Olhos de fênix sobre o verso

Entrevista com Alcides Buss
Alcides Buss: “O público em geral não aprendeu que ler um poema é entregar-se a ponto de complementá-lo” Foto: Larissa Gandolfi
01/08/2000

Se a poesia é feita de silêncios e dúvidas, nas entrelinhas da alma o poeta catarinense Alcides Buss percorre com maestria o árido terreno dos versos. Entre silêncios, soluços e numa fusão, ele nos leva ao seu mundo poético em seu mais novo livro Cinzas de fenix & Três elegias (Insular, 92 págs). E pelo caminho esparrama a cinza — decomposição mórbida da vida —, mas que também fortalece a terra, e delineia histórias da matéria que transformou-se. e destes restos, surge a nova vida, muitas vezes em confronto com a existente. É o fênix: na mitologia grega, um passaro que renasce das próprias cinzas, e seu vôo de olhos fincados nos movimentos da vida e do verso. Em entrevista exclusiva a Marco Anselmo Vasques para o Rascunho, Alcides Buss, — que estreou 1970, aos 20 anos, com Círculo quadrado — discute os ramos da poesia conteporânea e o papel do ser-poeta nesta era de informação.

• Você sempre objetivou a proximidade: poesia-leitor. A metalinguagem, constantemente explorada pelos poetas, não seria a responsável pelo afastamento do leitor da poesia?
A poesia, como nós a praticamos hoje, é por natureza distante do grande público. Ela é uma manifestação de elite e uma prática partilhada entre poetas. A poesia através dos exercícios de vanguarda acabou assumindo o compromisso, de sempre inaugurar a linguagem, criar uma linguagem nova. Com isso a poesia cria um estranhamento e se afasta do leitor em geral. Cria um dilema para o próprio poeta, pois, no fundo, o sonho de todo poeta é estar próximo é ser lido por um grande número de pessoas. O poeta em seu íntimo cultua uma proximidade que na prática não se realiza, pois,  a poesia como construtora de linguagem sempre será um  exercício solitário. O poeta jamais poderá se contentar em  não ter nenhum leitor ou chegar ao extremo que o poeta seja  leitor de si próprio. Mas é admissível que o poeta tenha um  único leitor, um leitor especial, a exemplo do que pregava o  poeta marginal Glauco Matoso: é melhor ter alguns leitores  interessantes e interessados a ter muitos leitores nem isto  nem aquilo. A questão da linguagem é um desafio que está na  essência do fazer poético. Alguns poetas conseguem se  comunicar mais outros menos, alguns são mais fechados outros  menos fechados, mas a poesia possui uma linguagem que não se  enquadra dentro dos conceitos de consumo mercadológico  comum, por isso, sempre será apreendida por um número menor  de pessoas. A tendência da poesia de buscar como tema e  como assunto o fazer poético é uma tendência muito forte  hoje e parece revelar ou uma busca de conhecimento maior do  fazer poético ou então revela uma crise da falta de  alternativas, onde o poeta, sem saída, acaba falando sobre o  fazer poético.

• Três autores estão intensamente refletidos em suas  obras, são eles: Pessoa, Drummond e Bopp – a ponto de cada  um dialogar com um livro seu: “Pessoa que Finge a Dor”, “O  Homem sem o Homem” e “Ahsim” respectivamente. nos fale sobre  estas aproximações? 
O escritor na sua formação se aproxima de autores aos  quais ele admira de maneira especial que acabam  influenciando às vezes de forma até demasiada o seu  trabalho. Porém, com o passar do tempo o poeta supera essa  influência forte de outros autores em seu trabalho e  consegui realmente escrever com uma identidade definida, sem  esta presença incomoda do outro. Mas na formação do escritor este é um processo muito  interessante, porque normalmente quando o poeta começa,  ainda não possui uma linguagem definida, que será depois seu  mundo. Enquanto constrói seu mundo, assimila um pouco de  tudo que lê de forma desordenada, digamos que até um pouco  caótica. Sendo inevitável este aspecto limitador. Os  poetas, a exceção daqueles realmente geniais, em seus  primeiros livros deixam muito a desejar. Não publicaria  hoje o meu primeiro livro da forma que foi publicado. Então  quando o poeta consegui sair desse primeiro momento, onde  ele imita o imaginário literário em geral e passa para um segundo momento se identificando mais com um determinado  autor em particular e aconteceu comigo em relação ao Raul  Bopp, significa um passo adiante, sinal que o autor está  crescendo e o importante é que ele consiga um terceiro  passo, onde ele se liberta das influências através da  linguagem. O diálogo com outros autores deve ser uma coisa  permanente, porque o escritor é um leitor e tem suas  predileções e nada impede que ele trave um diálogo com os  autores por ele escolhido. Foi neste sentido que intitulei  meu livro. “Transação”, transação neste sentido: o de troca  com outros autores, foi uma palavra que tirei do livro “Orlando” da Virgínia Woof onde aparece este conceito. O  poeta transando em palavras com outro poeta. Então este  diálogo com outros escritores é um exercício gostoso e que  muitos leitores apreciam. O exercício da transação como realização literária exigisse mais do leitor, pois exige  dele os referenciais, pois, se eu dialogo com Cruz e Sousa o  leitor terá de conhecer Cruz e Sousa para perceber melhor os pontos da transação. Como estávamos falando antes isso leva  a um hermetismo e é a partir daí que há um certo afastamento  do público da poesia. O público em geral não apreendeu o  conceito de que: ler um poema é entregar-se a ele a ponto de  complementá-lo, tanto com sua leituras anteriores quanto com  suas experiências individuais. Otacvio Paz pensa que o  hermetismo e uma reação dos poetas contra a discriminação  que sofre sua arte. Penso que esse não deve ser um objetivo  em si. O poeta tem que aceitar todos os desafios, a poesia é  antes de mais nada um permanente exercício, toda arte como  toda realização humana tem como objetivo a realização do ser  humano. A busca da comunicação é um aspecto que todo poeta  deveria perseguir, mas sem renunciar o compromisso com a  arte. A literatura e a poesia em particular tem por objetivo  principal a arte, ou seja, comunicar a beleza da própria  linguagem.

• “Ahsim” agrega uma linguagem mágica, encantatória dentro  dum universo caótico-urbanizado, um mundo próximo do  não-ser. Qual a função do feérico no mundo mecanicista? 
Na sociedade moderna massificada temos o homem  automatizado e que perdeu a capacidade de perceber. A poesia  quando transgride os códigos estabelecidos cria um  desgoverno que propicia a visão do diferente, então o  feérico no mundo mecanicista funciona como uma fuga do  automatismo e ensina o homem a redescubrir a capacidade de  ver, Oswald de Andrade disse em seu manifesto “Pau Brasil”:  é preciso ver com olhos livre. Mas hoje quem tem os olhos  livres para ver? A poesia ainda possui esse olhar. Em nossa  volta acontecem coisas mínimas, pequenas frações, cenas de  pura poesia que foge a percepção do homem. Torquarto Neto  dizia: nada do couro dos contentes. O automatismo  descontenta a poesia e contenta alguns homens, portanto cabe  a poesia resgatar o homem do naufrágio das ferragens. Veja o  poema narrativo “Cobra Norato”. Vemos ali um encantamento  diante da realidade, uma realidade mítica que se reveste de  uma linguagem também mítica e que nos leva a ver o mundo de  uma forma diferente, por exemplo: a madrugada se mexendo  atrás do mato, as palmeiras aparando o céu são encantamentos  que nos apresenta outro olhar da realidade.

• “O Homem sem o Homem” e “Ahsim” mostra o poeta Alcides  Buss preocupado com a transformação do homem em um objeto da  modernidade.
O livro “O Homem sem o Homem” é um livro de denúncia e ao  mesmo tempo de testemunho, que mostra uma situação cotidiana  do homem destituído da sua essência e coisificado. “O Homem  sem o Homem” é resultado da indignação do poeta diante da  coisificação, do homem-número, do homem-objeto. Então o  poeta se insurge contra a criação do não ser e dá o seu  grito. Em “Ahsim” também há isso na medida em que “Ahsim” é  um diálogo com Raul Bopp especialmente com “Cobra Norato”  onde se substitui o universo mítico da floresta pelo  universo mítico urbano, trazendo em seu bojo a denúncia, por  exemplo a questão da poluição, da desumanização do espaço.  Mas é em “O Homem sem o Homem” que o poeta grita com maior  vibração o descaso do homem pelo homem.

• Muitos poetas mostraram que é possível direcionar a  poesia para um maior comprometimento com o seu tempo sem  cair na máxima de que poesia engajada é poesia menor. Em  toda sua obra perpassa o comprometimento social. Pode o  poeta fechar os olhas ao seu tempo, sua realidade… 
Pode. Se deve é o que temos que questionar. Existem  poetas, que tem uma poesia de caráter universal muito boa  realizada dentro do tempo presente ao do autor e que  mergulha em questões universais da condição humana. Se deve  o poeta praticar sua arte, sem refletir o seu tempo numa  sociedade como a nossa de grandes desigualdades, de grandes  injustiças e de grandes absurdos construídos contra o homem  é uma questão de proposta. Penso que o poeta não pode voltar  as costas para a sua realidade, os poetas parnasianos  voltaram as costas ao seu tempo, porque construíram um  ideário onde o importante era a realização formal, o  artesanato verbal, a retomada clássica numa tentativa de  buscar uma permanência e não deu certo. Hoje, da poesia do  século passado, a parnasiana é a menos atraente. Por um  compromisso inerente a condição de intelectual, no sentido  de que o intelectual é toda aquela pessoa que busca nas suas  ações e na sua maneira de ser um compromisso com a realidade  de seu povo. O artista sempre tem esse compromisso, pois é  uma pessoa muito sensível. Porém, fazer literatura para  mudar as coisas, usar a literatura como instrumento de  transformação acaba sendo uma utopia e talvez seja uma  ilusão. A poesia talvez não possua esta capacidade, mas não  há como negar que um Maiakovski, um Brecht nas suas artes  conseguiram melhorar a humanidade. Aquilo que eles disseram  ajudou a despertar uma consciência e a mudar procedimentos,  mas o problema está quando o poeta, em nome de uma causa,  sacrifica inteiramente sua arte. Temos um exemplo recente em  nossa literatura, onde se caiu na ilusão da literatura como  bandeira de uma causa, produzindo-se uma literatura de má  qualidade. O Ferreira Gullar incorreu numa fase, onde sua  poesia virou somente protesto, ele mesmo com todo o  discernimento crítico que possui hoje reconhece que foi um  besteira e certamente não faria o mesmo.

• Em entrevista concedida para a séria Escritores  Catarinense você da importância a infância como formadora do  poeta. Numa sociedade onde a violência e a mídia roubam cada  vez mais a infância existe espaço para a visão livre e  libertadora do mundo (características das crianças)?
Felizmente existe, porque nada pode impedir ou proibir  que uma pessoa conserve dentro de si a criança que foi. E os  poetas têm algo intrínseco: carregam o menino no colo. O  poeta conserva o tempo como um todo, não só o tempo dele,  mas o tempo que transcende a sua história pessoal. A  conservação da infância é inerente ao fazer poético, o que é  o lírico? É uma manifestação que se diferencia do trabalho  do romancista, do contista e só aparece com pujança na  poesia. A relação da linguagem com a presença da infância  com todos os seus mitos é muito importante, mantém o poeta  vivo. Isso não precisa necessariamente transparecer no que o  poeta escreve e de forma geral pouco transparece, mas às  vezes o poeta evoca diretamente a infância. A evocação do  homenino é partilha com o leitor. Um dos poemas brasileiro  mais presente na cultura popular e o do Casimiro de Abreu:  Meus oito anos. “ai que saudades que eu tenho/ da aurora da  minha vida/ da minha infância querida.” e que foi parodiado  por uma série de poetas contemporâneos. Se perguntarmos a  alguém, que nos fale um poema, certamente esse alguém citará  estes versos de Casimiro de Abreu.

• O poeta artesão em você se evidência principalmente nos  livros: “Segunda Pessoa” e “Pessoa que Finge a Dor” neste  equilíbrio razão x emoção, contenção x expansão com qual se  luta mais?
Comecei a praticar a poesia como exercício da forma já no  meu segundo livro: “O Bolso ou a Vida” este livro considero  um livro experimental. Nos livros seguintes continuei a  praticar a poesia como exercício, a prova é que de tudo que  se escreve muita coisa se perde e outras retornam de forma  mais vigorante. Reler e rescrever várias vezes um poema é o  que vai fazê-lo sobreviver. A tentação à elaboração e à  experimentação é cíclica, a momentos na vida do poeta em que  ele é levado a se soltar mais, são coisas que acontece num  arrebatamento inexplicável. A tentativa de elaboração, a  busca do artesanato acaba quase sempre levando o trabalho à  sofisticação de que falávamos antes acaba realizando mais ao  poeta que ao leitor. Tivemos uma fase em que o artefato  passou a ser uma regra e tanto se exercitou que cansou, hoje  o leitor mais exigente não suporta o formalismo por si só,  então o poeta precisa equilibrar-se no dueto (emoção x  razão) para não incorrer em um erro já muito criticado e  como disse Drummond: lutamos toda manhã.

• Como ocorre a Transação do poeta Alcides Buss com sua  poesia?
Tenho uma relação poética com o realidade que me cerca.  Vivo poeticamente, sempre que possível, porque na roda viva  em que estamos, viver assim é idealismo. Seria a realização  plena dos homens se todos vivessem poetando. Na luta pela  sobrevivência até o poeta tem que se policiar para não se  despoetizar. A transação ocorre na leitura e na observação  do próximo. É daí que surge os poemas. O momento da  concepção do poema pode ser dentro de um ônibus e em  qualquer outro lugar.

• Seria esse momento da concepção, a seu ver, aquilo que  Mário de Andrade chamou de momento lírico e o aproveitamento  do fluxo do inconsciente…
O momento da concepção é o início, depois vem a gestação  do poema seguida da realização formal, o momento em que  realmente se coloca o texto integralmente no papel. E é  assim que acontece. A fase mais prolongada é a fase  intermediária, a da gestação, às vezes o poeta convive com  um projeto de um poema durante semanas, meses, anos até. O  poeta escreve com o corpo inteiro, então para que o poema  saia, o poeta tem que estar disposto interna e externamente,  não é só querer, não é só uma atividade intelectual, a  expressão poética é uma expressão de corpo inteiro. Mas  fazer poesia é acima de tudo trabalho. João Cabral de Melo  Neto pensa que pode ser um momento destituído de emoção,  penso que não, que a emoção é um componente vital da poesia.  Dentro destes momentos: conceber, trabalhar e realizar creio  estar relacionado com o que Mário de Andrade propôs em seus  manifestos.

Marco Anselmo Vasques

É poeta e diretor teatral. Autor do livro de poemas Cão no claustro.

Rascunho