O rigor da palavra

O poeta Moacir Amâncio lança "Contar a romã" e deixar fluir sua preocupação quase obsessiva com o poema
Moacir Amâncio tenta fugir da linguagem usual dos poetas, dando às palavras uma construção incomum
01/09/2001

O poeta Moacir Amâncio informa em dois versos o seguinte: “As palavras caem/avulsas na sombra”. É quase uma espécie de sinalização de como ele vê o poema e a própria poesia, se é que a poesia ainda esteja disponível entre os mortais. O livro Contar a romã (Editora Globo), de alguma maneira, tenta esconder a poesia que contém, como se a poesia fosse inadmissível no tempo amargo atual, incluindo, aí, a própria literatura.

Poucas vezes Moacir Amâncio se deixa levar pelo que se entende por poesia, na acepção correta da palavra, deixando fluir, sim, sua preocupação quase obsessiva com o poema, com a forma e a construção do poema e, especialmente, colocando em plano secundário o que pode ainda ser emoção, esse sentimento quase proibido no fazer poético hoje.

Autor de Do objeto útil, Figuras na sala, O olho do canário, entre outros, Amâncio é um artesão da palavra. Poucos, como ele, sabem lidar com elas, com esse esmero e cuidado, com esse zelo extraordinário que, muitas vezes, acaba por transformar o próprio poema numa camisa de força, na qual qualquer movimento se torna quase impossível.

O poeta, na verdade, tenta fugir da linguagem usual dos poemas e dos poetas. Mas as palavras, no mundo, são sempre as mesmas. Moacir Amâncio, no entanto, consegue dar a elas uma construção incomum e isso pode ser observado em momentos em que diz: “A luz pode ser/objeto de medo/e nausear qual/inseto sabido/pelo conteúdo/de lama, de azul”. E, especialmente, em poemas como Antonio Francisco Lisboa: “As vozes, os doze profetas/vertem as crespas eloqüências/na cinzenta pedra sabão/A chuva ácida/insistirá/até refazer o deserto/onde os ecos passeiam/o assombro/a fábrica de todo o texto”.

A contenção do poeta, dentro do poema, prejudica a poesia. É de se perguntar, até, se Moacir Amâncio acredita na existência da poesia, além da existência do poema. Ele se mostra como o construtor de uma casa que ergue sua obra vagarosamente, com um rigor absoluto de arquitetura, mas esquece ou deixa de lado detalhes como a cor das paredes, por exemplo, ou um vaso, uma planta, talvez uma árvore no jardim.

É possível que diante de um livro como Contar a romã isso soe como total inutilidade. É preciso dizer, no entanto, que a construção do poema em Moacir Amâncio é absolutamente criteriosa, sem concessão alguma, qualquer, à facilidade dos tempos reinantes neste vale de lágrimas que é a literatura poética brasileira.

Num livro anterior, Do objeto útil (Iluminuras, 1992), Moacir Amâncio, de certa maneira, traçou seu destino poético, se é que a sina de fato existe. Escreveu: “Baudelaire mentiu/não há flores do mal”. A bem da verdade, não existe flor alguma, nem do Mal nem do Bem. Existe a paisagem árida da palavra, na aridez do mapa que não explode nem em beleza, nem em sombras.

Mas, afinal, o que é a poesia, essa coisa invisível que costuma existir apenas no sentimento de alguns desavisados diante da brutalidade de todos os instantes? Não se tenha, no entanto, a impressão de que Moacir Amâncio seja um poeta que tem hora marcada para escrever poemas, como se escrever poemas fosse apenas um trabalho mecânico de juntar palavras. O poeta existe. Mas existe um poeta que, nesta obra especialmente — ao contrário das anteriores — sufoca a própria poesia, que é, certamente, a sua maneira de ver e sentir o mundo.

Amâncio costuma dizer que trabalha a emoção dentro do poema, mas de outra forma. É possível que renegue completamente a palavra “inspiração” e também concorde com a idéia de que o poema, a elaboração do poema, seja apenas um trabalho literário de alguém que tem, por exemplo, a fórmula e a fôrma do poema. Mas isso é só uma possibilidade.

Contar a romã é uma lição de poema, não de poesia. Mas a poesia, como dizem algumas víboras, é coisa do passado, daqueles poetas de antigamente envolvidos em questões existenciais e não na paisagem arquitetônica do poema. É quase certo — espera-se — que Moacir Amâncio não pense assim. Os tempos atuais na poesia deste país são sombrios e, em alguns casos, angustiantes. Assim, é preciso entrar nesta obra com o cuidado de um frade que abre uma janela em busca de luz, vagarosamente, para que se possa descobrir um certo encanto que o próprio poeta, certamente, há de negar. O encantamento, no entanto, existe. Está escondido no verso, no cuidado e no zelo com a palavra. No poema que não se quer e não se admite discursivo e se contém, se apara, se cerca, se molda à sua própria elaboração.

• Por que um poema tão contido?
Bem, a questão é complicada. A contenção em primeiro lugar faz a gente pensar na redução do espaço. Ela se opõe ao espraiamento, à verborragia que supostamente diria menos. A contenção perderia em largura para ganhar profundidade ou altitude. Há muitas idéias a respeito. E exemplos de todo tipo. Mas são raros os casos em que só temos poemas contidos. Escrevem poemas contidos, nem tanto e nada contidos. Não podemos simplesmente aceitar só poemas contidos e simplesmente rejeitar poemas verborrágicos. Não há linha rígida de gosto nem de fazer. Estou dizendo isso para chegar à questão do ritmo. De repente o ritmo que se capta é o da contenção. Ou o ritmo que pega você. Claro, há muito o que dizer a respeito, ideologia da linguagem, essas coisas, mas desconfio muito das teorias. Elas são importantes na banca de estudos, como tentativa de se explicar o fenômeno. Agora, uma explicação minha será tão aceitável ou inaceitável, discutível, quanto a de outra pessoa a respeito do meu texto. Estou procurando ficar no limite do texto e lembrar que o texto aparentemente contido pode conter uma explosão que, uma vez percebida, se efetiva.

• A preocupação excessiva com a forma do poema não pode prejudicar a poesia?
Pode, é um risco. Do mesmo jeito que a verborragia também pode levar à poesia como a coisa nenhuma. Qualquer artista tem, em primeiro lugar, a obrigação do risco. É a sua única missão, se houver alguma, com direito a acerto e erro. Assim como a despreocupação. O espontaneísmo é uma falácia. O espontâneo pode ser atingido, ser o objetivo, não o ponto de partida. A língua está cheia de armadilhas, a pessoa pensa que está falando por si e está apenas repetindo, repetindo, sendo na verdade manipulada. A poesia e a palavra são enganosas, falsas. É preciso pegá-las nessa falsidade. Isso acontece tanto no nível mais simples quanto no mais sofisticado. Não é uma questão banal ou, se quisermos, da forma.

• Afinal, o poeta deve preocupar-se com a poesia ou com a forma do poema?
O problema está em que, na poesia, a forma é a poesia. Voltando: ela pode ser encontrada no verso medido, em qualquer tipo de experimentação do verso livre ou como se quiser chamá-lo, na prosa. Bem, nesse ponto a coisa fica assim: é isso ou não é. Alguém pode pensar em compor uma sinfonia sem saber música? Por que as coisas seriam diferentes com o poema?

• Para existir, o poema necessariamente exige uma camisa de força?
Não. Pode-se, por exemplo, fazer música de mil maneiras diferentes. De repente, o ritmo é tenso. Outras é distendido. De qualquer modo, sempre trabalhamos com formas. Whitman. Imagine em Folhas de Relva um texto que vá na direção contrária ao da eloqüência do poeta, altissonante, épica. Quer dizer, se pensarmos em camisa de força, aí também há uma camisa de força. Ginsberg, por exemplo, pode transmitir a imagem de dissolução, ou melhor, de explosão, mas a linguagem dele é muito trabalhada, é resultado de disciplina, de aprendizado pontual, de reflexões sobre a frase poética, mais, de toda uma existência. Agora, acho que inspiração existe sim. A inspiração existe para todos, no entanto só quem procura os meios de expressá-la poderá tentar alguma coisa na qual o outro se encontrará também, talvez, compartilhando a inspiração iluminadora. Agora, nem sempre a inspiração está no ponto de partida, o poema seria uma das formas de encontrá-la, de buscá-la como algo em andamento, uma sintonia.

• Contar a Romã remete a sua poesia a quê?
Bem, suponho, agora que o livro foi publicado, devo mais falar como leitor do que como autor, não? Suponho que deve remeter a coisas como essas de que estamos falando.

• O que o poeta e a poesia têm ainda a dizer?
O problema é a busca. Desconfio que o poeta — e com essa palavra quero dizer qualquer artista, do ator ao arquiteto, do contista ao romancista, do músico ao poeta — tem de buscar o que será dito, inclusive à sua revelia, muito provavelmente mais à sua revelia, uma vez que ele também está exposto às armadilhas, àquelas falsidades, pois isso de querer dominar a matéria é só uma superstição, fortíssima como toda superstição, frágil como toda superstição. Trata-se de um jogo, uma luta que implica também a fúria, a raiva.

• O poema é um exercício que não termina?
Pode terminar sim, para quem escreveu, não para o leitor e este será também um autor. Quem diria que Dante não terminou A Divina Comédia? E Camões, com Os Lusíadas, e Shakespeare, com Hamlet? Mas tem mais nessa história, não? É o autor diante do autor. Pode terminar, sim, quando por exemplo o autor percebe ter dito tudo que havia a dizer ou a ser dito por ele, um ciclo se fechando, a tal obra ou uma vida está acabada. Mesmo assim, ele continua a dizer, repetindo-se. A poesia, a vida, é inesgotável, as pessoas não são inesgotáveis, caso contrário Camões seria Dante.

• O poema com emoção morreu?
De jeito nenhum. Apenas há muitas maneiras de se trabalhar a emoção. Tem gente que se derrete quando ouve a palavra amor, por exemplo, mãe, sei lá. Outros ouvem o nome de um líder político e reagem da mesma forma. Ou um líder religioso. Um tipo de emoção tão desparafusada, tão frouxa, tão diluível em sentimentalismo de lágrimas banais, emoção instrumentalizada. Uma emoção condicionada, de novela de televisão, o clichê mastigando a pessoa como um verme imenso e manipulador. Então, há pessoas que escrevem: “O amor….” E pensam que há emoção nessas palavras. Há apenas balela, farinha podre. A procura da emoção está presente em qualquer trabalho artístico que tenha atingido determinado nível. Vamos pensar num pintor “cerebral” como Mondrian. Quem não se vê compelido a rearranjar seu ritmo, emocionalmente, conforme a seqüência de linhas e cores? Quem não se vê compelido a repensar sua própria situação no mundo diante de um quadro de Mondrian? Ou de Matisse? Ou de Volpi? Nunca acreditei naquelas lágrimas dos retirantes do Portinari, por exemplo.

• O panorama poético no Brasil hoje é de muito poema e pouca poesia?
Bom, não tenho condições de falar com toda a tranqüilidade sobre o panorama poético no Brasil. Eu não espero a poesia chegar até mim. Vou atrás, pela Internet, pelos amigos, pelas publicações, para saber o que estão fazendo, mas há muita coisa. E, olhe, sim, sempre há mais poemas do que poesia, isso é normal, mas não tenho dúvida: há também bastante poesia, do Rio Grande do Sul à Amazônia. Não gosto de comparar com outras modalidades, mas a poesia está certamente numa fase muito interessante. Há revistas, há variedade, há editoras que publicam, com todas as dificuldades — o que me parece até bom —, percebe? Agora, seria muito importante que a mídia passasse a perceber isso, com sensibilidade, inteligência e longe dos preconceitos de qualquer ordem. O que falta é efetivar a circulação da poesia. Como falta efetivar a circulação da arte feita no Brasil. Sai um livro, por exemplo, muito bom em Minas Gerais. O risco do livro ficar em Minas é muito grande. E de desaparecer em Minas também. Como em São Paulo ou no Paraná. Porque esse livro muito provavelmente ficará para sempre de lado. Pensam que tudo se acaba numa resenha quando as coisas deveriam apenas começar aí. Daí para o ensaio, para a leitura mais ampla, para a sala de aula não só da universidade, como também do colegial, o ônibus — por que as faculdades de medicina não ensinam literatura também, por acaso médicos e engenheiros devem ter a sensibilidade extirpada? Todos nós ficamos naturalmente chocados quando ouvimos falar em excisão, a retirada do clitóris. Mas não percebemos que a amputação da sensibilidade e da inteligência num sentido amplo é praticada obsessiva, metodicamente. Formar um profissional capaz de ter apenas meia dimensão das coisas é castrá-lo, é matar a sua humanidade, é produzir uma peça, um robô capaz de responder somente a determinadas fórmulas.

• Você publicou alguma prosa antes de entrar na poesia, como foi isso?
Hoje só posso ver aquilo como um exercício inicial. A gente sempre escreve como exercício, nada há de definitivo, mas, entende, era uma entrada. Soa curioso porque normalmente as pessoas começam na poesia e, quando “amadurecem”, passam a escrever romances e contos. Foi uma questão de linguagem. A prosa começou a se desfazer, talvez fosse muito artificial para mim. Não quero dizer que a prosa seja mais artificial do que a poesia. Só falo a meu respeito. Era distante, não batia comigo. Há pessoas que passam, não da prosa mais poética, mas da narrativa para o poema sem mais aquela e vice-versa. Ótima essa versatilidade. Mas tudo depende da mão de quem escreve.

• Você quer dizer que rejeita esse trabalho anterior?
Não tenho apego a baús. E acho muito engraçado quando alguém fala o que escreve como “Minha Obra Como um Todo”, assim em maiúsculas, como se isso tivesse alguma importância em si. Não é ridículo? Que todo? Por acaso os fragmentos da Safo não são maravilhosos? As pessoas passam a funcionar como se os nomes delas fossem marcas comerciais a ser cuidadas devidamente, não? O fato de que algo tenha sido impresso não quer dizer nada. Quantos artigos e reportagens a gente escreve? Será o fetiche do livro?

• Você é jornalista. O jornalismo ajuda ou atrapalha a literatura?
Ajuda, tudo ajuda. O jornalismo é uma profissão como outra qualquer, tem afinidade com a literatura, mas não precisa ser literatura. Quando é, ótimo. Quando não é, não deve ser. Respeito os escritores “profissionais”, que produzem livros em série, textos para televisão, cinema etc. Sei o quanto isso é difícil etc. E há grandes autores profissionais, qual o problema? Tudo depende de quem faz. Por exemplo, alguém que só escreve precisa ter muito presente que a literatura é feita de palavras mas caso se limite a elas vira coisa nenhuma, não?

• Você é autor de uma tese de doutoramento para a Universidade de São Paulo, que está para ser publicada. O tema principal é o holocausto. Por que esse tema?
Porque esse é um tema que interessa a todos nós. Não podemos ficar indiferentes ao fascismo e seu objetivo, que é, repetindo, a destruição do humano. E esse fascismo está tanto nos governos, nas corporações, na emoção instrumentalizada, no nosso dia-a-dia mais mínimo.

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho