O rio como linguagem

Para João de Jesus Paes Mendonça, quando faz o poema, o poeta deve navegar em alto-mar ou pelo rio corrente
João de Jesus Paes Loureiro sabe dar a cada poema o destino necessário
01/11/2002

A dimensão da obra de João de Jesus Paes Loureiro — especialmente a poética — pode ser avaliada nas obras reunidas do autor, quatro volumes que são verdadeiros objetos de arte lançados pela Editora Escrituras, de São Paulo, que somam 1.598 páginas de uma literatura que, no quem se refere à poesia, assume contornos dos poemas épicos. E entenda-se aqui a expressão como obra de significado incomum. Especialmente quando se trata de um poeta que tem na poesia — como já escreveu — a palavra originária e fundadora, não apenas de todos os povos, como também das culturas e religiões.

Em ensaio publicado em 1976 (A poesia como encantaria da linguagem), João de Jesus Paes Loureiro observa que a poesia “confere ao poeta, segunda antiga tradição greco-latina ou de tribos amazônicas, a dupla dimensão de memória viva dos povos e dos videntes”. É exatamente isso que ocorre em relação à poesia de Paes Loureiro que nasceu no dia 23 de junho de 1939, na cidade de Abaetetuba, no Pará.

A obra reunida de Paes Loureiro, incluindo a poesia, ensaio e teatro, tem a apresentação do crítico e ensaísta Benedito Nunes, que lembra: “Como membro da geração etária ascendente em 60, a poesia seria legatária das três gerações de modernistas do Pará que o antecederam: a de Bruno Menezes e Jacques Flores, nas décadas de 20 e 30, a de Rui Guilherme Barata e Paulo Plínio Abreu, na de 40, e da geração de Max Martins, Mário Faustino e Cauby Cruz, na década de 50”.

No início de seu ensaio, Benedito Nunes esclarece que Paes Loureiro pertence à parcela eufórica da geração que ascendeu em 60, no fim do interregno liberal do governo de JK, sob o empuxo juvenil dos que então entravam na casa dos 20 anos.

No mesmo ensaio de 1976, Paes Loureiro observa que há muito vem desenvolvendo, por meio de poemas, a produção de uma arte poética pela qual entende a poesia como encantaria da linguagem. E isso lhe vale até hoje, tantos anos depois. E vale também a reflexão de que “todo poema revela uma forma de teoria da criação. Todo poeta produz poemas que, por sua vez, constituem a sua poética em movimento”. Com a ressalva dele mesmo: “Embora a materialização de cada concepção poética se faça na estrutura do poema, é possível perceber, no conjunto de uma obra, a formulação de uma espécie de teoria geral da criação poética, expressando, universalmente, a concepção criadora”.

Vejamos um retrato do poeta por ele mesmo, confissão na primeira pessoa no poema Deslenda Rural VI do livro Deslendário, de 1981: “Não sou aquele que traz/ os pés e as asas/ e sobe as voltas da escada/ até a arcada de arcanjos e visagens/ Eu sou o domador do acaso/Sou a incômoda testemunha destas horas”.

Analisemos como o poeta se situa em relação à poesia, ao exercício da poesia, à elaboração de seu trabalho e à sua observação poética como ocorre em Poema, do livro Altar de chamas, de 1982: “As palavras arfando entre virilhas/ entre lábios/ cópulas de consoantes e vogais/ Saboreadas palavras/ defloradas palavras/ túmidas palavras/ ávidas/ oh! palavras/arfando umidamente entre pentelhos/Suor. Calor. Odor. Linguagem. Gozo”.

São apenas dois momentos que revelam o poeta diante e dentro de seu universo, de seu meio ambiente, entre suas raízes, desencantos, sonhos, angústias e possíveis sonhos. Diante e dentro de seu texto. Equivale dizer diante e dentro de sua poesia que é a de desvendar mistérios numa paisagem que ele vive sempre e que lhe pertence.

Razão tem Octávio Ianni, que escreveu sobre Porantim, de 1979, observando que “o segredo da poesia desse livro é a tensão permanente, crescente e renovada entre o homem e a natureza. É dessa tensão que arranca a invenção poética”.

Isso vale para praticamente toda a obra poética de João de Jesus Paes Loureiro, mesmo quando volta de seu mergulho à Amazônia, dessa realidade que povoa a imaginação que vai além dos mitos e do sobrenatural.

Escrevendo ele mesmo sobre Deslendário, certamente a sua obra mais significativa, Paes Loureiro deixou claro o seguinte: a partir do surrealismo, a poesia se tornou libertação da língua, das regras e de uma posição autoritária sobre a linguagem: “A poesia passou a ter consciência de sua posição de guardiã da língua, libertando-a do compromisso burocrático e imprimindo-lhe preocupação pela originalidade da escrita”.

Paes Loureiro também diz que “a poesia é palavra originária e fundadora, não apenas de todos os povos, como também das culturas e religiões”. É aí que deve ser colocado o poeta como um ser consciente de seu tempo e de sua própria poesia envolvida no seu lugar e na sua origem, que é a terra, a água, o fogo, a natureza, o símbolo de sua própria existência que tanto pode estar nas águas do rio, nas árvores da Amazônia, nas lendas e na transformação das coisas que ele narra deixando que a poesia faça parte dessa trajetória.

Afinal, deve ser como o próprio poeta escreve no poema Em crise, no livro Altar em chamas: “Ter sempre um porto para cada vela/ Ter sempre uma vela para cada estrofe/ Ter um destino para cada poema”.

Paes Mendonça sabe dar a cada poema o destino necessário, poeta que é conhecedor de seu ofício, conhecedor de sua palavra, de todo esse vasto país mergulhado no verde das árvores, nas águas escuras e claras dos rios, na vegetação, nos insetos, nos bichos. Um poeta que é poeta. Só isso. E isso lhe basta.

• O que significa a reunião de suas obras em quatro volumes?
Significa ter o tempo comprimido de uma vida nas mãos. Poder olhar toda uma existência à sua frente, folheá-la, degustá-la, sorvê-la. Saltar de uma época a outra, embaralhar as páginas da memória, escolher este ou aquele momento de felicidade ou melancolia, de sofrimento ou doçura. É como ter o sonho tornado visível, objeto de amor ao alcance de seus dedos. Ao mesmo tempo, a oportunidade de ter toda uma obra poética percebida em conjunto, como um vasto painel, uma construção cíclica. Devo, no entanto, salientar que essas obras reunidas compreendem minha produção até 2001. E não apenas poesia. Há, também, teatro, pequenos ensaios e a tese de doutoramento, Cultura Amazônica — uma poética do imaginário.

Valeu a pena essa trajetória de tantos anos descrevendo especialmente a paisagem poética da região em que vive?
Para mim, valeu! Até, porque, foi a condição de ter nascido numa pequena cidade ribeirinha do Pará, Abaetetuba, que me permitiu a convivência emocional com essa realidade sócio-cultural, deu-me a chance de transitar entre o mito e a realidade como uma coisa intercorrente e interpenetrada e nutriu a minha alma dessa disponibilidade para o maravilhamento, que é uma das condições essenciais da poesia.

• E que contribuições para sua poesia-prática e teórica essa vivência trouxe ao poeta e ao pensador da cultura?
A minha poesia nasce de uma emoção reflexiva face à realidade pessoal e sócio-cultural. O que sente pensa, enquanto o que pensa está sentindo. Como conseqüência, ao lado do fazer poético tenho desenvolvido um pensar a poesia. Como forma de fazer, poético, decorrente dessa experiência ribeirinha de maravilhamento diante do cotidiano, quase toda minha obra serve de exemplo, mesmo nos poemas ou textos teatrais passados em outras realidades. Embora a epifania como irrupção do maravilhoso no banal marque a maior parte de minha obra há, também, a sua inversão epistemológica. É o que chamo de epifania negativa, presente na estrutura o livro Deslendário, principalmente, e teorizada o ensaio Itinerário do Deslendário.

 • Há, ainda, outra proposta teórica da poesia em suas reflexões?
Sim. Uma teoria talvez mais abrangente, por sua universalidade. É o que chamo de a poesia como encantaria da linguagem. O conceito de encantaria decorre da cultura amazônica profunda. É o lugar submerso nos rios da Amazônia, principalmente no Pará, onde habitam os deuses, os encantados. O boto, a mãe-d’água, a mãe do vento, a uiara, a boiúna etc.

• E como você desvela a dimensão estética de uma teoria poética nesse conceito?
A idéia de que a linguagem é um rio, é uma imagem que me serve de base para essa proposta. Levo em conta que pela tradição literária ocidental, pela “tópica” que vem desde a Grécia Antiga, compara-se o rio com a linguagem. O poeta deve navegar em alto-mar ou pelo rio corrente, quando faz o poema. Iça as velas enquanto maneja as palavras, chega ao porto final da viagem, quando termina o poema etc. Nesse paralelismo conceitual, penso que: a) entendendo-se a linguagem como rio; b) aceitando-se que nas encantarias do fundo do rio estão os mitos, alegorias do imaginário que dão encantamento, que formam o maravilhoso estetizador do rio quando vêem à sua superfície sob o toque do imaginário; c) assim, também, toda a poesia submersa na linguagem como metáforas, símbolos, alegorias pelo gesto do poeta emergem do fundo da linguagem padrão, tornando-a linguagem poética. Esta proposta de teoria poética está exposta em texto contido em livros, como por exemplo, no terceiro volume das Obras reunidas e em Hino dionisíaco ao boto, ou A poesia como encantaria da linguagem.

• Em conceito, que é tão ligado à cultura Amazônica, pode ser universal?
Claro que sim. São noções nascidas, como tudo, do particular e se tornam universais pelo que passam a expressar. É a riqueza mítica submersa no rio que alimenta o imaginário. A linguagem é tida como um rio também. Todavia, no fundo a linguagem padrão temos a linguagem poética, que aflora ao nível da linguagem padrão pelo toque poético do poeta no ato de fazer o poema. Então, a poesia está submersa na linguagem padrão, assim como a encantaria está submersa no rio comum.

• Os poetas têm sempre um livro de sua produção que merece mais atenção que outros. Isso ocorre com você ? Qual o livro de toda sua obra que mais o agradou?
A trilogia Cantares amazônicos, formada por: Porantin, Deslendário e Altar em chamas. Este foi prêmio nacional de poesia, em 1983, pela Associação Paulista de Críticos de Arte.

• Em que a poesia ajuda a defender uma Amazônia tão cobiçada?
Em pouca coisa. Ou em quase nada. O que a poesia ajuda é a defender a Amazônia da indiferença, do isolamento, do esquecimento da insensibilidade. Isto é, sublimar a alma da Amazônia. Mas, como todo mito, a poesia pode ser um nada que é tudo…

• A poesia é coisa para se levar a sério?
Para mim, a poesia é a coisa mais séria que levo pela vida. Quando a sinto e faço, sei de sua necessidade. Mas, quando tento falar sobre isso, já não há mais nada e nem como falar sobre ela.

• O poeta Paes Loureiro se arrepende de alguma coisa na sua vida literária?
De não ter dedicado mais tempo aos trabalhos e os dias da poesia.

• O que desejou fazer e não fez?
Um romance. Aliás, “ainda” não fiz! Mas continuo desejando…

• Existe poesia no norte brasileiro, especialmente em Belém, onde você vive?
Existe. A Amazônia é propiciadora de poesia. Penso, inclusive (e isto foi objeto de minha tese de doutoramento, na Sorbonne) que a cultura amazônica é um raro exemplo de uma fonte poética estimulado pelo imaginário. E uma poética do imaginário. É a sua dominante. Em decorrência disso, os discursos oriundos na região tendem a impregnar-se de uma poeticidade recorrente. Mesmo o discurso científico.

• Os mitos amazônicos são muito importantes em sua obra. Há condições de universalizá-los? Como os gregos por exemplo?
Sem dúvida. Os mitos gregos foram universalizados por seus intérpretes. Na verdade, todo mito é uma verdade originária, uma síntese compreensiva do mundo. Exige seus divulgadores, explicadores, alegorizadores, intérpretes, recriadores. A cultura grega os teve nos seus filósofos, artistas e historiadores. Mais tarde, cumpriram esse papel a psicanálise e a teoria literária. Então, eu creio que posso afirmar o seguinte: os mitos amazônicos têm todas as condições inerentes ao mito, isto é, são uma realidade originária e originadora de sentido. No entanto, exigem seus intérpretes, com uma dedicação emocional que acredite na sua grandeza e que decidam propagar e universalizar em vários níveis de significação a sua realidade e sentido. Posso indicar um exemplo: a lenda da tribo macuxi, em Roraima do Tamba-Tajá. É a narrativa poética de um grande amor que se eterniza convertido em natureza. Talvez, nenhuma das grandes histórias de amor universal, do amor eterno, tenham uma beleza tão grande no sentido ético-poético em seu desfecho.

• Os poetas, atualmente, parecem disputar de maior liberdade de ação, para seu trabalho criador. O que acha disso?
As vanguardas, que são uma liberdade que aprisiona, porque exigem o novo como fórmula, essas declinaram já há algumas décadas e não mais dominam o processo cultural. Mas eu acho que isso que se conhece e define como pós-modernidade também está impregnando a poesia com sua indistinção de planos temporais, espaços, estilos etc. Hoje podemos fazer uma poema incorporando elementos trovadorescos, concretistas, românticos, enfim, hoje se tem, na poesia — como em todas as artes — uma abertura para várias modalidades de expressão. Creio que esse é o tom do nosso tempo. Além disso, a poesia se vai deslocando para fora do livro: disco, CD Room, Internet etc., em busca de modernos meios de comunicação.

• As Obras reunidas são o registro de sua trajetória como escritor até uma fase de sua produção. E depois dessa reunião, o que há de novidade para os leitores?
São dois trabalhos. Um, intitula-se Do coração e suas amaras (Poesia, Escrituras) e, outro, O poeta e seu canto (um CD duplo, com canções e poemas musicados por compositores parceiros). Além disso, foi reeditado meu livro Elementos de estética, pela Editora da Universidade Federal do Pará.

Obra reunida
João de Jesus Paes Loureiro
Escrituras
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho