menos, o que fica inscrita é a alegria da expressão, de tomar o partido das coisas antes e depois do toque.
Em entrevista exclusiva ao Rascunho, Ruy Câmara absorve um dos mandamentos de Lautréamont: se não podemos chorar com os olhos, que seja com a boca.
• Escolheu como romance a trajetória de um dos poetas mais lacunares da história, com percurso cheio de lapsos e pontos de interrogação até mesmo para os historiadores e críticos literários. Quase toda a biografia de Isidore Ducasse ferve no escuro?
Quem saberá? Ducasse nunca foi e nunca será um personagem de fácil alcance. Se fosse, as inúmeras tentativas de sua reinvenção não teriam naufragado ao longo dos séculos 19 e 20. Para alcançá-lo, eu tive de cavar nos abismos insondáveis da sua memória, subir ao cume da sua imaginação com toda a minha carga de verdades para arremessar tudo nas páginas de Cantos de outono. Agora que entrego aos leitores o romance da vida de Lautréamont, posso afirmar que foi o seu “quase nada biográfico” o real impedimento que levou grandes nomes da literatura universal à total frustração. O que dele existe concretamente se resume a uma certidão de nascimento, encontrada na catedral de Montevidéu; um livro terrível, intitulado Les Chants de Maldoror, publicado em 1868; um livro inacabado, intitulado Poesie-Préface à un livre futur;, sete cartas manuscritas, hoje em poder de uma corporação japonesa; uma foto de sua formatura, encontrada no antigo Liceu Imperial de Pau e um atestado de óbito, expedido pela prefeitura do Sena. Talvez por isso, os autores que me precederam, diante da escassez de registros, se extraviassem logo no início das pesquisas. Outros, por questões elementares de rigor e ortodoxia, ou porque se viram diante de uma obra estranhíssima, estigmatizada por um encadeamento sucessivo de algenias e esquecimentos, simplesmente desistiram da empreitada. Nos Cantos de outono o que procurei fazer além de exprimir a estética ducasseana e abranger os pormenores de sua vida, foi dotar de sentido os seus pesadelos, o seu imaginário, a sua fúria, a sua lógica de composição, sempre em confronto com o racionalismo do seu tempo.
• Como aconteceu o baque da escolha pelo autor?
Senti o primeiro baque em 1991, quando abdiquei da carreira empresarial para me dedicar ao ofício literário. O grande problema era encontrar um personagem incomum que encarnasse em si o desencanto que aflige a indivíduo oprimido pela família, pela sociedade e pelo Estado. De fato eu procurava um ente como ele, acuado no seu próprio dilema, sem espaço para se expressar, sem o recurso que se busca nas alturas e insubmisso à lógica vigente. Talvez eu andasse em busca do meu “eu essencial” ou de um autor que me permitisse compreender algo que jaz no íntimo mais profundo de cada grande poeta e escritor. Mas o baque que culminou com a reinvenção de Lautréamont só se materializou com a leitura de Les Chants de Maldoror, surrupiado pelo poeta José Alcides Pinto de uma importante biblioteca, e que caiu em minhas mãos em 1996. Ainda lembro do rosto de pavor de minha mulher, Rossana, quando decidi sair no rastro de um avantesma genial que ainda hoje deambula sem rumo na mente de muitos poetas. A aventura que começou no número 7 da Faubourg-Montmartre, em Paris, logo se estendeu para o sul da França, onde palmilhei as ruas de Biarritz, Bayonne, Pau, Tarbes, Bruxelas e, por fim, Montevidéu. Outro baque foi quando tive a certeza do “nada biográfico” desse personagem estranhíssimo. Sem falar da dificuldade maior: achar o momento certo para penetrar na sua redoma de tédio e desvelar o seu universo, um anti-universo obscuro e aterrador, que se encolhia a cada tentativa minha de sondar as suas profundezas. Quando sentei para escrever o romance, experimentei na própria carne um sofrimento quase expiatório. Demorei três anos para finalizar a obra, temendo atentar contra a vontade dolorosa e degradada do meu personagem.
• Não houve vontade de recuar?
Claro que sim. Ninguém sobrevive impunemente a uma temporada nas trevas de um gênio. Reinventá-lo exigiu-me tempo, desprendimento e muito esforço intelectual. Cantos de outono é o final de um percurso realizado, um percurso que dificilmente ousarei repetir. No início eu tinha convicção de que havia material suficiente para uma biografia fidedigna. Com o andar das pesquisas fui descobrindo o contrário. Aí, precisamente, vi-me envolvido numa armadilha real. Já havia consumido boa parte das minhas economias e não conseguia vislumbrar nenhuma direção a tomar. Nos momentos de absoluta incriatividade, pensei em abandonar o projeto. Noutro momento, quando surgia uma sacação mais ousada, o trabalho era retomado com tanta euforia, que ficava difícil conter o ímpeto. Só depois, quando visualizei as circunstâncias que me levariam ao desfecho, percebi que, quando a arte precisava triunfar sobre a racionalidade seca e objetiva exigida numa dada ação, minha consciência escapava para a anti-sala da razão e eu me via novamente perambulando em Paris, Pau, Tarbes, Bruxelas, Montevidéu, ora diante de uma tumba, ora encafuado naqueles cenários taciturnos, cercado de pensamentos e aflições, como se fizesse mesmo parte de todo aquele imaginário que recriava. Dias ou mesmo semanas numa página que não se resolvia. Nas altas noites, quantas vezes me vi só, inteiramente perdido nas veredas flexuosas e escuras das próprias idéias, preso às abstrações mais complexas da mente, sem saber como conduzir o personagem para uma conclusão. Lembro-me bem de um episódio ocorrido em Paris, no quarto 56 do Hotel do Cais Voltaire, o mesmo que serviu de refúgio e covil a Baudelaire, Wagner, Lautréamont e Oscar Wilde, que me obrigou a refletir e a rescrever os momentos que precederam o suicídio de Ducasse. Era madrugada. Relâmpagos, trovões e ventava, e chovia intensamente. Eu estava completamente esgotado e desmotivado para escrever o epílogo. Já havia bebido uma garrafa de vinho tinto quando tive a estranha sensação de que o gênio de Lautréamont conseguia transitar livremente nas zonas de intransitividade dos meus sentidos. O que ocorreu, aos parâmetros da razão absoluta, parece surreal, mas aos parâmetros da arte, tudo é possível. Consegui levá-lo ao calvário e finalizei o livro.
• Phillipe Soupault dizia que Lautréamont nunca seria um personagem histórico, porque estava fora da história literária e dos costumes. O senhor contradiz essa tese?
A história da literatura universal seria mais picante se fosse examinada pelos equívocos de juízos, de memória e sobretudo pelo confronto de egos em cada tempo. Não há dúvidas de que todas as tentativas de anular a importância histórica de um autor que ainda hoje influencia gerações naufragaram no próprio vazio das más-intenções. Tanto é verdade que, desde André Gide, um dos primeiros a chamar a atenção para o autor dos Cantos de Maldoror, Lautréamont vem resistindo a toda sorte de ataques e, no entanto, sua obra ganha a cada ano edições e reedições em diversos idiomas. Phillipe Soupault também era, no início dos anos 20, um apaixonado pelo precursor do surrealismo, tanto que, em 1927 editou Obras Completas de Lautréamont. Sua iniciativa, reconhecidamente louvável, logo despertou ciúmes na tríade, Breton, Aragon e Éluard, que se arrogavam únicos donos de Lautréamont. Não fosse a iniciativa de Gide e depois de Soupault, Lautréamont não teria sido examinado pelas lentes de Gaston Bachelard. Creio que Soupault o atacou por vingança ou revolta pelo fato de haver ele sido proscrito da camarilha surrealista liderada por Breton.
• O que Lautréamont ainda tem a nos ensinar?
Não sei dizer. Eu aprendi muito com os poetas absolutos, afinal só eles e os deuses sabem, por experiência vivida, que o ato da criação é uma eternidade sufocante. Quem lê Lautréamont com a pressa de quem governa os negócios do mundo jamais poderá compreender porque uma metáfora de usura que hiperboliza o real, pode ser o próprio real de cada um que esvoaça a cada piscar de olhos. Nos dias atuais não há lugar para um autor de leitores secretos. Contudo, tenho a impressão de que muitos autores importantes da atualidade ateariam fogo em suas letrinhas se ousassem ler apenas o Canto Primeiro de Lautréamont. O mesmo vale para a crítica literária comprometida com o negócio literário e não com obras literárias. Essa gente desconhece que somos a renovação. Sequer tomam conhecimento do que a nossa geração, autores quarentões, vêm produzindo. Num país de analfabetos funcionais, são raríssimos os leitores que não se submetem aos rigores da propaganda enganosa. Até os maus leitores, esses que exigem dos autores que se exprimam em curtas linhas, têm muito a aprender com Lautréamont. Quem lê bem, suporta melhor a solidão dos caramujos, aprende a descobrir na leitura o prazer da demora; aprende a não berrar nos ouvidos do Senhor simplesmente porque se sente afetado pelo excesso de otimismo que transborda da subliteratura de ajuda; e por aí.
• O Uruguai, país em que Ducasse passou a primeira metade de sua vida, também teve a presença de outros dois poetas franceses: Laforgue e Supervielle. Há um estudo interessante de Emir Rodriguez Monegal, que assinala que a passagem uruguaia e a língua espanhola foram influências decisivas na composição poética de Lautréamont. O senhor concorda com essa percepção de uma língua subterrânea no andamento dos Cantos de Maldoror?
Acredito que o castelhano sempre esteve na gênese do pensamento de Isidore Ducasse. As vozes que ele fez reverberar nos Cantos de Maldoror nada mais são do que os ecos da sua infância em Montevidéu. Não há como negar que o castelhano tem grande influência na sua composição e na sua linguagem. Percebe-se isso até mesmo nas suas improbidades estilísticas, que são, de fato, as marcas que caracterizam um autor em processo contínuo de mutação. Em função dessas flutuações ele se via constantemente ameaçado de falência criativa. Como ignorar que o seu pseudônimo e o personagem Maldoror são reflexos da sensação sinóptica de tudo o que Isidore Ducasse apreendia como experiência sensível na infância? A crítica mundial precisa reparar um erro imperdoável que se repete desde o século 19, tocante ao pseudônimo “Lautréamont”, que não é plagio de Eugène Sue. Sustento uma tese que exprime rigor e consistência e surgiu da associação da palavra “l’autré”, que significa “o outro”, com a preposição “a”, que indica lugar e como sabemos ser o “a” um metaplasmo de acréscimo que chamamos de epêntese, uma vez justaposto à “mont”, raiz de “Montevidéu”, resulta literalmente em Lautréamont, cujo sentido exato, preciso e incontestável é “o outro de Montevidéu”, já que o primeiro é ele próprio. Isso prova cabalmente que o bilingüismo sempre esteve na base do seu pensamento, um pensamento em perpétuo conflito de identidade.
• Cantos de outono oferece uma certa crueldade narrativa nos permitindo olhar com tanta nitidez o que não enxergamos. Percebo um “byronismo” de estilo, remetendo mais a sensação do lugar do que ao lugar propriamente dito?
A nossa imaginação é livre e ilimitada quando os eventos evocam crueldade e ternura. Quando alguém penetra num espaço sagrado, implica imaginar um reino que não pode ser visto concretamente. O mesmo ocorre quando fazemos ficção. Reinventei Lautréamont como se buscasse uma síntese própria de compreensão para justificar a maior estupidez humana: o suicídio. Motivado por essa secretíssima tentação ele se desloca nos espaços imaginários e atua num tempo narrativo que se projeta e se contrai para nos dar uma nova dimensão do universo que ele gostaria de criar ou de destruir ao seu modo. Eis a sensação de lugar e não de lugar real. É precisamente essa sensação que nos incomoda. A crueldade narrativa nos Cantos de outono ganha mais potência quando o leitor consegue abranger o grande conjunto que conforma o real ducasseano e também os pormenores de uma época caótica. A crueldade narrativa percebida nos Cantos de outono, evoca a melhor das intenções de Maldoror, personagem de Lautréamont, que prefere um espinho à navalha, cuja ação é mais cruel do que mortífera.
• Cantos de Maldoror é movido pelo desejo de encontrar. Seu livro corre na mesma inquietação: Ruy Câmara quer se encontrar na estranheza do outro?
Eu escrevo para conquistar o espírito do leitor. Se o que digo aqui não causar estranhamento algum, significa que não estou dizendo nenhuma novidade. Quem se ocupa com a literatura tem no íntimo uma necessidade de se expressar e de ser reconhecido pala sua diferença em relação ao grande conjunto, seja pelo seu posicionamento, seja pelo seu estilo, seja pela sua verdade, seja pela estranheza que desperta no outro. O perigo é quando a estranheza do outro se desloca para a cadeia de reduções que empobrecem a vida.
• Foi necessário se libertar de Lautréamont para ser fiel a uma primitividade poética de sua escrita?
Após um intenso convívio com uma obra alquímica e alucinatória, foi dificílimo impor a minha primitividade e o meu estilo literário na composição de Cantos de outono. Somente me vi completamente livre para seguir o meu caminho, quando penetrei, enfim, no crepúsculo de Lautréamont.
• Percebo que há um sentido de devorar os livros, como o dele de devorar o mundo (acentuado pela transgressão biológica e verbal de Lautréamont). O senhor acredita que a poesia é — e deve ser — uma forma de agressão (“propus-me a atacar o homem”)?
Não, claro que não, mas nada impede que a poesia se preste a esse fim. A poesia de revolta nasce da necessidade humana de ver a ação representada, não pacificamente, e sim através de um conflito de circunstâncias. Conheço poetas que fazem de sua poesia um instrumento de açoite; outros se servem da poesia como instrumento de pregação moral e religiosa; outros como instrumento intelectual de rebeldia, e há os que simplesmente nada conseguem, nem mesmo plagiar. Um belo poema não muda a vida de ninguém, mas pelo menos serve para animar uma triste vida com um pouco arte.
• O suicídio da mãe de Isidore Ducasse, até então desconhecido para a maioria de seus leitores, aparece como chave de interpretação da personalidade ruidosa do autor. Lautréamont teria perdido o medo da morte, havia a ultrapassado pelo tédio?
O suicídio de Célestine foi um incidente insuperável na vida de Isidore Ducasse. Esse incidente foi decisivo na formação da sua personalidade e do seu caráter. Servi-me desse ponto de partida para estruturar toda a ação dramática do romance. O incidente passou a ser uma lacuna e uma solução para o encadeamento do processo. Nos pesadelos de Isidore Ducasse a figura da mãe aparecia sempre como uma imagem entressonhada. Quando ele se viu transplantado de Montevidéu para uma prisão escolar no sul da França, a idéia maligna do suicídio passou a ser encarada por ele como uma forma de ruptura com qualquer fundamentação absoluta. Apesar de tudo, o ódio que ele sentia ou fingia sentir pelo mundo e pelo pai, não resistia a um naco de afeto. Não era um ódio legítimo.
• Em Cantos de Maldoror, um equívoco é pensar no homem como protagonista. Na verdade, ocorre uma paridade entre o animal e o mito?
Nos Cantos de Maldoror o homem é um animal instintivo que tem toda a animalidade a sua disposição. É o agente totalizador do mal, um mal que hiberna e evolui de forma ambígua para a esfera social. Bachelard foi preciso quando disse que atribuir uma forma humana à animalidade de Maldoror seria retardá-la, seria fazê-la perder a grandeza do ato automático, seria o mesmo que impor racionalidade pura numa ação abrupta, reflexo do instinto. A densidade animalesca ocupa todo o cenário da ação. Quando Lautréamont realça a dor, não atribui a dor uma causa decorrente de uma ação, mas a uma duração temporal. “O que queima não é a chama, mas o tempo de exposição ao calor.” Percebe-se que a sua vontade de viver colide com o querer atacar, que ganha uma aceleração imediata. O ser agressivo de Lautréamont ataca num momento em que nenhuma ação é esperada. Contrariando essa mesma lógica, o rinoceronte aparece no enredo como um deus pesado e inativo e não tem, apesar dos chifres, qualquer ação ofensiva. Quando a serpente devora um animal gigantesco, sua boca cresce como se o órgão entendesse o tamanho do seu apetite. O bico que estala quando a coruja branca em seu vôo oblíquo rapina um pintinho do pomar, alimento vivo e doce para seus filhos, o trissar é pura felicidade e vida. Isso é genial. Por outro lado ele exalta a garra em sinal de terror. Mãe, olha aquelas garras, tenho medo delas.
• As palavras são seres fermentados, vivos, alheios à própria escrita?
As palavras são os meios pelos quais os seres vivos se expressam e registram as suas experiências, reais e imaginárias. A palavra suficiente pode ser o recurso do discurso, da comunicação, da linguagem e carrega, quase sempre, um significado aliciante. No purgatório das ideologias, certas palavras são mais poderosas do que a própria razão humana. Certas palavras podem nos enfiar no anátema da maldição; podem nos levar aos pântanos movediços das ratoeiras crucíferas, da verdade que interessa etc. Quantas palavras assumiram a condição de seres reais. Uma alma ingênua, pia e seráfica, quando recebe o anestésico da palavra, morre ciente de que jamais sentirá o calor do prometido inferno. A palavra morte poderá levar o leitor a admitir que a extinção do ser é a realidade sumária e definitiva que se manifesta uma única vez. No inferno das palavras até o paraíso celeste pode ser uma realidade insuportável para um sujeito apegado às coisas carnais.
• Em seu romance, o senhor conseguiu criar uma empatia e uma cumplicidade com o leitor, que passa a ser álibi de sua visão. Faz valer a expressão de Bachelard: “não consigo compreender uma alma sem transformar a minha”?
A cumplicidade do leitor é uma qualidade que se afasta sem sair de vista porque a literatura também é um meio lícito de mostrar e esconder a verdade. A cumplicidade sempre foi uma necessidade social. Como ignorar que o fundamento de certas “ciências” é precisamente a cumplicidade da cátedra? O mesmo vale para a literatura. Não haveria escritores sem a cumplicidade dos leitores. E também para boa parte da história universal, que também se ancora no abrigo dos simulacros. No campo da ficção o leitor se torna cúmplice do autor quando percebe que o personagem, aqui e ali, tal uma entidade pensante, também tem lá os seus subterfúgios. Quando um romancista corre para o campo da redução eidética, que objetiva transformar os fenômenos em essências, ele corre o risco de alcançar a pura esterilidade da arte. No momento a única coisa que me seduz é a literatura, que sendo idéia, é farsa e ludicidade, tal como os são os fundamentos do Capitalismo, da Política, da Globalização, sem falar do que tomamos por democracia, estado de direito e liberdade. Nem como sociólogo eu me vejo atado ao empirismo tosco e estéril que se arroga científico na recente era da ditadura da ciência.
• A velocidade das descrições de Lautréamont só encontra um equivalente na lentidão de Kafka. Os extremos se tocam?
De certo modo sim. Gaston Bachelard foi o primeiro a fazer a aproximação desses extremos quando percebeu que a metamorfose em Lautréamont é urgente e constitui a maneira de realizar o ato. Em Kafka, identicamente, a metamorfose também é imediata, mas a ação, não. Gregor Samsa já acorda transformado num escaravelho. De aí em diante todos os seus atos são lentos. Ao menor esforço fica ofegante. Sua vida passa a ser uma animalidade que decresce. Fica ali durante horas a balouçar a cabeça, de olhos fechados, sem querer levantar-se, vivendo um tempo que não passa. Gregor Samsa come, mas não engole o alimento. Sua preguiça orgânica é mais triste do que o enfado. Em Kafka, a força parece morrer porque o querer viver se enfraquece. Já em Lautréamont, o querer viver se exalta com ímpeto. Tudo é ação, tudo é cinetismo puro. A linguagem não é a expressão de um pensamento prévio. É a força psíquica que se torna linguagem elaborada. A garra que toma a presa é rápida, e mais rápida ainda é a devoração. Em Lautréamont, tudo é descontínuo e ocorre no preciso momento da decisão, que é imprevista.