Olhar canibal: paladar marginal

A escritora e dramaturga Cecília Prada vive um ostracismo injusto e angustiante
Cecília Prada: sucesso inicial não garantiu uma continuidade na carreira
01/05/2004

Cecília Prada é dessas mulheres inconformadas, de olhar investigativo, que registram bastante bem o comportamento das pessoas ao seu redor. Cecília tem olhos suaves, porém céticos, pouco complacentes. Cecília é muitas Cecílias numa só: ficcionista, jornalista, licenciada em Letras Neolatinas, ex-diplomata de carreira, historiadora, dramaturga e tradutora. No território da narrativa curta Cecília publicou as coletâneas Ponto morto (Edigraf, 1955) e O caos na sala de jantar (Moderna, 1978), livro que recebeu o Prêmio Revelação de Autor, da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Mas apesar desse promissor início de carreira, sua terceira coletânea de contos continua inédita até hoje. Por quê? Em breve deixarei que a própria Cecília fale sobre isso. A respeito da sua ficção, Nádia Battella Gotlib escreveu: “O que ressalto da leitura da obra de Cecília Prada é sobretudo o seu sofrido, prolongado e corajoso processo do reconhecer-se marginal. Daí o constante movimento duplo que sustenta a construção dos contos, no ponto e contraponto entre o mundo modelar, dos bons costumes, devidamente institucionalizado, e o mundo à margem desse primeiro, que se alimenta da inquietação e das ansiedades, numa ilimitada fome de aventura e reinvenção. (…) Os contos de Cecília Prada nascem desse poder da própria ficção, da capacidade de, mediante enérgico fluxo de consciência e arguta vigilância crítica, triturar o real em vários jantares profanados.” Quem conhece os contos Deus palitando os dentes numa mesa de pensão, Jantares canibalescos e La Pietà, sabe que é isso mesmo. O novo livro até hoje não foi publicado, mas ao longo desses anos trabalhos seus foram sendo incorporados a diversas antologias editadas no Brasil e no exterior, entre elas Muito prazer (Record, 1980), O prazer é todo meu (Record, 1981), Racconti Brasiliani (edição bilingüe publicada pelo Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro de São Paulo, 1984), Frauen In Lateinamerika 2 (Alemanha, 1ª edição em 1984, 2ª edição em 1987), Tigerin Und Leopard (Alemanha, 1987; Suíça, 1ª edição em 1988, 2ª edição em 2003), Fran Urskog Till Megastad (Literatura brasileira através de textos: seleção de 35 autores brasileiros do século 20, Suécia, 1994) e Contos de escritoras brasileiras (Martins Fontes, 2003). No território do jornalismo seu trabalho mais polêmico é o livro Menores do Brasil: a loucura nua (1ª edição: Alternativa, 1981; 2ª edição: Atalanta, 1998), organizado a partir da matéria de denúncia Clínica de Repouso Congonhas, publicada pela Folha de S. Paulo em 1979, que no ano seguinte lhe rendeu o Prêmio Esso de Reportagem. Para o palco, Cecília escreveu ao todo sete peças, em português e em inglês, entre as quais uma adaptação de O retrato do artista quando jovem, de James Joyce.

• Seu livro de estréia, Ponto morto, prefaciado pela Lygia Fagundes Telles, fará cinqüenta anos em breve. Você teve dificuldade para publicá-lo? Passado meio século, tem intenção de relançar essa coletânea ou para você ela já deixou de ter valor?
Não, não tive dificuldade, por um só motivo: com a coragem dos jovens e a possibilidade financeira da época, entrei em uma gráfica e encomendei a edição de Ponto morto. Alguns anos antes, aos dezenove anos, eu ganhara um importante prêmio literário dado pelo jornal A Gazeta, com o conto principal, que dá nome ao livro. Fui acolhida e muito celebrada nos meios literários. Além de Lygia, todo mundo que contava, a começar por Oswald de Andrade, José Geraldo Vieira, Maria de Lourdes Teixeira, Menotti Del Picchia, Jamil Almansur Haddad, Afonso Schmidt, Hernani Donato… Enfim, um monte de gente via em mim uma vocação literária, mesmo. Eu já fazia, na época, um gênero de conto bem diferente. Basta lembrar a primeira frase do conto Ponto morto: “O inferno da monotonia é que é o pior.” Em poucas páginas eu conseguia caracterizar o ambiente de estagnação da normalidade da vida de uma forma realmente muito poderosa. Que inclusive me valeu reações agressivas também, de muitos. Principalmente na família, é claro. Mais tarde críticos como Gilberto Mansur, por exemplo, me definiriam como “uma das introdutoras do conto moderno no Brasil”. Quanto ao livro Ponto morto, não, não deve ser relançado — é jovem demais.

• Gosto muito da tua coletânea seguinte, O caos na sala de jantar, de 78. Acabo de entrar no site das principais livrarias do país e, para minha surpresa, este livro está fora de catálogo. O que aconteceu de 78 para cá? Você se desentendeu com os editores, com os críticos, com a literatura ou com os três?
Sim, há alguns mistérios embutidos no meu embaçamento, digamos, literário. Nunca deixei de escrever, escrevo sempre, identifiquei-me como escritora na infância, lá pelos dez ou doze anos, até ganhei um prêmio aos catorze anos. Tenho sido incluída em cada nova geração, desde os anos 50. Mas desde o lançamento, em 1978, do livro O caos na sala de jantar (com uma novela, catorze contos e prefácio de Nádia Gotlib), que recebeu três prêmios literários importantes (inclusive o da APCA, de Revelação de Autor), não tenho nenhum livro de ficção publicado.

• Por que esse silêncio?
Por dois motivos: um pessoal, o meu próprio modo de ser em relação à literatura. Uma superexigência, um até mórbido não-me-satisfazer-nunca, uma necessidade de tempos longos de elaboração, uma dificuldade de completar. E principalmente de me divulgar: o que tenho feito a vida toda em relação a tantos outros, você sabe, sou jornalista profissional, crítica literária também. Como a famosa agulha de Machado, acho que trabalhei para que muitas linhas fossem ao baile, enquanto eu ficava em casa. Exemplo concreto desse meu modo de ser: quando em 1978 Danilo Morales, então editor da Moderna, me procurou para formar o livro com meus contos (que já vira publicados, é claro que tenho sempre sido publicada em jornais, revistas, até no exterior), eu lhe dei além da novela-título do livro uns poucos contos. Todo dia ele me telefonava: “Então, já remexeu nas suas gavetas, o que achou para mim?” É que eu não queria publicar contos do tipo conto-crônica, só os mais elaborados. No fim, Danilo conseguiu extrair a fórceps das minhas gavetas esses contos menores também, e o livro saiu muito substancioso, teve muito sucesso. Esse livro, O caos na sala de jantar, já tem sido até objeto de estudo em universidades. Tenho um estilo muito próprio, você sabe. Sou valorizada pelos críticos, pelos professores universitários. Mas também encontro ainda pessoas inteiramente desconhecidas, muitos jovens, que de repente me reconhecem, dizem ter lido meu livro — tanto tempo depois de publicado — ou algum conto isolado… Há pouco tempo, fazendo uma compra, quando assinei o cheque o rapaz da caixa olhou espantado para mim e perguntou se eu era mesmo a escritora… E aí o espanto foi meu. Sim, ele lera O caos… Na Biblioteca Municipal de Ermelino Mattarazzo… Veja só!

• E o outro motivo?
Sem hesitação: tanto na minha carreira jornalística como na literária, tenho sido constante e metodicamente boicotada — vamos repetir este termo? Boicotada, sim, ou patrulhada (e por aí já se sabe por quem), desde 1980 — há quase 25 anos, portanto. Desde o exato momento em que, por minha reportagem-denúncia da Clínica de Repouso Congonhas (publicada na Folha de S. Paulo em novembro de 79), ganhei o Prêmio Esso de Reportagem, que é o ápice para qualquer profissional. Até o ano de 2002, mantive-me como a única mulher que recebeu esse prêmio, em âmbito nacional e sozinha, desde que ele foi instituído em 1955. Era uma clínica psiquiátrica infantil, conveniada com o Inamps. Uma clínica de horrores, com quadros dantescos de menores mantidos em promiscuidade completa, com violências seguidas, um verdadeiro campo de concentração. Acontece que seus diretores eram ligados a certas correntes de esquerda. Eu nem sabia disso, fiz (e faria novamente) o que achei o meu dever, foi uma questão de consciência para mim essa reportagem. Ela teve repercussões inclusive no exterior. Publiquei um livro, Menores no Brasil: a loucura nua, que até hoje é usado em cursos de jornalismo, de psicologia e de assistência social.

• Como tem sido esse boicote?
Nunca mais consegui emprego na chamada grande imprensa. Na época era crítica teatral da Istoé e fui logo dispensada. Quando ganhei o Esso, na mesma semana todos os grandes jornais e revistas de São Paulo, e até de outros Estados, me telefonaram perguntando qual o cargo que eu queria, de repórter especial a editora. Só que quando telefonei a eles para aceitar, curioso, ninguém me conhecia… Era como se eu própria fosse um telefone cujo cabo houvesse sido cortado — para sempre. Foi terrível. Porque, e quero que isso fique bem claro, por escolha própria, apesar de suprimida pela esquerda (toda solidária com endinheirados como esses diretores da tal Clínica, dos quais a sua articulação depende), nunca me liguei, não poderia ligar-me, com os fósseis da direita. Essa minha situação foi muito vivida pela minha geração. Ficamos todos presos entre dois fogos, aquele maniqueísmo tipo ou-ou. Vivíamos ainda na ditadura, no final do Governo Geisel — cuja repressão também sofri. Artigos e contos meus, e até uma peça teatral, foram censurados, proibidos. Então eu me senti como a mortadela espremida no sanduíche direita-esquerda. A perseguição realmente me reduziu a viver de frilas. Ainda hoje é o que faço, vivo muito mal, sou inclusive obrigada a fazer traduções mal pagas. Eles sempre mantiveram alguém, procuram ainda hoje manter, se possível, nos lugares-chave.

• As suas opções profissionais devagar foram sendo reduzidas ao mínimo…
É o lema de Gramsci, “ocupar todos os vazios do poder”. Quantas vezes, desde os anos 80, ao pedir traduções em uma editora, ou querendo publicar um artigo, fui acolhida com entusiasmo por alguém ainda não informado da minha maldição… Que, em um segundo contato, se embaralhava todo, pedindo-me mil desculpas, dizendo que não dependia dele, etc. Infalivelmente, nesses casos, perguntavam-me se eu conhecia Fulano ou Sicrano (o contato deles na empresa). Muitas vezes, inúmeras, suprimiram o meu nome, à Stalin. Por exemplo, o mesmo crítico, Mansur, que sempre me colocou nas alturas, quando a Record lançou O prazer é todo meu, em 84, apresentou todas as autoras na orelha, menos uma… Imagine quem. Outra vez, após participar de um debate na Folha sobre escritores brasileiros publicados na Alemanha (entre os quais estou) fui inteiramente suprimida na transcrição. O exemplo mais recente, você mesmo teve a oportunidade de ver como aconteceu, em dezembro do ano passado. A editora Martins Fontes lançou uma antologia de escritoras brasileiras incluindo meu conto La Pietà, aliás famoso e já muito publicado aqui e no exterior. Mas uma das organizadoras — que me conhece muito bem, que tem meus livros, minha biografia, me visitou em casa, etc. —, mesmo tendo tecido na apresentação enormes elogios ao meu conto, fez questão de dar o tom, praticando uma capitis diminutio pra cima de mim: aquela coisa de, digamos, colocar a foto da pessoa, mas cortar a cabeça. Isto é: incluiu-me entre as escritoras iniciantes e promissoras, que começaram a escrever nos anos 80. Só que desta vez armei um barraco feio. Quando recebi os exemplares da editora, telefonei para ela dizendo-me chocada com aquilo. Ela me respondeu aos gritos, reclamando inclusive de eu ter a coragem de chamá-la àquela hora da noite (exatamente 9h21). E afinal “o que eu queria? Parecer uma velha?” Agradeci efusivamente o fato de ela me ter rejuvenescido trinta anos de um só golpe, e disse: “Desculpe, mas eu pensei que se tratava de uma antologia literária e não de um concurso de misses”.

• É pena que esse incidente tenha turvado o projeto dos Contos de escritoras brasileiras, essa antologia é muito boa. Já a questão do boicote pelas razões que você apontou é bastante grave.
Eu tenho tudo isso registrado, passo a passo, escrito com todas as letrinhas do alfabeto e todos os pormenores, em umas mil páginas de romance autobiográfico. Mas não cheguei ainda à versão definitiva. O que me angustia muito. Sou obrigada a viver num estresse permanente, sem tempo para a literatura, reduzida a produzir montanhas de papel “para embrulhar o peixe do dia seguinte”, como se define o jornalismo. Ou traduzindo mediocridades. É claro que essa situação influiu também na publicação de meus livros. Tenho hoje um grande material inédito, escritos sobre literatura, coletâneas de artigos, além de outro livro de contos, Estudo de interiores para uma arquitetura da solidão, prefaciado por Telê Ancona Lopez. Mas ainda não achei editor para tudo isso. Sabe qual é o meu sonho? O de encontrar aquele editor inteligente, pessoal, amigo, estimulador, que sugere, acompanha, tem interesse pelo que produz.

• E a literatura feminina? Atrás da afirmação de que a literatura não é algo multifacetado, de que não existe literatura feminina, negra ou gay, mas tão só a Literatura, não se esconde a pior ideologia? Qual é a tua opinião sobre essa questão tão espinhosa?
É claro que a literatura é multifacetada. O que não significa que ela deva obrigatoriamente ser feita em guetos — o que muitas vezes acaba acontecendo. Por imposição do próprio establishment. A ideologia dominante (machista, racista, etc.) cria os guetos, força os por assim dizer dissidentes a se manterem neles e depois os condena justamente por isso. Eles esquecem que a humanidade é feita de diferenças, e a literatura verdadeira, a boa literatura, através de todos os tempos só foi realizada na medida em que cada autor pôde expressar-se tal como era, livremente. Que o inexistente é justamente o indivíduo-padrão, que seria um pequeno Frankenstein abstrato criado pelo racionalismo (melhor seria dizer pelo irracionalismo) machista, estéril e mais furado que peneira.

• Como mulher, você se sentiu discriminada na sua vida?
Não deu outra. Acho que encarno mesmo em mim uma somatória de discriminações, umas ostensivas, outras mais sutis. Desvendar os mecanismos que a sociedade encontra para tentar nos liquidar como sujeitos de nossas vidas é a minha proposta existencial. E literária. Quero deixar pelo menos o testemunho da minha constante luta contra as circunstâncias. Por esse motivo, estive mergulhada nos últimos 20 anos em uns dois romances autobiográficos, porque esse episódio do boicote político acho que deve ser separado do resto. Então, vamos ao resto, quer dizer, vamos a mim, mulher, heterossexual, representante da Geração 50. Que como tal me senti sempre presa (dilacerada) entre dois imperativos: o comum da vida das mocinhas bonitinhas e tontinhas do meu tempo, que não tinham outra alternativa sexual e afetiva senão casar, ter filhos, etc. Cumpri todo o figurino. Nem me arrependo. Hoje sou uma senhora idosa e discreta, vivo sozinha (adoro a liberdade), mas tenho o meu núcleo, o que eu criei, filhos, noras e netos. Todos vivemos integrados, neste ano de 2004. Mas existe outra Cecília em mim, sempre existiu, que desde muito cedo foi diferente: tinha necessidade de espaços exteriores, de mundo, de ação. Então aí a coisa se complicou. Paguei um preço muito alto tentando conciliar as duas coisas.

• Como foi isso?
Eu era filha única e perdi meu pai, que era professor, aos 15 anos. Minha mãe recebia uma pensão muito pequena e fui obrigada a trabalhar muito cedo. Tive de brigar para fazer uma universidade, queriam-me mera professora primária. Acabei por cursar duas faculdades ao mesmo tempo: jornalismo e Letras. E trabalhando já, dando aulas ou escrevendo para A Gazeta. Prestei concurso para o magistério secundário e fui designada para o ginásio de Conchas. Só que simultaneamente a Fundação Casper Líbero me deu uma bolsa de um ano em Roma. Fui para a Europa, comissionada pelo Governo do Estado. Na volta, tive de reassumir a cadeira em Conchas. Sofri um ano lá. Até que um dia um ex-colega de faculdade, encontrado por acaso em São Paulo (dessas coisas inexplicáveis, as coincidências) me perguntou se eu já pensara em ser diplomata. Fiquei espantada, respondi que as mulheres não podiam entrar na carreira e ele me disse: “Mas essa situação mudou, houve uma moça que pediu um mandado de segurança”. Resumindo: criei coragem, enfrentei o terrível vestibular do Instituto Rio-Branco e tornei-me a primeira mulher paulista a entrar na carreira, caindo de cabeça e permanecendo os próximos 18 anos no ambiente mais machista, preconceituoso, autoritário e discriminatório que já encontrei até hoje, o do Itamaraty. Mas também, justiça seja feita, a minha formação como diplomata, as matérias que cursei no Rio-Branco, vários ramos de Direito, política internacional, economia, História e geografia, aperfeiçoamento em línguas, constituíram um cabedal cultural muito forte, que foi incorporado à base que eu já tinha e hoje me permite encarar com facilidade vários temas que tenho de tratar, como jornalista. Tem mais: foi somente quando mudei para o Rio e entrei na carreira que adquiri uma visão de conjunto do país. Que me senti brasileira. Antes eu era muito paulista, muito limitada pelas minhas circunstâncias de família e meio. E foi na carreira diplomática, tanto no Itamaraty como no exterior, que tive a oportunidade de conhecer figuras exponenciais em todos os campos do saber, conhecer de dentro também os círculos do poder.

• Mas e a sua discriminação?
Bem, aí aconteceu o seguinte: formada pela turma de 1957, no ano seguinte, quando me casei com um colega de carreira — hoje mui ilustre e famoso, até membro da Academia — a Casa de Rio Branco me obrigou a pedir demissão. Sim, desconsiderando completamente os preceitos da Constituição, porque o Estatuto da Casa dizia “em caso de casamento entre colegas, a mulher pedirá demissão”. Inacreditável, mas verdadeiro. E inacreditável também a minha submissão ao que eu achava naquela época que era o meu destino, não adiantava ir contra. Tive um lampejo de consciência e falei em pedir um mandado de segurança. O futuro consorte pediu-me que não fizesse isso porque iria prejudicar a carreira dele… Não prejudiquei. Fui feliz durante alguns anos, não nego, com aquele rapaz brilhante, bonito, fino, educado, que amei e me fez sentir muito amada. Depois, no comum das coisas da vida, o casamento se desfez. E hoje não tenho ao menos uma pensão alimentícia. E pelo fato de ter nascido mulher hoje eu sou somente a dona Maria desta história, sentada em um sofá desconjuntado, vendo na tevê o desfile dos seus antigos colegas diplomatas, ah! este agora é o ministro não sei do quê, aquele outro é embaixador não sei onde… Bem, rolam ainda nos tribunais duas ações minhas contra a ilustre instituição. Talvez um dia algum bisneto meu venha a ser indenizado pelos verdadeiros atentados que vim sofrendo pela vida.

• No âmbito da palavra escrita, que trilha te absorveu mais nesses anos todos: a da ficção, a da tradução, a do jornalismo ou a da dramaturgia? Qual delas te decepcionou e qual trouxe mais alegrias?
Exclua a tradução, que para mim é só necessidade. Fiquemos nos outros três gêneros. Gosto de cada um de maneira bem diferenciada. O jornalismo é estimulante porque representa minha conexão com o mundo, vasto mundo, cada pauta que cumpro ou invento é a possibilidade de conhecer mais coisas, mais pessoas. A própria obrigação de cumprir deadlines, as limitações de espaço, são parâmetros que nos disciplinam. Muitas vezes nos frustram, outras vezes nos obrigam a apurar a expressão. A dramaturgia, bem, houve um período da minha vida, quando vivi em Nova York, em que me ocupei unicamente de teatro, fiz cursos, inclusive de direção, escrevi muito. Tenho sete peças escritas, algumas em inglês, pois estreei lá, na Off-Broadway, em 1964. Então, escrever para o teatro pra mim é uma coisa lúdica, fácil, gostosa, sem drama, eu diria, mesmo quando escrevo drama. Só que nunca mais escrevi para teatro. Pretendo, quando tiver tempo e inspiração, retomar essa trilha. Agora, por favor, abra parágrafo no seu texto: quero falar da satisfação maior que tenho, minha realização suprema. Eu não falaria em gêneros (“ao diabo os gêneros!” disse Clarice, que aliás muito me influenciou), mas falaria no fluxo de expressão. Na torrente interior que sentimos quando as palavras brotam, velozes, mais velozes do que a própria expressão, parece. Algo que vem muito do interior, inconsciente, a sensação de entrar em uma nova dimensão. Para mim isso é a prosa literária — muito próxima da poesia, realmente, porque nem sempre se cristaliza em ficção. Mas tem um valor em si. Quando consigo manter esse tom, captar essa voz interior, por assim dizer, é que me sinto realizada, principalmente se ela acaba por se encarnar em contos. Melhor ainda quando ela pode ser mantida durante o tempo suficiente para dar uma novela. Um romance seria a pretensão. Mas por esse motivo é que o gênero romance é difícil para mim. Eu gostaria de poder manter esse tom por umas duzentas, trezentas páginas, mas não consigo, fico insatisfeita com a rotina de ter de contar coisas, episódios, descrever tipos, etc., tudo isso que é necessário para desenvolver a ação do romance. Esse é um assunto que venho tentando resolver nos últimos 20 anos de constante escritura — e engavetamento. Espero ter ainda tempo para realizar essa minha proposta literária. E existencial.

• Você tem acompanhado a literatura brasileira contemporânea, essa que vem sendo feita de 1980 para cá? Que posição você acredita que a tua obra ocupa dentro do panorama maior da nossa literatura?
Tenho acompanhado um pouco, não muito, o que se publica hoje. Há sempre gente de talento, publicando coisa importante. E há sempre, ou hoje mais do que nunca, uma multidão de pessoas muito medíocres, que só escrevem pelo desejo de promoção pessoal, ou que visam o possível lucro (de uma adaptação para a novela das oito, é claro). Ou então vemos escritores até muito bons, que caem nas garras do consumismo — a obrigação de escrever um livro por ano, de repetir fórmulas com que já tiveram sucesso… Acho que um exemplo maravilhoso de autenticidade é o de García Márquez. Ele confessa que depois do imenso sucesso de Cem anos de solidão recusou-se a continuar “na mesma linha” e recolheu-se para reorientar a sua obra. Acho que essas verdades precisam ser ditas e te confesso uma coisa: quando o Rascunho foi lançado eu dei um enorme suspiro de alívio e de satisfação. Até que enfim outros escritores que pensavam como eu podiam se manifestar sobre essa imensa onda de sebosa mediocridade em que estamos mergulhados. Aliás, o mundo inteiro. Basta ver essa verdadeira doença mental que acometeu até os países ditos mais avançados, isto é, a consagração do bruxo Paulo Coelho e de seus equivalentes… Ficamos tristes e nos sentimos quase impotentes diante desse quadro. Mas sempre aconteceu isso, na história da literatura e da arte: o auge (como foi a literatura dita moderna do século 20), depois o declínio, depois começa a surgir a expressão do descontentamento. O questionamento. A busca de novas formas. Tudo está sempre se movendo, mesmo na aparente inanição, já dizia o bom e velho Einstein.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho