Para diminuir o peso da morte

Entrevista de Alexei Bueno concedida a Álvaro Alves de Faria
Alexei Bueno, autor de “Poesia reunida”
01/03/2004

• Existe alguma coisa de novo na poesia brasileira atual?
Não me importa, ao tratar de arte, se existe algo de novo, mas sim algo de autêntico, algo de grande. Essa história de novidade é muito boa para o mundo da moda, a indústria fashion, o tempo da arte é outro, o objetivo também. Recuso-me a tratar da obra de arte como se falasse das tendências para o outono-inverno, para o prêt-à-porter ou para a moda teen. Todas as grandes alterações da história da arte foram movidas por sutis e implacáveis mudanças de sensibilidade, não por essa vontade explícita da novidade, a neofilia pura, inoculada no século 20 pelas suas vanguardas, tão acabadas e fracassadas como as suas utopias políticas, mas que até hoje entusiasmam e sustentam uma legião de canastrões. Essa questão, desde os anos de 1980, desvelou-se com clareza total para qualquer pessoa interessada em estética no mundo civilizado, mas sobrevive até hoje em variados bolsões de ignorância, sobretudo no nosso Terceiro Mundo.

• O que significa ser poeta no Brasil? A poesia é levada a sério neste país?|A única coisa levada a sério no Brasil é o assalto ao dinheiro público, a concussão generalizada. O que me consola é que produzimos algumas coisas extraordinárias, à revelia da nação, como diria Baudelaire. Um país que gerou duas epopéias, Os sertões e o Grande sertão: veredas, a nossa Ilíada e a nossa Odisséia respectivamente, possui alguma coisa de extraordinário. Assim como a obra do Aleijadinho, as grandes composições de Villa-Lobos, as obras-primas de Glauber Rocha. E toda uma grandíssima poesia e uma grandíssima ficção, de Gregório de Matos e Gonçalves Dias a Bandeira, Cecília e Drummond, de Memórias póstumas de Brás Cubas e O Ateneu até Fogo morto, e etc. etc. etc. A poesia, no entanto, é a mais silenciosa, a mais discreta dessas manifestações. Não o era no Romantismo, mas no último quartel do século 20 submergiu como nunca nesse território rarefeito e aristocrático.

• Você é um poeta de 40 anos e já tem publicada sua obra reunida. São 21 anos de poesia. Uma obra consistente. Por que reunir a obra poética agora?
Já a reuni em 1998. Volto a fazê-lo agora porque a edição estava esgotada, porque pude acrescentar a ela os dois últimos livros e, sobretudo, corrigir várias coisas. O que há de mais sagrado para qualquer escritor é ter o seu texto o mais correto possível, e nesse aspecto a possibilidade de reeditar é preciosa. Por outro lado, o leitor interessado pode encontrar tudo que escrevi num livro só. Descobrir todos os livros, um por um, nas livrarias, seria um trabalho de Hércules. Como todos sabem, os livreiros no Brasil compram um, dois ou três exemplares dos livros de poesia, mas mesmo que eles sejam vendidos no primeiro dia quase nenhum os repõe. Como creio que o que escrevi tem uma visível unidade interior, embora formalmente seja o contrário, é óbvio que a leitura em conjunto é o ideal. A origem, porém, dessa indagação sobre “por que reunir agora?”, que é muito comum, é que hoje em dia ter 40 anos é ser muito jovem, estar na puerícia. O afastamento da noção de mortalidade no Ocidente está se tornando ridículo. Se um homem morre com 108 anos é capaz da família sair clamando por erro médico! Ora, como pessimista perfeito, velho leitor de Schopenhauer e de Cioran, e obcecado com a efemeridade e, sobretudo, com a apavorante aceleração psicológica da passagem do tempo, sinto-me uma múmia. Numa terra onde Álvares de Azevedo morreu com 20, Casimiro de Abreu com 21, Castro Alves com 24, Augusto dos Anjos com 30, Raul de Leoni com 31, Fagundes Varela com 33, Cruz e Sousa com 36, ter 40 anos é realmente ser uma provecta individualidade muito merecedora de reunir o que publicou. E não me venham falar no avanço da medicina.

• Quero perguntar a você o que costumo a perguntar a todos os poetas: afinal, para que serve a poesia?
Esta pergunta é, de fato, tão infalível quanto improcedente. Há coisas que são e coisas que servem. Será que alguém já se postou perante A jangada da Medusa de Géricault e perguntou “para que serve?” Para que serve o Apolo do Belvedere, a Sétima Sinfonia de Beethoven, a Tabacaria de Fernando Pessoa, o Partenon? Para que serve o Pão de Açúcar ou as cataratas do Iguaçu? Essas coisas são, não servem, e são os marcos para a nossa própria condição de ser. Se alguém abre uma caixa de ferramentas e encontra um instrumento desconhecido, aí há sentido em perguntar “para que serve?” Em arte não significa nada, embora ela tenha infalíveis efeitos colaterais como afinar a sensibilidade, ampliar o autoconhecimento, aguçar a compreensão do mundo, engrandecer o espírito humano e diminuir o peso da morte.

• Você costuma dizer que o parnasianismo foi o concretismo da República positivista e que o concretismo foi o parnasianismo da ditadura militar. Você pode explicar isso?
Claro. São duas escolas intrinsecamente inautênticas, ou seja, surgem de uma teorização prévia, de uma estruturação conceitual e formal anterior à existência da poesia, do mesmo modo como foi o arcadismo. Neste havia a imitação totalmente deturpada da Antigüidade, as academias, os nomes arcádicos, os anagramas para as musas etc. No parnasianismo, tínhamos a perfeição formal absoluta, as consoantes de apoio, o ideal escultórico, o historicismo fajuto e a famosa impassibilidade. No concretismo, tivemos o fim do ciclo histórico do verso, o ideograma, o plano-piloto, e outras sensaborias igualmente risíveis. Da mesma maneira que o parnasianismo, na nossa belle-époque positivista e laica, escamoteava com os seus versos de salão a miséria trágica da maior parte desse país de papudos, impaludados e analfabetos — até que Euclides da Cunha genialmente lhe esfregasse a verdade na cara — nos anos da ditadura militar o concretismo se consolidou como o último estado oficial da poesia brasileira, amparado nos pusilânimes universitários e nas mediocridades inumeráveis. Isso vinha nos livros didáticos, no fim da escadinha cronológica das escolas. E como no mundo do capitalismo tecnológico o que é mais novo é melhor — seja um computador, uma geladeira ou um DVD — o ápice da poesia mundial, desde Homero, era o concretismo paulista, com os seus bardos da marginal Tietê ou do bairro do Limão. Haja saco.

• A poesia concreta contribuiu em alguma coisa para a poesia brasileira?
Contribuiu com as traduções, às vezes muito boas, que puseram em circulação — mas sempre pela ótica sectária — certos poetas importantes que os leitores sem maior conhecimento de línguas e acesso a livros importados não poderiam conhecer.

• Os poetas Mário Chamie e Affonso Romano de Sant’Anna costumam dizer que os concretistas formam uma espécie de máfia na literatura deste país. Você concorda com isso?
Isso é fato notório, do qual nem há mais o que falar. É a lógica, aliás, de qualquer vanguarda, com a sua tendência totalizante e totalitária, sua doutrinação, seu sectarismo. O próprio Mário Chamie, se tivesse conseguido sucesso na tomada do poder executada pelos concretistas, teria organizado a sua própria máfia, não tenham a menor dúvida disso, e teríamos a máfia práxis em vez da máfia concreta. É da índole intrínseca dos criadores de vanguardas. Por acaso quem dominou as universidades e as idiotias foram os concretistas e não o Chamie, sob vários aspectos dotado de um talento verbal maior. Essa história das vanguardas, como disse, começou a desmontar desde os anos de 1980, embora se perpetue no milionário mundo das artes plásticas. Ninguém consciente agüenta falar mais disso, e a mim me causa tédio infinito.

• Como você situaria a poesia brasileira no mundo?
Situo-a dentro do mundo da poesia em língua portuguesa. Creio que a grande unidade de uma literatura é a língua, não a nação. Imagine se falássemos de literatura inglesa sem a Irlanda? Na verdade falamos de literatura de língua inglesa, isso sim. Não há compreensão possível da poesia em português sem as figuras supremas de Camões e Pessoa. Sem Camões mal podemos falar da língua literária. Todos os pedantes colonizados, quando falam de Guimarães Rosa, sacam da manga a grande influência de Joyce. Ora, a grande influência de Guimarães Rosa na criação do seu estilo pessoal foi a do português Aquilino Ribeiro, prosador genial e nunca lido pelos nossos anglófonos pedantes. Quem quiser encontrar a mais velha matriz do insuperável Grande sertão: veredas leia as duas ou três primeiras páginas da novela O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, e depois venha me falar de Joyce. Logo, como disse, não separo a poesia brasileira da poesia geral em português.

• Há quem diga que a poesia brasileira é uma das mais ricas do mundo. Isso é verdade?
É a típica afirmação inverificável. Quantas línguas é preciso dominar para afirmar isso, ainda mais em se tratando de gênero de tão difícil tradução como a poesia? Posso afirmar que na década de 1960 o Brasil teve um dos cinemas mais extraordinários do mundo, mas o que sabemos da poesia na Hungria ou no Irã? Para mim não passa de uma frase de efeito, sobretudo sem a existência de uma distância temporal.

• Quero que você fale de você. Quem é Alexei Bueno?
Sou carioca, 40 anos, tenho um filho de 10 e dois ex-casamentos. Apesar de carioca, sou quanto à ascendência um ítalo-cuiabano. Pelo lado materno, descendo diretamente do famoso Anhangüera, grande predador de índios, descobridor de ouro e incendiário de aguardente. Quase toda essa família é de militares, incluindo alguns heróis de guerra, além de ter tido um jornal abolicionista e republicano em Cuiabá. Como meu pai, de pura ascendência italiana e nascido no interior de São Paulo, é engenheiro de blindados, sou de fato, atualmente, o único civil da minha família. Vivo exclusivamente, e muito mal, das letras, como editor, como autor, escrevendo para jornais etc. Considero o Brasil um dos países mais diabolicamente impiedosos com seus cidadãos na face da terra. A opressão estatal e financeira que se exerce sobre cada infeliz aqui nascido é digna do Inferno de Dante. Para suportar isso, felizmente, há os amigos, as mulheres, as bebidas e a arte, senão ninguém agüentava.

LEIA RESENHA DE POESIA REUNIDA

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho