O que é que a boneca tem?

Em seu primeiro romance, Amara Moira recria literariamente a linguagem das travestis em uma história picaresca sobre a “profissão do amor”
Amara Moira, autora de “Neca” Foto: Renato Parada
01/03/2025

E se o Ricardinho, protagonista do incontornável Tanto faz, fosse trans, naquele longínquo 1981, quando o livro de Reinaldo Moraes foi lançado? Bem, provavelmente ele se divertiria, andaria e, principalmente, falaria como Simona, a personagem de Neca, primeiro romance de Amara Moira.

Mais de 40 anos separam essas duas obras, mas a associação parece óbvia quando se coloca, lado a lado, a narrativa tresloucada “reinaldiana” com o “bajubá”, a linguagem das travestis que está no centro do romance de Moira. Um tipo de linguagem “desabrida”, áspera, desbocada, chula, receptiva a expressões estrangeiras, ao coloquialismo da língua e àquilo que não está no dicionário. E, principalmente, picaresca. A ponte por onde passa o hedonismo de Simona e Ricardinho.

Nada de muito extraordinário acontece em Neca. Porém, é pela forma, intensa e original, que o leitor é fisgado e levado, de um jeitão meio aleatório, para dentro das aventuras de uma trans que vive o deleite e as tristezas de uma vida no underground.

“Passada! O ocó, cê acredita que ele pediu pra eu nenar na neca dele?” A primeira frase do livro foi soprada por uma amiga travesti e serviu de start pra “sacada” do romance: trabalhar literariamente o “idioma das bichas”. “Eu já era fascinada com o bajubá, mas foi essa frase que me fez perceber todo o potencial que a linguagem teria”, diz a escritora, que lançou seu primeiro livro, E se eu fosse puta, em 2016.

Com uma longa trajetória nos estudos acadêmicos, Moira dedicou seu projeto de doutorado na Unicamp ao clássico Ulysses, principal romance de James Joyce.

E claro, a obra do autor irlandês foi uma espécie de farol para que ela ousasse na escrita de seu próprio romance. “Joyce me ensinou a prestar atenção ao português que é cotidianamente recriado e que ainda não possui registro escrito.” Moira espera que a linguagem revigorante ganhe mais atenção do que a autora trans que a criou.

• Neca já havia sido publicado em 2021. Como foi a trajetória do livro até chegar a essa versão que temos agora?
Neca surgiu, primeiro, como um parágrafo do blog E se eu fosse puta (2015), quando escutei de uma amiga a frase inicial do texto: “Passada! O ocó, cê acredita que ele pediu pra eu nenar na neca dele?”. Eu já era fascinada com o bajubá, mas foi essa frase que me fez perceber todo o potencial que a linguagem teria, caso explorada literariamente. Daí eu roubei essa frase da minha amiga e a transformei num parágrafo no dito blog, que em 2016 se tornaria livro. Em 2017, o Festival Serrote, no IMS, me encomendou um texto em bajubá para ser lido no evento e procedi com a expansão daquele trecho inicial. Foram três páginas bastante cifradas, que li para uma plateia nada familiarizada com a língua e que reagiu com um silêncio perplexo ao longo de toda a leitura. Em 2019, produzi uma versão com o dobro do tamanho para a antologia A resistência dos vagalumes (Nós), edição que republiquei sem mudanças no livreto Neca + 20 poemetos travessos (O Sexo das Palavras, 2021). Durante a pandemia foi quando o texto mais cresceu, pois consegui criar uma rotina de escrita que me permitia ir aumentando diariamente 500 caracteres ao texto. Para me obrigar a escrever, me comprometi a publicar pequenos trechos inéditos na minha coluna da BuzzFeed e em outras antologias, mas foi só no começo de 2023 que a obra entrou no radar da Companhia das Letras. Firmamos o contrato e a tarefa agora era juntar todos esses trechos esparsos e expandir o máximo possível o texto. A ideia original era fazê-lo chegar a umas 300 páginas, que funcionariam como uma espécie de enciclopédia de cultura travesti, com tudo o que aprendi nas ruas e nos meus estudos sobre a temática, mas um ano e meio depois do contrato assinado eu só tinha conseguido alcançar 120 páginas e decidi que era hora de dar um ponto final. Um plano que tenho, no momento, é continuar expandindo esse texto e, quando os leitores estiverem acostumados com esse nível de bajubá, publicar uma versão com as tais 300 páginas e ainda mais cifradas. Seria a minha versão do Finnegans wake, mas um Finnegans que um erudito poliglota penasse para entender cada mísera página e uma travesti que mal terminou o ensino médio conseguisse compreender facilmente.

• A linguagem é o grande personagem do romance. Além do bajubá, há uma série de palavras em outros idiomas que se fundem com o português falado, com a pronúncia coloquial, e dão origem a novos termos. Como você deu forma a essa linguagem?
A cultura travesti é naturalmente “poliglótica”. Seja num nível interno, visto que as travestis que trabalham com prostituição estão sempre migrando dentro do país, seja num nível externo, pois a transfobia ainda hoje faz com que muitas de nós viajem para o exterior em busca de sociedades mais tolerantes. Daí não causar nenhum espanto quando uma travesti diz que “desde bambina se sente mulher”, por exemplo, ou quando ela solta palavras de outros idiomas no meio das suas falas. As línguas de terreiro, iorubá e banto, sobretudo, são a base do bajubá, mas nele o espanhol (“maricona”, “regalo”), o francês (“bafão”, de basfond) e principalmente o italiano (“guanto”, “mandjéury”, “troppo bella”) também têm um papel crucial. No livro, eu quis fazer uma homenagem a esse caldeirão linguístico que é a cultura travesti.

• Para quem não está familiarizado com a linguagem bajubá, a leitura pode ser um pouco difícil, pelo menos no começo. Você cogitou incluir um glossário no final do livro? Ou essa “facilidade” amenizaria o desafio da leitura?
Nunca cogitei trazer glossários. A provocação do meu editor, Ricardo Teperman, foi uma espécie de guia ao longo da expansão do texto: “Explore quanto você quiser o bajubá e as línguas estrangeiras, mas garanta que o leitor vai achar que está entendendo”. A proposta, portanto, era criar um terreno escorregadio, mas que de passinho em passinho fosse possível concluir a travessia. E eu queria que a pessoa, mesmo que não estivesse entendendo, pudesse sentir fascínio diante dessa linguagem e das contradições da minha protagonista. O bajubá já foi tratado como língua de marginais e eu acredito que esse maravilhamento é essencial para transformar a maneira como travestis são vistas.

• Várias palavras do bajubá têm origem nas religiões de matriz africana. Como aconteceu esse “crossover” linguístico, em que as travestis “se apropriaram” e deram novos significados a esses termos?
Há várias hipóteses para isso. Diz-se, por exemplo, que as religiões de terreiro lidam mais tranquilamente com a dissidência sexual e de gênero, o que ajuda a explicar a presença maciça de LGBTs lá (resta saber se isso ocorre só no Brasil ou se também em outros países onde as religiões de matriz africana marcam presença, como Cuba, por exemplo). Além disso, escutei de uma militante que, no período mais brutal da perseguição na Ditadura, os terreiros eram um dos únicos espaços seguros de socialização para travestis… isso bate com os primeiros registros do bajubá com nítida influência das línguas de terreiro (uma matéria da revista Manchete de 1975 e um nota do Lampião da Esquina de 1980). Antes disso, os registro de uma língua da comunidade traziam basicamente palavras do português, junto com uma ou outra coisinha do francês.

• O livro é um monólogo, no qual o narrador é meio que autossuficiente para contar a história. Por que optar pela autoficção? Aliás, considera Neca autoficção?
Eu estou presente no Neca como a interlocutora da protagonista Simona, mas minhas palavras nunca aparecem. É como se eu me imaginasse novamente nos meus primeiros dias na batalha, recebendo orientação de uma amiga da pista que, por coincidência ou não, é também uma ex-namorada de antes da minha transição. Há pontos em comum com a minha história, obviamente, mas estou gostando de brincar de usar elementos biográficos com muita liberdade, sem ter a obrigação de escrever autobiografia. O que vivi, ouvi e imaginei se mescla, sem que possamos definir com clareza cada um desses elementos na trama. Depois de E se eu fosse puta, fiquei saturada de expor de maneira tão explícita a minha vida sexual… A saída foi optar por esse modelo mais borrado, que não se deixa definir tão fácil.

• Para além da sua carreira, o fato de o romance estar sendo comentado e lido por um público diverso, representa um ponto de afirmação para a comunidade trans, pelo menos no cenário literário?
Acredito que a literatura tem um papel a cumprir nesse contexto desafiador que vivemos: onde nossos corpos não conseguem se fazer presentes, nossos livros podem ir abrindo espaço. Há uma crise de narrativas, já não sabemos mais no que acreditar, em quem confiar, o que esperar do futuro e, nessa crise, a LGBTfobia volta a ser usada para insuflar pânico moral. Com esse livro, eu espero levar um público mais amplo a olhar com fascínio, com assombro, com deleite para a cultura travesti. Quero também que mais travestis percebam o ouro que possuem nas mãos e se aventurem a imaginar histórias nessa linguagem absurda.

• Em um texto sobre sua trajetória, você fala que quando terminou a tese de doutorado na Unicamp, houve muito interesse da imprensa, não por conta da qualidade do trabalho, mas sim por você ter sido a primeira pessoa trans na história da universidade a ter recebido a titulação usando o nome social. Você tem receio de que isso possa acontecer com sua obra literária? Que o texto seja menos comentado do que a autora?
Eu sinto que sofri um pouco disso com a publicação do E se eu fosse puta, que foi mais lido como uma autobiografia convencional do que como uma obra literária. Parece que minhas estripulias verbais ficaram num segundo plano, importando mais a historinha que eu trazia. No Neca, tentei fazer com que não seja possível ignorar o aspecto inventivo da linguagem… como você mesmo colocou, a linguagem é protagonista nessa obra. A minha dúvida, no entanto, é se a crítica tradicional estará disposta a encarar essa linguagem (e seu conteúdo francamente obsceno).

• Uma associação entre o seu romance e Grande sertão: veredas, em termos de linguagem e também na problematização da relação de gênero, faz sentido para você? O livro de Guimarães Rosa de alguma forma foi importante na sua vida de leitora e escritora?
O livro de Rosa é um marco na literatura brasileira, seja pelo seu requinte em termos de linguagem, seja pela temática explicitamente transviada. No entanto, Grande sertão entra tarde na minha vida, já durante o meu doutorado. Além disso, sinto que Rosa é muito pudibundo nas suas obras. Nesse sentido, acredito que Neca e mesmo E se eu fosse puta têm mais a ver com o Ulysses, de James Joyce. Eu sinto fascínio pelo bajubá desde os meus primeiros contatos com a língua, no comecinho do século, mas foi Joyce quem me mostrou como a crueza da cultura travesti pode ser explorada literariamente.

• Qual é o peso da influência da obra de James Joyce, autor que você estudou na universidade, na sua escrita, em termos de linguagem, principalmente?
Até conhecer Ulysses, eu compartilhava da desconfiança dos poetas concretos em relação à prosa, acreditando que apenas a poesia fazia um uso radical da linguagem. Joyce me mostra que prosa e poesia podem conviver numa mesma obra, algo que eu quis testar ao escrever um texto que, explorando o tempo todo recursos poéticos, ainda assim passasse por coloquial. Além disso, Joyce me ensinou a prestar atenção ao português que é cotidianamente recriado e que ainda não possui registro escrito, esse português que não cabe na norma culta, mas que pode ser um portal de experimentações na mão de escritores.

• Quais outros autores ajudaram a “formatar” sua escrita literária?
Marquês de Sade e Hilda Hilst me ensinaram que os lados mais sombrios da imaginação podem resultar nas nossas melhores contribuições à literatura. Mas devo profundamente à corja de escritores que se dedicaram a escavar o português obsceno em suas produções, dos trovadores medievais a Glauco Mattoso, passando por Gregório de Matos e Bocage. E eu ainda citaria os poetas concretos e Ezra Pound, pois foi com eles que aprendi a buscar a radicalidade na escrita. Por fim, não poderia deixar de fora o livro Princesa, autobiografia da travesti paraibana Fernanda Farias de Albuquerque, escrita em parceria com o intelectual Maurizio Jannelli, quando ambos estavam presos em Roma. A obra foi escrita em italiano e os manuscritos de Fernanda representam o puro suco de cultura travesti, com expressões saborosas como “io sono quem sou”.

• Neca é salpicado por poemas. Que importância a poesia tem na sua vida e na sua literatura?
Até a minha transição de gênero, eu basicamente só escrevia poesia (parte dela está compilada na publicação fora de catálogo Neca + 20 poemetos travessos, versão anterior do atual Neca). Quando transiciono, no entanto, sinto a necessidade de usar a prosa para entender esse novo mundo que se desenhava diante de mim. Começo então com textões de Facebook, dali vou para o meu fatídico blog e de lá para os meus primeiros livros. Atualmente, me vejo como uma prosadora, mas uma prosadora que não sabe escrever sem pensar intersecções permanentes entre prosa e poesia.

• A partir de sua trajetória acadêmica, tem-se a impressão de que você é bastante versada nos clássicos. Mas que autores da literatura mais contemporânea fizeram ou fazem sua cabeça, brasileiros e estrangeiros?
Um professor que admiro muito, Paulo Franchetti, fez recentemente um post no Facebook com uma reflexão inusitada: quantos livros um intelectual dedicado conseguiria ler ao longo da sua vida? Concluiu que, com cerca de 40 anos de dedicação à pesquisa, lendo uma média excepcional de 50 livros por ano, chegaríamos a cerca de dois mil livros. As boas bibliotecas possuem pelo menos dez vezes mais livros do que isso, o que já indica que, no melhor dos casos, só conseguiremos ler uma pequena fração das excepcionais obras que já foram publicadas, que dirá das que ainda serão. Isso tudo para dizer que tenho uma relação ainda superficial com obras contemporâneas… há uma profusão de títulos saindo diariamente e confesso que meus olhos ficam mais seduzidos por obras que, publicadas há algum tempo, seguem seduzindo novas gerações de leitores. Não é algo bom de se dizer quando se está lançando um novo livro, mas a regra que sigo é: esperar alguns anos para ver se continuam a recomendar a obra e só então lê-la. Já que nossa capacidade de leitura é tão limitada, espero escolher livros que gerem impacto na minha vida. Dentre os contemporâneos brasileiros, gosto sempre de citar Conceição Evaristo e Natália Borges Polesso. Dos estrangeiros, o Testo Junkie, de Paul B. Preciado, é um que continuamente me desafia.

• Seu histórico acadêmico, de alguma forma, ajudou no acolhimento de sua ficção tanto no mercado editorial quanto entre a crítica? Caso não fosse uma acadêmica, acha que seria diferente?
É possível que sim, mas gosto de imaginar outra ordem para os termos dessa pergunta: minha trajetória acadêmica foi crucial para que eu encontrasse um jeito de escrever que, ao mesmo tempo, subvertesse os padrões de literatura brasileira e chamasse atenção para os saberes produzidos à margem do cânone. Ler Os lusíadas, A divina comédia, Shakespeare, Homero foram cruciais para que eu aprendesse a tirar o máximo de proveito do bajubá e da cultura travesti. Então, sim, acho importante que diversifiquemos nossas leituras e prateleiras, mas sou absolutamente contrária a discursos que tratam o cânone como algo desprezível ou desprezável… independentemente de quem a gente seja, há muito o que aprender, por exemplo, com Fernando Pessoa. As obras produzidas pelo passado têm a assinatura do fulaninho lá, mas são patrimônio da humanidade. A linguagem com a qual construímos nossas obras é coletiva e, portanto, as obras também o são. O escritor é quem põe no papel algo que está sendo produzido coletivamente. O que seria de Grande sertão sem gerações e gerações de sertanejos reinventando cotidianamente o português?

• Quando escreveu Neca, pensou como o livro seria recebido, tanto por pessoas familiarizadas com o universo LGBT quanto por leitores alheios a esse tema? E o que espera de sua carreira a partir de agora?
Joyce escreveu a vida inteira sobre irlandeses e gentes de todo o mundo conseguem se imaginar naqueles personagens estapafúrdios de suas obras. Eu pretendo fazer o mesmo com travestis. Continuarei fazendo da cultura travesti o cerne da minha produção literária, na expectativa de que um dia sejamos capazes de admirar essa comunidade, de nos vermos nessas figuras ao mesmo tempo tão contraditórias e tão belas.

Neca
Amara Moira
Companhia das Letras
120 págs.
Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

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