Ferreira Gullar chega aos 80 anos de vida (completados em 10 de setembro) com uma vitalidade impressionante. E com o olhar ainda mais aguçado para os espantos que a vida lhe causa. É a partir destes espantos — a junção entre o inusitado e o sublime do cotidiano — que nascem os seus versos. Isso há 61 anos, desde o surgimento de Um pouco acima do chão, sua estréia poética em 1949. Agora, lança Em alguma parte alguma, um livro repleto de perplexidades também encontradas nos poemas de Muitas vozes, de 1999. Gullar retoma (ou continua) temas que lhe são muito caros: a pequenez do cotidiano em contraposição à imensidão do universo e à passagem do tempo, refletida principalmente na morte. “Sei que um dia não estarei mais em nenhuma parte, senão no que escrevi. A obra é o outro corpo que criamos para permanecermos presentes quando este, de carne e ossos, desaparecer”, diz Gullar nesta entrevista concedida por e-mail.
Gullar é também o que se pode chamar de um intelectual orgânico. Sempre atento aos problemas sociais que envolvem o país, mostra-se muito distante de um pessimismo panfletário. Ao publicar crônicas semanais no jornal Folha de S. Paulo, ele é capaz de discutir os mais diversos assuntos, apontando caminhos possíveis e dilatando o olhar sobre o seu entorno. “Nenhuma mulher aborta por prazer. Quanto às drogas, não acredito que legalizá-las seja a solução”, afirma a seguir, ao comentar dois temas que nunca saíram do foco da grande imprensa.
Mas para além das discussões cotidianas, Ferreira Gullar é, acima de tudo, um poeta realizado. Em 2010, recebeu o prêmio Camões — considerado a mais alta distinção concedida a um autor de língua portuguesa — e é celebrado pela crítica como o maior poeta brasileiro em atividade. “Como o sentido do que escrevemos é chegar ao leitor, ao outro, ganhar um prêmio como esse (o Camões) é a comprovação de que chegamos lá”, afirma. Disso, ninguém duvida.
• Em alguma parte alguma foi escrito entre 1999 e 2010. Portanto, foram onze anos trabalhando neste livro. Como se deu toda a feitura do livro? E como nascem/surgem os seus poemas?
Como costumo dizer, meus poemas nascem do espanto, ou seja, de algum fato ou descoberta que me surpreende e me mostra um lado da existência inusitado.
• O senhor afirma que a poesia “lida com o acaso e a necessidade”. Qual é a necessidade que o move em direção à construção da poesia?
Não adoto método algum para escrever os poemas, antes me deixo arrastar pela descoberta que me surpreendeu e me pôs em estado capaz de escrever o poema. Não é que tenha exigência no fazer. Pelo contrário, busco dizer o que for de modo sucinto e inesperado, para que assim também surpreenda o leitor e o faça viajar comigo nesse mundo poético. O primeiro a ser surpreendido pelo poema sou eu mesmo, o primeiro leitor.
• É possível criar um método para se escrever poesia? Ou é a poesia que comanda o poeta, que diz quando está pronta para vir à luz?
Como disse, não tenho método para escrever, já que o poema deve ser uma invenção inesperada. Certamente, tenho um jeito próprio de escrever, como todo poeta o tem. Não se trata de método e, sim, de modo de lidar com as palavras, já que todo poeta inventa sua própria linguagem.
• Muitos escritores (principalmente prosadores) consideram a poesia um gênero literário superior aos demais. O senhor concorda?
Não se trata disso. A poesia é, na verdade, um modo especial de relacionar-se com a realidade de inventá-la. Talvez o que a distinga dos demais gêneros seja a sua excepcionalidade e a busca do essencial.
• Seus dois livros mais recentes — Muitas vozes e Em alguma parte alguma — trazem belíssimos poemas sobre a morte e a passagem do tempo. O senhor teme a morte? De que maneira o senhor a encara?
Não, não temo a morte, embora não a deseje. Sei que um dia não estarei mais em nenhuma parte, senão no que escrevi. A obra é o outro corpo que criamos para permanecermos presentes quando este, de carne e ossos, desaparecer.
• O senhor acredita em Deus?
Não.
• O senhor é reconhecido pela crítica e reverenciado pelos leitores, musicado por cantores populares, ganhou o prêmio Camões e virou até nome de avenida, no Maranhão. A que atribui tais fenômenos? Qual a sua opinião ao ser considerado hoje o maior poeta brasileiro em atividade?
Esse reconhecimento me surpreende e me lisonjeia. Creio que se deve em parte ao que escrevo e, em parte, às circunstâncias eventuais; uma delas, ter vivido muito e me manter ligado aos problemas que afetam a todos.
• Quais poetas contemporâneos o senhor lê com atenção? E qual a sua opinião sobre a produção poética brasileira?
Hoje, mais releio que leio. Mas também não releio todo dia. Passo tempo só pensando e escrevendo ou lendo sobre a atualidade política e social. Sempre li a história dos povos e do meu país. Outra leitura minha, freqüente, é a das questões ideológicas, especialmente reavaliações do marxismo.
• O que significou o prêmio Camões (considerado a mais alta distinção concedida a um autor de língua portuguesa) na sua vida de escritor?
Ganhar o Prêmio Camões foi uma coisa tão inesperada quanto gratificante. Como o sentido do que escrevemos é chegar ao leitor, ao outro, ganhar um prêmio como esse é a comprovação de que chegamos lá.
• O senhor acompanha muito atentamente o mundo que o cerca. E sobre ele emite opiniões em sua crônica semanal na Folha de S. Paulo. Qual a sua opinião sobre dois temas extremamente recorrentes na sociedade: a legalização do aborto e a descriminalização das drogas?
Sou a favor da legalização do aborto, porque constato que a não-legalização não impede que as mulheres, em determinadas situações, sejam levadas a praticá-lo. Nenhuma mulher aborta por prazer. Quanto às drogas, não acredito que legalizá-las seja a solução. A venda de cigarros, de remédios, de pedras preciosas não é proibida, mas existe tráfico dessas mercadorias, não existe? A descriminalização não vai acabar com o tráfico, porque ele, de fato, é mantido por quem consome drogas, já que não existe comércio, legal ou não, sem consumidor. O caminho correto, a meu ver, seria uma campanha, em âmbito nacional e internacional, de educação dos jovens (garotos mesmo), que os alerte para o perigo das drogas, já que, enquanto houver quem as use, haverá quem as venda.
• Quais absurdos do mundo contemporâneo mais o incomodam?
Uma das coisas mais absurdas da época atual é o terrorismo. Mal consigo crer que pessoas sacrifiquem a própria vida para matar inocentes arbitrariamente. Só muito fanatismo, só muito ódio e burrice, levados ao extremo, podem explicar tamanho desatino.
• Há no Em alguma parte alguma a presença de temas bastante recorrentes em Muitas vozes, especialmente a consciência da morte e a perplexidade proveniente da simultaneidade entre a vida comum e o turbilhão das galáxias. É possível ver em tais obras uma extensão, como se um livro continuasse o outro?
Sim, essa perplexidade está em mim e se mantém através dos anos. Em dado momento, por alguma razão, volta e me faz escrever sobre ela. Nisso, um livro continua o outro.
• Num dos prefácios de Em alguma parte alguma, Alfredo Bosi fala da convivência amorosa e tensa de materialismo e metafísica em sua poesia. Poemas como “Off price” (“Que a sorte me livre do mercado”) e “Um pouco antes” (“Não te custará nada imaginar/ que estou sorrindo ainda naquela nesga/ azul celeste/ pouco antes de dissipar-me para sempre”) sinalizam que o seu materialismo está em fase de sublimação ou transcendência?
Meus poemas não são expressão de uma teoria que esteja elaborando, como um filósofo. Poeta e filósofo relacionam-se diversamente com o conhecimento: um busca explicar o mundo coerentemente; o outro se espanta e constrói o poema sem se perguntar se está se contradizendo ou não. Os versos citados expressam momentos diversos da vida: um é estar livre dos condicionamentos que sufocariam a poesia; o outro, a consciência de que desaparecerei para sempre, restando, quem sabe, a lembrança de alguém, por algum tempo. Buscar a transcendência é necessidade de todos nós, o que não implica a crença em Deus.
• Em Muitas vozes há um poema intitulado “Inventário”, que diz: “o Gullar que bastasse/ não nasceu”. Em alguma parte alguma traz “O duplo”, o qual indica haver “um outro/ que é mais Gullar do que eu”. Em alguma medida, tais poemas, reunidos, evocam o “Traduzir-se”, e, sobre este, eu pergunto se você o inventou ou foi por ele inventado? Quem é este Gullar que, em pouco tempo, passa de inexistente a mais Gullar do que você próprio?
Não sei nem quero explicar essas coisas. Não busco coerência, não faço teoria, são espantos, constatações inesperadas. Não é possível dizer aquilo senão do modo como o disse no poema.
• Que conselho o senhor daria a alguém disposto a se dedicar ao ofício de poeta?
Não sei se adianta dar conselhos a quem é poeta. Poesia não é profissão, é destino. Que vá em frente.
* Colaborou Marcos Pasche.