Lorde é o último romance romântico da literatura brasileira. Eu ainda me sinto perdidamente apaixonado pelo protagonista. Não quero saber de caos urbano, nem muito menos metafísico. Quero um ninho onde ele possa me agasalhar com todas as suas contradições e faniquitos — que não são poucos, sei.
Aparentemente Lorde se divide em três planos: o do real, o do psicológico e o do fantástico. Esses planos se entrelaçam e se fundem, mas mantêm a individualidade. A construção da narrativa buscou os três mundos voluntariamente?
Ao meu ver a força predominante do romance é a do Supra-realismo. Tanto a realidade quanto às intrincações psicológicas não são levadas tanto em conta. Agora, nada disso provém de um ato voluntário. O fato é que a minha visão de mundo, desde as entranhas, é regida por essa fantasmagoria ocasionada por um indivíduo com uma deformidade mental, que não se contenta em registrar o mundo ordenado por causas figurativas e psicológicas construtivas, civilizatórias, digamos.
“Cheguei à nítida conclusão de que a vida não me queria em perfeitas condições, é isso. Deu-me sete livros, é verdade. Mas, apesar deles onde eu encontrava a minha autonomia? Até quando escravo de uma maquinação secreta sem vislumbre de alforria? Já falei, ser escravo não é nada, mas que se saiba realmente de quem ou do quê”, afirma o personagem de Lorde. A voz do autor não se confunde com a do personagem, é certo. Mas em que medida a afirmação do personagem faz sentido para o autor?
Sim, faz o mais total sentido, porque se a literatura ainda tem uma função, é a de apontar que as engrenagens do cotidiano são escravocratas, te levam daqui prali sem que qualifiquem essa ação com uma produção de pendor verdadeiramente humano. Resta para você se sentir seduzido pela camisa da vitrine. Ou de escapar pelo sono. Quem foi que deu essa canhestra administração aos nossos dias? E o pior, quem nos dá alforria (doce esperança!) desse estado de entorpecimento que só nos dá alívio no sono? No sono, falei, não em sonho…
Alguns símbolos são muito recorrentes na obra, como por exemplo a queda. O personagem é vítima muitas vezes de fraquezas físicas que o levam ao chão. Também o personagem inglês responsável pela ida do narrador para Londres, busca a redenção por meio de seu ato voluntário de queda. Essa imagem pode ser associada ao fraco, ao fracasso. O delirante Lorde é para o autor um fracassado?
O delirante é um fracassado. Somos como pequenos adões e evas sofredores da queda ocasionada pelo delírio demiúrgico e que não têm outro destino além do de se esfolar. Quer coisa mais chata do que se ter um esbarrão ou tombo, e dar de cara com a carne em sangue? Somos de uma fragilidade espantosamento aceita pela multidão.Que pelo menos nossa pele tivesse um cunho divinizado, mas não…
• Outra imagem recorrente é a do vômito. A certa altura o narrador afirma estar vomitando Londres, como um ato de purgação absoluta. No processo de criação o vômito parece mesmo ter sido escolhido como um elemento simbólico de repulsa, de limpeza e, ao mesmo tempo, de liberdade. Caso a resposta seja afirmativa, então o personagem, tendo em vista o desejo de exilar-se do Brasil, não faz todas essas revelações como que vomitando o Brasil, libertando-se dele?
Sim, ele vomita seu passado em que se entala o Brasil onde não se prospera na arte só no artesanato. E o pior: no entanto já temos uma indústria livreira, com não sei quantas Bienais e Feiras, dando piscinas às mansões dos editores.
• Tanto em Berkeley em Bellagio quanto em Lorde o enredo trata de um escritor que viaja a convite de uma universidade, justamente por ser um escritor de relevância no Brasil. Nas duas situações foi exatamente o que aconteceu com você. A partir disso, é evidente que imaginamos algo de confessional, algo de verdadeiro no enredo, mesmo sabendo que se trata de uma obra de ficção, e que autor e narrador se separam completamente. Mas a coincidência de alguns fatos gera confusão. Nesse livro, além de todas as já citadas referências, o Lorde é gaúcho e quase da mesma faixa etária do autor. Como essa exposição e essa confusão são tratadas por você?
Sou mais esquizóide do que exibicionista. Assim, mesmo que não tivesse podido escrever uma linha de Lorde não fosse minha experiência de estada em Londres, o que quero ao construir um personagem é me travestir um tanto, mesmo que continua como ator do sacrifício ficcional, e jamais documentar minha nudez d’alma, ipsis litteris.
• Em Berkeley em Bellagio e Lorde, cenas e situações de sexo são repisadas no texto. Há sempre um ar lascivo, libidinoso, porém solitário. A solidão é um grande mote. Por que isso é tão valorado?
Os meus protagonistas sofrem de elefantíase mental.Prevalecem neles o mundo interior.Não dão conta da materialidade da vida. O sexo imediato, solitário, é o que lhes sobra. Alguma repercussão no mundo real contemporâneo? Isso não quer dizer que o nosso Lorde quase não morra de paixão quando toca com veemência na carne de um seu igual. Acontece aí a mediação, acontece a linguagem, do qual todos somos feitos para o bem e para o mal.
• Alguns grandes lordes povoam a literatura ocidental. Desde Lorde Jim, de Conrad, o romântico Byron, em especial o último, que diz muito respeito à formação da literatura brasileira. O mais novo Lorde recebe influência daqueles?
Há muito de Lord Jim em meu próprio Lorde. Ambos estão fora de seu hábitat natural (em mãos contrárias, claro), ambos almejam uma outra identidade tangidos pela culpa, ambos circulam numa esfera doentia de realeza. Lorde Byron, que sentiu na pele o sol lusitano é a contrafação do meu Lorde que sonha com a claridade perdida. Lorde é o último romance romântico da literatura brasileira. Eu ainda me sinto perdidamente apaixonado pelo protagonista. Não quero saber de caos urbano, nem muito menos metafísico. Quero um ninho onde ele possa me agasalhar com todas as suas contradições e faniquitos — que não são poucos, sei.