Se a poesia é feita de silêncios e dúvidas, nas entrelinhas da alma o poeta catarinense Alcides Buss percorre com maestria o árido terreno dos versos. Entre silêncios, soluços e numa fusão, ele nos leva ao seu mundo poético em seu mais novo livro Cinzas de fenix & Três elegias (Insular, 92 págs). E pelo caminho esparrama a cinza — decomposição mórbida da vida —, mas que também fortalece a terra, e delineia histórias da matéria que transformou-se. e destes restos, surge a nova vida, muitas vezes em confronto com a existente. É o fênix: na mitologia grega, um passaro que renasce das próprias cinzas, e seu vôo de olhos fincados nos movimentos da vida e do verso. Em entrevista exclusiva a Marco Anselmo Vasques para o Rascunho, Alcides Buss, — que estreou 1970, aos 20 anos, com Círculo quadrado — discute os ramos da poesia conteporânea e o papel do ser-poeta nesta era de informação.
• Você sempre objetivou a proximidade: poesia-leitor. A metalinguagem, constantemente explorada pelos poetas, não seria a responsável pelo afastamento do leitor da poesia?
A poesia, como nós a praticamos hoje, é por natureza distante do grande público. Ela é uma manifestação de elite e uma prática partilhada entre poetas. A poesia através dos exercícios de vanguarda acabou assumindo o compromisso, de sempre inaugurar a linguagem, criar uma linguagem nova. Com isso a poesia cria um estranhamento e se afasta do leitor em geral. Cria um dilema para o próprio poeta, pois, no fundo, o sonho de todo poeta é estar próximo é ser lido por um grande número de pessoas. O poeta em seu íntimo cultua uma proximidade que na prática não se realiza, pois, a poesia como construtora de linguagem sempre será um exercício solitário. O poeta jamais poderá se contentar em não ter nenhum leitor ou chegar ao extremo que o poeta seja leitor de si próprio. Mas é admissível que o poeta tenha um único leitor, um leitor especial, a exemplo do que pregava o poeta marginal Glauco Matoso: é melhor ter alguns leitores interessantes e interessados a ter muitos leitores nem isto nem aquilo. A questão da linguagem é um desafio que está na essência do fazer poético. Alguns poetas conseguem se comunicar mais outros menos, alguns são mais fechados outros menos fechados, mas a poesia possui uma linguagem que não se enquadra dentro dos conceitos de consumo mercadológico comum, por isso, sempre será apreendida por um número menor de pessoas. A tendência da poesia de buscar como tema e como assunto o fazer poético é uma tendência muito forte hoje e parece revelar ou uma busca de conhecimento maior do fazer poético ou então revela uma crise da falta de alternativas, onde o poeta, sem saída, acaba falando sobre o fazer poético.
• Três autores estão intensamente refletidos em suas obras, são eles: Pessoa, Drummond e Bopp – a ponto de cada um dialogar com um livro seu: “Pessoa que Finge a Dor”, “O Homem sem o Homem” e “Ahsim” respectivamente. nos fale sobre estas aproximações?
O escritor na sua formação se aproxima de autores aos quais ele admira de maneira especial que acabam influenciando às vezes de forma até demasiada o seu trabalho. Porém, com o passar do tempo o poeta supera essa influência forte de outros autores em seu trabalho e consegui realmente escrever com uma identidade definida, sem esta presença incomoda do outro. Mas na formação do escritor este é um processo muito interessante, porque normalmente quando o poeta começa, ainda não possui uma linguagem definida, que será depois seu mundo. Enquanto constrói seu mundo, assimila um pouco de tudo que lê de forma desordenada, digamos que até um pouco caótica. Sendo inevitável este aspecto limitador. Os poetas, a exceção daqueles realmente geniais, em seus primeiros livros deixam muito a desejar. Não publicaria hoje o meu primeiro livro da forma que foi publicado. Então quando o poeta consegui sair desse primeiro momento, onde ele imita o imaginário literário em geral e passa para um segundo momento se identificando mais com um determinado autor em particular e aconteceu comigo em relação ao Raul Bopp, significa um passo adiante, sinal que o autor está crescendo e o importante é que ele consiga um terceiro passo, onde ele se liberta das influências através da linguagem. O diálogo com outros autores deve ser uma coisa permanente, porque o escritor é um leitor e tem suas predileções e nada impede que ele trave um diálogo com os autores por ele escolhido. Foi neste sentido que intitulei meu livro. “Transação”, transação neste sentido: o de troca com outros autores, foi uma palavra que tirei do livro “Orlando” da Virgínia Woof onde aparece este conceito. O poeta transando em palavras com outro poeta. Então este diálogo com outros escritores é um exercício gostoso e que muitos leitores apreciam. O exercício da transação como realização literária exigisse mais do leitor, pois exige dele os referenciais, pois, se eu dialogo com Cruz e Sousa o leitor terá de conhecer Cruz e Sousa para perceber melhor os pontos da transação. Como estávamos falando antes isso leva a um hermetismo e é a partir daí que há um certo afastamento do público da poesia. O público em geral não apreendeu o conceito de que: ler um poema é entregar-se a ele a ponto de complementá-lo, tanto com sua leituras anteriores quanto com suas experiências individuais. Otacvio Paz pensa que o hermetismo e uma reação dos poetas contra a discriminação que sofre sua arte. Penso que esse não deve ser um objetivo em si. O poeta tem que aceitar todos os desafios, a poesia é antes de mais nada um permanente exercício, toda arte como toda realização humana tem como objetivo a realização do ser humano. A busca da comunicação é um aspecto que todo poeta deveria perseguir, mas sem renunciar o compromisso com a arte. A literatura e a poesia em particular tem por objetivo principal a arte, ou seja, comunicar a beleza da própria linguagem.
• “Ahsim” agrega uma linguagem mágica, encantatória dentro dum universo caótico-urbanizado, um mundo próximo do não-ser. Qual a função do feérico no mundo mecanicista?
Na sociedade moderna massificada temos o homem automatizado e que perdeu a capacidade de perceber. A poesia quando transgride os códigos estabelecidos cria um desgoverno que propicia a visão do diferente, então o feérico no mundo mecanicista funciona como uma fuga do automatismo e ensina o homem a redescubrir a capacidade de ver, Oswald de Andrade disse em seu manifesto “Pau Brasil”: é preciso ver com olhos livre. Mas hoje quem tem os olhos livres para ver? A poesia ainda possui esse olhar. Em nossa volta acontecem coisas mínimas, pequenas frações, cenas de pura poesia que foge a percepção do homem. Torquarto Neto dizia: nada do couro dos contentes. O automatismo descontenta a poesia e contenta alguns homens, portanto cabe a poesia resgatar o homem do naufrágio das ferragens. Veja o poema narrativo “Cobra Norato”. Vemos ali um encantamento diante da realidade, uma realidade mítica que se reveste de uma linguagem também mítica e que nos leva a ver o mundo de uma forma diferente, por exemplo: a madrugada se mexendo atrás do mato, as palmeiras aparando o céu são encantamentos que nos apresenta outro olhar da realidade.
• “O Homem sem o Homem” e “Ahsim” mostra o poeta Alcides Buss preocupado com a transformação do homem em um objeto da modernidade.
O livro “O Homem sem o Homem” é um livro de denúncia e ao mesmo tempo de testemunho, que mostra uma situação cotidiana do homem destituído da sua essência e coisificado. “O Homem sem o Homem” é resultado da indignação do poeta diante da coisificação, do homem-número, do homem-objeto. Então o poeta se insurge contra a criação do não ser e dá o seu grito. Em “Ahsim” também há isso na medida em que “Ahsim” é um diálogo com Raul Bopp especialmente com “Cobra Norato” onde se substitui o universo mítico da floresta pelo universo mítico urbano, trazendo em seu bojo a denúncia, por exemplo a questão da poluição, da desumanização do espaço. Mas é em “O Homem sem o Homem” que o poeta grita com maior vibração o descaso do homem pelo homem.
• Muitos poetas mostraram que é possível direcionar a poesia para um maior comprometimento com o seu tempo sem cair na máxima de que poesia engajada é poesia menor. Em toda sua obra perpassa o comprometimento social. Pode o poeta fechar os olhas ao seu tempo, sua realidade…
Pode. Se deve é o que temos que questionar. Existem poetas, que tem uma poesia de caráter universal muito boa realizada dentro do tempo presente ao do autor e que mergulha em questões universais da condição humana. Se deve o poeta praticar sua arte, sem refletir o seu tempo numa sociedade como a nossa de grandes desigualdades, de grandes injustiças e de grandes absurdos construídos contra o homem é uma questão de proposta. Penso que o poeta não pode voltar as costas para a sua realidade, os poetas parnasianos voltaram as costas ao seu tempo, porque construíram um ideário onde o importante era a realização formal, o artesanato verbal, a retomada clássica numa tentativa de buscar uma permanência e não deu certo. Hoje, da poesia do século passado, a parnasiana é a menos atraente. Por um compromisso inerente a condição de intelectual, no sentido de que o intelectual é toda aquela pessoa que busca nas suas ações e na sua maneira de ser um compromisso com a realidade de seu povo. O artista sempre tem esse compromisso, pois é uma pessoa muito sensível. Porém, fazer literatura para mudar as coisas, usar a literatura como instrumento de transformação acaba sendo uma utopia e talvez seja uma ilusão. A poesia talvez não possua esta capacidade, mas não há como negar que um Maiakovski, um Brecht nas suas artes conseguiram melhorar a humanidade. Aquilo que eles disseram ajudou a despertar uma consciência e a mudar procedimentos, mas o problema está quando o poeta, em nome de uma causa, sacrifica inteiramente sua arte. Temos um exemplo recente em nossa literatura, onde se caiu na ilusão da literatura como bandeira de uma causa, produzindo-se uma literatura de má qualidade. O Ferreira Gullar incorreu numa fase, onde sua poesia virou somente protesto, ele mesmo com todo o discernimento crítico que possui hoje reconhece que foi um besteira e certamente não faria o mesmo.
• Em entrevista concedida para a séria Escritores Catarinense você da importância a infância como formadora do poeta. Numa sociedade onde a violência e a mídia roubam cada vez mais a infância existe espaço para a visão livre e libertadora do mundo (características das crianças)?
Felizmente existe, porque nada pode impedir ou proibir que uma pessoa conserve dentro de si a criança que foi. E os poetas têm algo intrínseco: carregam o menino no colo. O poeta conserva o tempo como um todo, não só o tempo dele, mas o tempo que transcende a sua história pessoal. A conservação da infância é inerente ao fazer poético, o que é o lírico? É uma manifestação que se diferencia do trabalho do romancista, do contista e só aparece com pujança na poesia. A relação da linguagem com a presença da infância com todos os seus mitos é muito importante, mantém o poeta vivo. Isso não precisa necessariamente transparecer no que o poeta escreve e de forma geral pouco transparece, mas às vezes o poeta evoca diretamente a infância. A evocação do homenino é partilha com o leitor. Um dos poemas brasileiro mais presente na cultura popular e o do Casimiro de Abreu: Meus oito anos. “ai que saudades que eu tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância querida.” e que foi parodiado por uma série de poetas contemporâneos. Se perguntarmos a alguém, que nos fale um poema, certamente esse alguém citará estes versos de Casimiro de Abreu.
• O poeta artesão em você se evidência principalmente nos livros: “Segunda Pessoa” e “Pessoa que Finge a Dor” neste equilíbrio razão x emoção, contenção x expansão com qual se luta mais?
Comecei a praticar a poesia como exercício da forma já no meu segundo livro: “O Bolso ou a Vida” este livro considero um livro experimental. Nos livros seguintes continuei a praticar a poesia como exercício, a prova é que de tudo que se escreve muita coisa se perde e outras retornam de forma mais vigorante. Reler e rescrever várias vezes um poema é o que vai fazê-lo sobreviver. A tentação à elaboração e à experimentação é cíclica, a momentos na vida do poeta em que ele é levado a se soltar mais, são coisas que acontece num arrebatamento inexplicável. A tentativa de elaboração, a busca do artesanato acaba quase sempre levando o trabalho à sofisticação de que falávamos antes acaba realizando mais ao poeta que ao leitor. Tivemos uma fase em que o artefato passou a ser uma regra e tanto se exercitou que cansou, hoje o leitor mais exigente não suporta o formalismo por si só, então o poeta precisa equilibrar-se no dueto (emoção x razão) para não incorrer em um erro já muito criticado e como disse Drummond: lutamos toda manhã.
• Como ocorre a Transação do poeta Alcides Buss com sua poesia?
Tenho uma relação poética com o realidade que me cerca. Vivo poeticamente, sempre que possível, porque na roda viva em que estamos, viver assim é idealismo. Seria a realização plena dos homens se todos vivessem poetando. Na luta pela sobrevivência até o poeta tem que se policiar para não se despoetizar. A transação ocorre na leitura e na observação do próximo. É daí que surge os poemas. O momento da concepção do poema pode ser dentro de um ônibus e em qualquer outro lugar.
• Seria esse momento da concepção, a seu ver, aquilo que Mário de Andrade chamou de momento lírico e o aproveitamento do fluxo do inconsciente…
O momento da concepção é o início, depois vem a gestação do poema seguida da realização formal, o momento em que realmente se coloca o texto integralmente no papel. E é assim que acontece. A fase mais prolongada é a fase intermediária, a da gestação, às vezes o poeta convive com um projeto de um poema durante semanas, meses, anos até. O poeta escreve com o corpo inteiro, então para que o poema saia, o poeta tem que estar disposto interna e externamente, não é só querer, não é só uma atividade intelectual, a expressão poética é uma expressão de corpo inteiro. Mas fazer poesia é acima de tudo trabalho. João Cabral de Melo Neto pensa que pode ser um momento destituído de emoção, penso que não, que a emoção é um componente vital da poesia. Dentro destes momentos: conceber, trabalhar e realizar creio estar relacionado com o que Mário de Andrade propôs em seus manifestos.