Durante a pandemia de covid-19, Miguel Sousa Tavares registrou, em um diário, os principais acontecimentos em Portugal e no mundo. Um fato, em especial, não passou impune pelos olhos de um dos mais lidos autores portugueses da contemporaneidade.
No sul da Espanha, um ônibus levava um grupo de idosos doentes, rumo ao isolamento. Mas havia pedras no meio do caminho. Quando atravessavam uma aldeia, eles foram apedrejados pela comunidade, que temia ser contaminada pelo vírus. A desumanidade do episódio impactou o escritor, que percebeu que tinha em mãos as linhas centrais de um novo romance. Assim, nasce o Último olhar.
Pablo, o protagonista, tem uma vida extraordinária. Antes mesmo da maioridade, ele luta ao lado dos republicanos na Guerra Espanhola, sobrevive como refugiado político na França e, depois, a Mauthausen, campo de extermínio nazista. Aos 93 anos, de volta à Espanha, contrai o vírus da covid. “Como uma testemunha do século 20 chega ao século 21 para ser apedrejado porque está doente? Que respeito temos, não só por aquela pessoa, mas por nossa própria história?”, questiona Miguel Sousa Tavares nesta entrevista ao Rascunho, realizada por videochamada.
No romance, contudo, há sutis acenos ao otimismo. É o caso de Inez, outra personagem de destaque. Ela mantém um relacionamento extraconjugal com Paolo, médico italiano que atuou em uma UTI enquanto o país europeu assistia ao colapso do sistema de saúde. Após a morte do amante, infectado pelo vírus, a médica se voluntaria para cuidar dos idosos internados em uma casa de repouso. Assim, as trajetórias de Inez e Pablo se cruzam.
Tocar uma ferida recente, como a pandemia, beira a uma ousadia literária. “Eu achei que era preciso revelar o lado cruel do ser humano e, por outro lado, resgatar a dignidade das pessoas que viveram uma vida inteira e, de repente, foram abandonadas”, defende Tavares. Para o autor, a escrita de Último olhar — trabalho que o ocupou entre 2020 e 2021 — foi uma forma de viver quando a vida, de muitas maneiras, estava em suspenso devido ao isolamento.
Não é a primeira vez que o escritor português incorpora fatos históricos a uma ficção de teor crítico. Em Equador (2003), romance de estreia e a mais célebre obra de Sousa Tavares, ele resvala no colonialismo. O autor conta que a ideia para o livro surgiu após uma viagem a São Tomé e Príncipe, que realizou para uma reportagem: “Fiquei muito interessado em ir além do que era atual. Queria saber como foi a vida ali no tempo colonial”.
Na entrevista, Miguel Sousa Tavares fala sobre o processo de escrita de Último olhar e de Equador. Ele relembra o início da carreira literária e as influências de sua ficção — dentre as quais, destaca Ernest Hemingway, também um jornalista escritor. Tavares ainda menciona aspectos como a situação da literatura de língua portuguesa, a polêmica em torno de sua recusa ao Novo Acordo Ortográfico e as lições que aprendeu dos pais, a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen e o político e jornalista Francisco Sousa Tavares. Acima de tudo, o escritor destaca o último olhar da sociedade mundial para a pandemia.
• Como surgiu a ideia para a escrita de Último olhar?
Eu estava em uma casa de campo, isolado por causa da pandemia. Comecei a escrever uma espécie de diário sobre o que acontecia em Portugal e no mundo. Li uma história que conto no livro — o romance começa e termina com este episódio. É a história do ônibus que leva velhos espanhóis. Eles estão sendo transportados de um centro de saúde para uma espécie de sanatório, pois estão com o vírus da covid. Ao atravessar uma aldeia da Espanha, eles são atacados e apedrejados por pessoas que temiam ser contaminadas. Achei a história tão violenta e desumana que comecei a escrever, não simplesmente como um diário, mas como um romance.
• De que maneira você incorporou novos elementos a essa história?
Tive que construir os personagens, dar-lhes vida, passado, enredo e colocar outras personas em volta deles. Fui puxando o fio da meada. Coloquei outros elementos no livro. Por exemplo, há um amigo do protagonista, que é francês e tem a mesma idade que ele. Eu estava em processo de escrita quando li no obituário do Le Monde a história de um homem que tinha passado pelos campos de concentração nazistas, lutado na resistência e acabado de morrer de covid na França. Acrescentei este personagem à minha história, como um grande amigo do protagonista. Faço muito isso com meus livros, costurar personagens que existiram, que são reais, e personagens ficcionais.
• A pandemia é ainda um grande trauma. No momento que você estava escrevendo Último olhar, essa proporção era ainda maior. Por que você quis tocar nesta ferida?
Na pandemia, ao mesmo tempo em que tivemos grandes heróis — no livro, por exemplo, falo dos médicos italianos que combateram na linha de frente —, também tivemos grandes covardes. Em muitas situações, revelou-se o pior da natureza humana, como neste episódio dos velhos apedrejados no Sul da Espanha. Eu vi a minha volta como as pessoas se revelaram covardes e egoístas. Em meu livro, quando os velhos estão sendo apedrejados, alguém diz: “São animais”. Outra pessoa responde algo como: “Não, não são animais. Os animais não se comportam assim”. Achei que era preciso revelar o lado cruel do ser humano e, por outro lado, resgatar a dignidade das pessoas que viveram uma vida inteira e, de repente, foram abandonadas. Lembro dos velhos que queriam ver os filhos e os netos. As famílias iam aos lares de idosos se despedir através das janelas. Penso como é cruel uma pessoa ser tratada assim, retirada do convívio da família e do convívio social, como se fosse um peso.
• Como foi para você o processo de escrita e, em especial, trabalhar com esta temática?
Para mim, foi muito bom por duas razões. Era quase um relato jornalístico. Isso me ocupou durante a epidemia, me retirou a sensação de que nada estava acontecendo e de que a vida estava em suspenso. A escrita, para mim, sempre foi um ato de resistência pessoal contra as agressões do mundo. Escrever foi uma terapia. Todas as manhãs, eu acordava e sabia que a vida, de muitas maneiras, estava em suspenso. Mas eu tinha um livro para escrever e, portanto, era algo que me devolvia a vida. Eu estava vivendo, embora a existência como nós conhecíamos estivesse interrompida, quase absurda. Em meio a isso, eu tinha essa outra vida, que era escrever o livro.
• Em Último olhar, temos uma mensagem sobre a frágil situação dos idosos na sociedade, o que se agravou com a pandemia. Há até mesmo uma epígrafe que diz: “Este é um vírus bonzinho, só mata velhos”. Você quis também reforçar uma crítica a esta situação?
A frase da epígrafe foi dita, no início da pandemia, por uma cientista muito prestigiada em Portugal. Achei a declaração tão assassina que escolhi não colocar o nome da autora da citação. Ela pode estar arrependida pela insensibilidade daquilo que disse. Aliás, depois ela acrescentou: “Já disse à minha mãe que neste Natal ela não vai ver os netos”. Ela disse isso com ar de triunfo. Isso é uma espécie de darwinismo. Pensaram que este vírus mataria apenas os velhos. Então, ficaríamos longe deles, pois eles poderiam nos contaminar. Este é o ponto de partida do meu livro: a facilidade com que descartamos os velhos. Nossos pais e avós, de repente, deixaram de ter qualquer utilidade. A única utilidade deles, na pandemia, era morrer longe de nós.
• Como você vê a temática do envelhecimento e da pandemia na literatura recente?
Estive em uma feira literária com Lídia Jorge, autora que também escreveu um romance sobre a pandemia. O livro se concentra no último ano de vida de sua mãe, que morreu de covid. Lídia não a viu durante este tempo, pois a mãe foi internada e ela não pôde vê-la. Mas ela disse para a Lídia: “Filha, escreva um livro sobre isso”. O livro se chama Misericórdia. Um título muito bonito e muito triste, que diz muito sobre todo este período.
• O seu romance se concentra na história de Pablo, que vivenciou a experiência do nazifascismo em um campo de concentração. Você quis propor um paralelo entre esta vida e a situação dos idosos durante a pandemia?
Foi premeditado. Precisava criar uma história de vida para o Pablo. Veio então a Guerra Civil Espanhola. Como aconteceu com muitos republicanos, Pablo se refugia em um dos campos da França. Eu descobri, na pesquisa para o livro, que estes campos não eram de refugiados políticos, mas sim, campos de prisioneiros políticos. Embora houvesse um governo de esquerda na França, os refugiados espanhóis foram aprisionados. Mais tarde, quando a França foi dominada pelos nazistas, eles foram entregues para ser enviados a campos de concentração. Mauthausen era um campo que tinha muitos espanhóis e intelectuais de esquerda. A biografia de Pablo foi construída a partir desses dados históricos, quando eles coincidiam com a idade que pensei para ele. Arrumei uma vida extraordinária para o Pablo. Ele lutou na Guerra Civil da Espanha, foi para Mauthausen, regressou à França e contrai covid no fim da vida.
• O passado é muito presente na narrativa. Qual é o lugar deste passado dentro da sua literatura?
O passado é muito importante. Há uma citação conhecida de um autor inglês [David Lowenthal] que diz: “o passado é um país estranho, estrangeiro ou distante”. O sentido do passado é o seguinte: você está em uma aldeia e apedreja idosos sem fazer ideia da vida que eles levaram. Você está apedrejando e desejando a morte de um velho que teve uma vida tão extraordinária como o Pablo. Uma pessoa que sobreviveu à Guerra Civil Espanhola e que sobreviveu a um campo de extermínio nazista. Como uma testemunha do século 20 chega ao século 21 para ser apedrejado porque está doente? Que raios de humanidade é essa? Que respeito temos, não só por aquela pessoa, mas por nossa própria história? O passado é muito importante. Os povos que desprezam o passado jamais serão capazes de construir um futuro justo, pois não entenderam e não respeitam o que está para trás.
• Outra personagem, Inez, perde o homem que amava e se torna voluntária no combate da pandemia. Temos aí um aceno ao otimismo?
Acho que sim. A história de Inez é uma mensagem de otimismo. Quando perde o homem que ama, ela conta ao marido que o seu amante morreu. Ela poderia ficar calada. Mas Inez decidiu mudar de vida e não quer deixar mentiras e omissões para trás. Ela assume a verdade. Quando vê a morte de uma pessoa, ela envia uma mensagem a Paolo, o homem que amava, perguntando se aquilo faz sentido. Inez conclui que sim. Ou seja, ela só quer continuar a viver se essa vida fizer sentido.
• Muito recentemente, em maio deste ano, a OMS decretou o fim da pandemia. Quais mudanças você considera mais importantes?
O bom é que, da parte da ciência e da medicina, conseguimos muito rapidamente encontrar uma vacina e vacinar milhões de pessoas no mundo. Isso não parecia possível no início da pandemia. Vinha aí o fim do mundo. Diziam que não haveria uma vacina ou um tratamento em menos de cinco anos. Penso que o mundo estará muito mais esperto. Sabemos que teremos outras pandemias. Não sabemos se serão mais ou menos perigosas, mas estamos atentos a isso. A parte negativa é que não aprendemos a lição em termos de meio ambiente. Quando ficamos isolados, por exemplo, percebemos que a camada de ozônio voltou a se fechar e que apareceram animais que nunca tínhamos visto antes nas cidades. Mas sabíamos que não permaneceria assim. Poderíamos ter aprendido alguma coisa, mas voltamos ao mesmo. Agora, com a guerra da Ucrânia, ninguém mais se lembra das alterações climáticas. Voltou o destempero todo. Quem manda, mais uma vez, são os senhores das armas.
• O que das experiências durante a pandemia, com a escrita de Último olhar, ficou para você?
Quando penso que a pandemia acabou há um ano, parece que foi há uma eternidade. É como se tivesse sido uma experiência tão violenta que há uma vontade coletiva de achar que foi tudo um pesadelo. Sei que no Brasil foi bem pior. Vocês tiveram um agente funerário dirigindo o país. Uma pessoa sem misericórdia nenhuma. Felizmente, em Portugal, não tivemos isso. Me lembro das imagens do Brasil. Em especial, do Amazonas e como não havia caixões para as pessoas. A sensação de abandono deve ter sido imensa. Quando anunciaram o fim oficial da pandemia, pensei: “Só agora? Parece que foi há uma eternidade”. Isso ficou e, como diz o título do livro, é o Último olhar.
• Equador é o seu romance de estreia e também o seu livro mais famoso. O que te levou a escrevê-lo?
Foi uma viagem que fiz a São Tomé e Príncipe, uma antiga colônia portuguesa na África, para uma reportagem como jornalista. Mas fiquei muito interessado em ir além do que era atual. Queria saber como foi a vida ali no tempo colonial. Comecei a investigar sobre isso. Passei anos com a história na cabeça. Gostaria de escrevê-la, mas não sabia se era capaz. Eu tinha que estar absolutamente seguro quando começasse a escrever, de que a história era cativante aos leitores, de que ela poderia prendê-los e ensinar algumas coisas para eles. Por exemplo, eu acho que nem 1% dos portugueses sabe que tivemos escravatura até metade do século 20. Eu também não sabia até começar a investigar.
• Como se deu a escrita de Equador?
O livro partiu de um testemunho pessoal. Depois, voltei a São Tomé. Queria ver melhor as coisas sobre as quais escreveria. Gosto muito de escrever sobre os lugares onde estou. Uma vez, estava no Brasil, em um debate com Chico Buarque e disse a ele: “Eu acho extraordinário como você conseguiu escrever Budapeste sem ter ido a Budapeste”. Chico respondeu: “E você foi ao século 19 para escrever Equador?”. Eu ri e disse: “Mas fui a São Tomé”. É fácil imaginar como seria aquele lugar há cem anos.
• De que modo você vê que a questão colonial dentro da literatura portuguesa de hoje?
Há poucos escritores escrevendo sobre isso. Só recentemente. Temos mais autores falando sobre as guerras coloniais, que duraram de 1961 até 1974. Sobre o colonialismo, temos alguns estudos etnográficos. Em termos de romance, não há praticamente nada.
• Como você pensa a internacionalização da literatura em língua portuguesa?
A nossa língua e a nossa literatura, com o Brasil, ganham um peso que Portugal sozinho não tem. Tenho problemas com traduções no estrangeiro. Arranjar um tradutor do português para tcheco ou russo, por exemplo, é muito difícil. É trabalhoso chegar a outros países. Equador conseguiu. Depois, fica mais complicado. Pensam que não há autores portugueses. Tínhamos Saramago, mas ele morreu. Dizem que ninguém conhece outros escritores daqui. Falam ainda que é difícil arrumar tradutores, pois a língua não é fácil. Acho que o esforço terá que vir do Brasil. Há mais falantes e mais escritores brasileiros. Se o Brasil conseguir impor a sua literatura, Portugal irá de carona.
• Qual é a sua opinião a respeito dos contatos literários entre Portugal e Brasil?
Primeiro, temos um elefante na sala: o acordo ortográfico. Em vez de unir as literaturas e as escritas de Portugal e Brasil, o acordo as separou. Daqui a uma geração, teremos brasileiros que não entendem o português escrito de Portugal e portugueses que não entendem o português escrito brasileiro. Isso é um desastre. Toda a vida eu li os brasileiros no português do Brasil e isso nunca me causou confusão alguma. Por essa razão, também não deixo que os meus livros sejam transcritos para o português brasileiro. Acho que os brasileiros também têm que entender o português daqui. É a mesma língua. O que muda é a fonética de algumas palavras, alguns vocábulos e a maneira de dizer algumas coisas. Isso só enriquece a língua. Tentar unificar a coisa toda é uma estupidez.
• O que te leva a rejeitar o acordo ortográfico?
Esta é uma conversa para especialistas, o que eu não sou. Mas, basicamente, o que fizemos com o acordo ortográfico foi: as palavras que os brasileiros pronunciam de certa maneira, continuam a seguir a ortografia brasileira. Já para aquelas que vocês não pronunciam como os portugueses, as nossas regras foram mudadas. São coisas estúpidas. No verbo “parar”, por exemplo, caiu o acento. Tiraram o “c” de espectador. As consoantes mudas, para nós, fazem todo o sentido. Uma consoante muda significa que a vogal que vem a seguir é aberta. Dentro de uma geração, as crianças não vão conseguir entender os pais. Acima de tudo, os pais não estarão em posição de corrigi-las. É uma violência você crescer com uma escrita, aprender e trabalhar com ela — é o caso dos jornalistas, escritores e editores — e, então, em determinado ponto de sua vida, dizem: “Esqueçam o que vocês aprenderam, mudaremos tudo porque os brasileiros fazem diferente”. Eu respeito muito os brasileiros, mas nós inventamos a língua. Nós escrevemos, aprendemos, lemos Fernando Pessoa e Camões assim. Também somos capazes de ler Jorge Amado e Guimarães Rosa, o que não é fácil. Por que temos que mudar? No máximo, vamos adaptar Pessoa à linguagem de Guimarães Rosa ou de Manuel Bandeira, o que não faz sentido.
• Há algum autor brasileiros contemporâneo que você gostaria de destacar?
Muitos. Milton Hatoum, porque é do Amazonas, o meu “país” favorito do Brasil. Ana Maria Gonçalves, que escreveu Um defeito de cor. Gosto também da Tatiana Salem Levy.
• Os seus pais são duas figuras notórias: a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen e o jornalista e político Francisco de Sousa Tavares. Como as influências dos dois se manifestam em você?
Da minha mãe, em termos de escrita, zero. Ela nunca escreveu romances e eu nunca escrevi poesia. A única coisa que posso dizer que me influenciou é que ela sempre me disse para escrever simples. Faço um esforço para isso. Não gosto de muitos adjetivos e de construções elaboradas. As coisas têm que sair de modo espontâneo, naturalmente. O meu pai escrevia enquanto jornalista. Basicamente, ele era político e editor de jornal. As influências dos dois são mais de vida do que profissional. Mas era uma casa de leituras, de grandes discussões políticas, frequentada por músicos, artistas e escritores do mundo inteiro. Quando se nasce com pessoas ligadas à literatura e às outras artes, somos arrastados. A influência de um meio artístico na formação da pessoa é muitíssimo importante. A melhor coisa que meu pai fez foi não ter colocado uma televisão em casa até os meus quinze anos. Foi fundamental para a minha educação.
• Como o seu interesse pela literatura foi despertado?
Foi despertado como leitor. Tive a sorte de crescer em uma casa com pais que eram grandes leitores. Tínhamos muitos livros e eles não deixaram a televisão entrar em casa até os meus quinze anos. Os dois passatempos disponíveis eram jogar futebol no jardim ou ler. Eu praticava os dois. Antes de você escrever, você tem que ler muito. Foi o que eu fiz, li muito e fui um escritor tardio. Cheguei à literatura por meio do jornalismo. Passei muito tempo escrevendo enquanto jornalista antes de passar para a literatura.
• O que você considera o início da sua carreira literária?
Foi quando publiquei o meu primeiro livro [Um nómada no oásis, 1994]. É um livro de crônicas, textos curtos e contos. Nunca pensei que poderia escrever um romance, embora fosse um sonho antigo. Este livro foi um ensaio, a partir de pequenos textos. Eram escritos muito jornalísticos, ainda que fossem mais emotivos do que propriamente factuais. Porém, era algo diferente do que eu estava acostumado a fazer em jornais. Depois, escrevi o meu primeiro livro infantil, o que foi um grande exercício literário. Até hoje, é. Já escrevi três livros infantis e continua sendo um desafio. Você tem que se colocar na cabeça de uma criança de cinco, seis ou sete anos, que não tem os mesmos conceitos ou vocabulário de um adulto. Você tem que regredir à infância, ao início da literatura e ser um contador de histórias. O seu texto tem que ter uma linguagem infantil. Isso não é fácil. Como em tudo na vida, a simplicidade é difícil.
• Qual elemento do jornalismo você acredita ser mais evidente nos seus romances?
Fiz dois tipos de jornalismo, o de televisão e a imprensa escrita. Em nível de televisão, também havia dois tipos de escrita. Se você está escrevendo para um jornal diário, o texto tem que ser curto e simples. Se você está fazendo uma grande reportagem, é diferente. Isso é o que mais me influenciou. O jornalismo é um meio de expressão, uma forma de contar uma história extraordinária em que você usa diferentes elementos. Até hoje, essa flexibilidade é a maneira mais interessante que encontrei para narrar.
• Que escritores você aponta como as suas principais influências?
Quando escrevi o meu primeiro romance [Equador], tentei não ter nenhuma influência, pois isso era muito perigoso. Neste processo de escrita, que durou dois anos, decidi que para não ser influenciado por nenhum escritor ou nenhuma obra, eu iria reler Guerra e paz, de Tolstói. Além do livro ter mil páginas, ele é tão brilhante que não tem como você conseguir imitar ou se influenciar por ele, nem que queira. É uma história tão extraordinária que se torna impossível chegar próximo a ela. Passei dois anos relendo Guerra e paz. Acho que o reli duas vezes nestes anos. Mas se há algum escritor que pode ter me influenciado, penso que é Ernest Hemingway, porque ele também veio do jornalismo. Há algumas coisas em que nos parecemos, como a facilidade em criar diálogos, o gosto por descrever ambientes de uma forma que faça o leitor visualizá-los, sentir-se lá dentro, imaginá-lo como uma cena de filme — o que também tem relação com a minha experiência como repórter de televisão. Penso que Hemingway é meu escritor mais próximo.
• E quais são os seus autores favoritos?
Tenho muitos. Quando era adolescente, eu lia os brasileiros na estante dos meus pais, como Jorge Amado e Erico Verissimo. Era uma grande moda em Portugal. Mais tarde, comecei a ler Ernest Hemingway e John Steinbeck, os norte-americanos. Depois, escolhi os russos. Sobretudo, Tchekhov. Ele é um autor quase impossível de ser ultrapassado, assim como Tolstói e Nabokov. Mas se eu tivesse — ou quisesse — ser tão grande como alguém, seria Marguerite Yourcenar. Ela é minha escritora favorita, sempre.