Ao escrever sobre o livro Abraçar ordenhar aleitar (2001), recordo haver dito que a poética de Jorge Lucio de Campos soma-se às reflexões sobre a obra plástica de inúmeros artistas, ensaios que vem publicando em livros e revistas, na condição de uma vertiginosa compreensão do que ele próprio já chamou de “a dor da linguagem”, belo título de um livro de 1996. Neste livro, aliás, logo no prólogo, Marco Lucchesi o chama de “poeta peregrino”, no que acerta por completo, tanto pelo sentido de rara beleza que ali alcançam as imagens como pelo incansável percurso desfiado por Lucio de Campos à procura de uma voz interior que o distinga da paisagem à volta, ao mesmo tempo em que lhe afirme, com base na própria individualidade, como parte essencial dessa mesma paisagem. Não à toa a idéia de incomunicabilidade que o título sugere é igualmente uma afirmação de seu revés, o dentro e o fora como vasos comunicantes, interrelacionados.
Esta mesma condição de peregrinante encontramos no fino ensaísta que é Jorge Lucio de Campos, lugar a que pertence o diálogo que leremos a seguir, espécie de devota lapidação da percepção e da visão crítica de mundo. A intensidade dessa consciência da vertigem criadora, a transitar livremente por diversos mundos da linguagem, a encontramos tanto na poesia quanto no ensaio, em livros como À maneira negra (1997) ou A vertigem da maneira (2001). Carioca de nascimento, Jorge Lucio de Campos (1958), além de poeta e crítico de arte, é também filósofo, e leciona na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
• René Magritte certa vez apontou uma incoerência em Heidegger entre suas preferências e a maneira como escrevia a respeito delas. Usava então como exemplo seu amor declarado por Hölderlin: “Fala do significado filosófico dos poemas e a essência da poesia que quer definir refere-se a outro conhecimento distinto do poético que não nos é necessário definir”. O que te parece ser necessário definir em se tratando de poesia?
A poesia, para mim, não define outra coisa que o próprio pensamento. Gostaria de deixar bem claro aqui o que entendo, contudo, por pensamento, ou seja, menos a costura racional dos conceitos do que todo e qualquer impulso de interpretação das coisas rumo à fabricação de seu sentido. Tal ato de fabricação a que me refiro é aquele que se mostra, por sua vez, tão intenso e matizado a ponto de perfurar, como uma seta, nossas experiências psicológicas e (mais do que nunca) nossas percepções sensíveis, não embotadas, das parcelas de realidade que julgamos, adiante, poder remontar sob o precário nome de ‘mundo’. Em minha opinião, a experiência poética se dá tão-somente quando nos permitimos (ou nos é consentido) contemplar, desinteressadamente, o que nos cerca, nos toca ou atrai nas (infelizmente cada vez mais) raras ocasiões em que conseguimos, urbanamente, nos desvencilhar do abraço mortal do que se poderia chamar, na esteira de estudiosos como Debord e Baudrillard, de “espetáculo” ou “hiper-realidade”, ou seja, dessa elisão homogeneizadora do real que as próteses tecnológicas (em particular, as que envolvem a visão) nos impõem de um modo, ao mesmo tempo, astucioso e insolente. A minha concepção pessoal do ato poético deve-se a poucos, entre eles, certamente, Nietzsche e Heidegger. Toda vez que penso em definição, no que tange à poesia, não consigo deixar de me remeter às idéias de fluxo, potência, campo de forças. Por outro lado, também não consigo furtar-me a construtos heideggerianos como essência, saber, verdade… Sem dúvida, mais ainda do que o pensamento, é a própria realidade que a poesia se propõe definir: seja como profundidade, espessura ou “totalidade” intuída. Entretanto, o calor que as coisas expelem — no momento exato que com ela nos conectamos, de uma forma aberta e direta, sem outra intermediação que a de nossa própria sensibilidade — indica a sua precariedade, digamos ontológica, intrínseca… A percepção poética é sempre instável e incompleta. Diria que é, antes, “estabilizante”, “completante” de si mesma, pois demanda o improviso da palavra, a busca de uma materialidade que, via de regra, julgamos mais adequada para a expressão de nosso pensamento acerca daquilo que “seja”, sendo que ela mesma nunca se arremata, visto se lançar, continuamente, para a frente, rumo a um gesto vertiginoso de completamento que não se basta. Creio que a linguagem poética é milenar exatamente por isso: por preencher, como nenhuma outra via discursiva, essa experiência “quente” de um mundo eternamente “capturável” em seu esplendor de (falsa) totalidade. O poeta intui o que o cientista e, mesmo, o filósofo não conseguiram com suas descrições minuciosas, universalistas, idealizadoras e, mais ou menos, competentes. Por isso, a poesia conseguiu resistir, até agora, a todo tipo de rigores e armadilhas. Com certeza, persistirá muito tempo ainda — na condição híbrida de incômodo e dádiva — ao menos enquanto persistir no homem a consciência de sua condição de “honesta” humanidade, isto é, a de um ente que sabe ser fadado à imperfeição.
• Muitos comentaristas de tua poesia destacam um diálogo íntimo seu com a imagem plástica. Como lidas com a relação entre as imagens e a escolha das palavras para descrevê-las?
Tenho buscado, desde minha mais remota produção poética, este diálogo, mas ainda não estou certo de tê-lo realizado como deveria, poderia ou gostaria. De qualquer modo, a minha concepção de poesia é ampla o suficiente para que nela também caiba a minha paixão pela pintura. Desde cedo, aprendi a admirar poetas e pintores em cuja obra pude detectar um espaço adequado para tal diálogo. Entre os poetas, os primeiros que me chamaram a atenção foram Murilo Mendes, Tzara, Williams, Stevens, Marianne Moore e Ashberry. As poéticas ditas pós-modernas também se tornaram objeto de minha curiosidade (por que não dizer desejo?), mas isso já no início desta década. A curiosidade logo deixaria de ser meramente acadêmica para tornar-se visceral. O contato com o trabalho de alguns pintores contemporâneos norte-americanos como Eric Fichl, Mark Tansey e David Salle, veio reforçar um espontâneo apego pela relação, entre poesia e imagem pictórica, que eu já nutria desde a década anterior, quando passei a conhecer melhor (sou professor de Estética e de História da Filosofia e da Arte) o dadaísmo e o surrealismo (no caso, a partir, principalmente, dos quadros de Schwitters, de Chirico e de Magritte). Na ocasião, esbarrei com imagens de tal modo eivadas de poeticidade e vigor conceitual que não poderia ficar impassível diante delas. Como tive a oportunidade de esclarecer numa outra entrevista, a relação que venho fomentando em meus poemas não quer ser a da simples ilustração. De pouco adiantará ao leitor a checagem, pura e simples, das telas (e outras dicções alheias, já que também cito poemas e até canções) a que meus títulos remetem. Não se trata nunca ali de captar, com a palavra, a poesia da imagem ou, antes, de descrevê-la textualmente, mas de transcriá-la num processo de dupla captura. O objetivo sempre foi gestar uma espécie de “transpoesia do pictórico” na mesma proporção que os pintores citados acima tentam gestar uma espécie de “transpintura do poético” (é importante atentar para a definição de poético que formulei anteriormente). A referência-chave aqui seria o que Deleuze propõe como “dispositivo figural” em seu ensaio sobre a pintura de Bacon (Francis Bacon — Logique de la sensation, Éditions de la Différence, Paris, 1981). Mais do que explorar uma possível continuidade discursiva entre texto e imagem, busco extrair a capacidade (potencialidade) “textual” da imagem nela mesma, o que, de modo algum, implica em qualquer tipo de redução ou engolimento de uma pela outra.
• Borges observa uma distinção entre Joyce e Mallarmé no sentido da relação com a linguagem como um jogo. Para Borges, Joyce se divertia enormemente com a criação: “as aliterações, as consonâncias, são para ele um jogo, um belo jogo, do qual se ri”. Por outro lado, seguindo seu raciocínio, Mallarmé não se divertia em nada: “Sente-se sempre o esforço. Sente-se que está demasiado consciente do que faz”. Como te relacionas com tal distinção entre jogo e consciência?
Não me parece fácil distinguir entre uma coisa e outra. Não tenho dúvida de que todo autor — e não só Mallarmé, Joyce ou qualquer outro dos chamados “transgressivos” — tem plena consciência do grau de loucura e agressividade que consegue conferir (quando é o caso) às suas soluções poéticas (não comungo, com alguns críticos, a crença numa hipotética “isenção” do Autor em relação à Obra). Agora, se conseguirão extrair de seus atos certa dose de divertimento ou bom humor é uma questão totalmente outra. Deleuze aludiu algures às gargalhadas de Kafka, acerca dele próprio e do que (e como) escrevia, quando na presença dos amigos mais chegados. No entanto, ninguém parece mais circunspecto do que ele na galeria de retratos da moderna literatura européia. Como Borges soube melhor do que ninguém, a relação com a linguagem como um jogo só pode ser viabilizada a partir de uma conscientização plena de seus poderes perversores. Por outro lado, é sabido que tal conscientização, sem dúvida, nos libera de uma série de bloqueios, o que certamente nos torna mais leves e predispostos ao riso, a acentuar o aspecto lúdico-libidinal das coisas. Veja bem: Mallarmé nunca me pareceu menos hermético do que Joyce, nem suas inversões sintáticas menos insólitas que as propostas pelo irlandês. Uma antiobra como Igitur ou La folie d’Elbehnon pode ser muito divertida se considerada como a maioria encara, por exemplo, o Finnegans wake. Mesmo Borges, que muitos acham um autor bem-humorado, amiúde não consegue disfarçar que uma dimensão trágica e infame subjaz em seu texto. Creio que tudo isso depende mais da recepção da obra do que das intenções do autor. No meu caso específico, nunca considerei muito divertido driblar, ao escrever poemas, as habituais possibilidades expressivas da linguagem. Sob este prisma, creio que me identificaria mais, aos olhos borgianos, com Mallarmé, pois o esforço da manipulação das palavras é demasiado árduo e as possibilidades de sua boa assimilação pelo leitor (de haver, no caso, uma efetiva comunicação entre escritor e leitor) mínimas, o que é frustrante e, portanto, doloroso. Algumas vezes (não muitas), devo confessar, porém, que consigo rir do que escrevo (e também por perder grande parte de meu tempo, escrevendo) e desta situação de inércia intelectiva e embotamento sensorial que, infortunadamente, necrosa a nossa cultura. Trata-se de um riso nervoso, é verdade, que, no meu imaginário, deve se assemelhar com o que acometia Joyce e fez com que Mallarmé o introjetasse.
• Ao comentar teu Arcangelo (1991), João Guilherme Quental diz-se tomado por um certo espanto diante da precisão e do rigor com que te mostras em um livro de estréia. Talvez devesse espantar mais o que os poemas expressam, como no caso de Enigma e Elegia. No entanto, observo que tua estréia em livro, aos 33 anos, é a de um poeta que vem há algum tempo amadurecendo visão de mundo e experiência com a linguagem. Em tal sentido, o que andavas fazendo até o momento da publicação do primeiro livro?
Comecei a arriscar poemas aos 14 ou 15 anos. Foi a via que, primordialmente, escolhi para uma primeira incursão consciente ao simbólico. Antes (e depois) alimentei o ideal da música, da pintura… mas o que efetivamente me impactou foram os dispositivos literários. A leitura programada de Verne, Bandeira e Drummond, assim como o encontro precoce e clandestino com Bocaccio e Poe, deixaram marcas indeléveis em minha sensibilidade. Optei cedo pela poesia, mas não posso deixar de registrar uma outra territorialidade vital em minha formação: a filosofia. Sua descoberta se deu por volta dos dezoito anos e ela virou uma espécie de lente sem a qual não consigo mais enxergar o que há de nuançado na realidade, como um processo furta-cor. A química da poesia e da filosofia se viu reforçada, quatro ou cinco anos depois, por um flerte (hoje assumidas núpcias) com a pintura que, consolidando em mim um gosto pelo contemporâneo, vem me incendiando nos últimos quinze anos. Hoje não consigo mais desmembrar essas três territorialidades matriciais: poetizar, para mim, significa pensar, assim como refletir significa imaginar e visualizar, revolver a linguagem, entrar em seu jogo de acolhimento simultâneo do ver e do dizer. Assustado com o pouco caso das pessoas, preservei minha primeira produção, praticamente quis esquecê-la, mesmo ignorá-la… Contudo o acaso acabou trazendo-a à tona, graças à convivência com algumas pessoas que se prestaram a, mais do que lê-las, “compreendê-las”. Fiquei, na época, surpreso com o reconhecimento dali advindo e, de lá para cá, venho assumindo este misto de inclinação, vício e vaidade. Tudo passou a ser uma questão de investimento e amadurecimento. Desde a publicação de Arcangelo (com o qual venci um concurso literário promovido pela UERJ), em 1991, lancei quatro coletâneas: Speculum (1993), Belveder (1994) — na qual, à guisa de Borges, optei por recopilar, rebatizar e interferir no que já escrevera — A dor da linguagem (1996) e À maneira negra (1997). Entretanto, a primitiva sensação de embotamento não foi ainda superada. De 1998 para cá, preparei mais três coletâneas: Lição de alvura (1998), Devoração (prosa poética, 1999) e Ausência de lis (2000) que continuam inéditas. Nenhuma editora se interessou por elas a não ser no esquema pagou-publicou que, sinceramente, já não consigo mais tolerar. Hoje prefiro que permaneçam nessa condição, semi-ausentes (digo isso porque parte delas está disponível em minha página na Internet), até que se manifeste algum interesse “qualitativo” em reproduzi-las. Sei que, assim, continuarei, como estou desde minha estréia, um pouco à sombra, meio no limbo, consideravelmente ignorado pela crítica, pela mídia e pelos antologistas. Hoje, porém, aos 41 anos, não me importo tanto com isso, pois não necessito de incrementos externos para continuar escrevendo. Faço poesia por ter assim me compromissado com o que me cerca e não pretendo fazer concessões a respeito.
• Em A dor da linguagem (1996), te pronuncias, à guisa de prólogo, mencionando uma investida recorrente “em velhos cacoetes”, o que de alguma maneira estaria impedindo que alcances a “identidade diccional” que buscas. Poderias nos falar um pouco acerca dessa identidade? Além disto, quais os motivos essenciais que te levam a escrever?
Preocupo-me muito em ser contemporâneo: em minha vida, em meu pensamento, em minha poesia… mesmo que, para tanto, precise atingir um nível quase insuportável de extemporaneidade. Digo “contemporâneo”, é claro, no sentido mais forte da palavra: o de estar ligado ao meu tempo, pensá-lo com seriedade, rir com ele (e não dele) de tudo aquilo que ainda lhe falta e ninguém vê… Problematizar a deriva de seu tempo, mesmo que este venha a deserdá-lo, eis o caminho certo, a rota a ser seguida por todos aqueles que fazem questão de ser contemporâneos. Quando, no prólogo de A dor da linguagem, usei a expressão “velhos cacoetes”, quis me referir a uma obsessão que, na época, me parecia um grande obstáculo para a disseminação de meus escritos. Preocupava-me o fato de ser considerado um poeta hermético, de difícil comunicação, excessivamente acadêmico… Hoje, sinceramente, isso já não me incomoda. Creio ter explicitado antes, com clareza, as razões dessa mudança de atitude. De qualquer modo, a minha identidade diccional já está suficientemente delineada e só me resta assumi-la, lapidá-la, enraizá-la, cada vez mais, em minha produção futura. Como já disse, sentir-me totalmente “con-temporâneo” em minha própria extemporaneidade, contribuir para que, em minha obra, a literatura de meu tempo, com efeito, se suponha, é o motivo que me leva a continuar escrevendo, apesar dos pesares.