O poeta e ensaísta Gilberto Mendonça Teles nasceu em 30 de junho de 1931, em Bela Vista de Goiás. Reside há 30 anos no Rio de Janeiro. Além de trabalhar como professor no Uruguai, lecionou em Portugal, na França, nos Estados Unidos e na Espanha. Já recebeu 18 prêmios literários, entre os quais: Álvares de Azevedo (Poesia), da Academia Paulista de Letras, 1971; Olavo Bilac (Poesia), da Academia Brasileira de Letras, 1971; Sílvio Romero (Ensaio), da ABL, 1971; e Machado de Assis (Conjunto de Obras), da Academia Brasileira de Letras, 1989. Entre seus livros, destacam-se A Raiz da Fala (1972), Arte de Armar (1977) e as antologias La Palabra Perdida (Uruguai, 1967), Falavra (Lisboa, 1990), L’Animal (França, 1990) e Os Melhores Poemas de Gilberto Mendonça Teles (1993).
• Como foi o primeiro contato com a literatura? Quais sensações tinha ou tem ao lembrar da infância. Há algo especial, como quando Marcel comia biscoitos, no Em Busca do Tempo Perdido, de Proust? Escrever é lidar com o lúdico?
O primeiro contato foi na escola primária, numa cidadezinha do interior goiano. A partir do terceiro ano, comecei a me interessar pelo livro de leitura, com muitos poemas infantis do famoso Poesias Infantis, de Olavo Bilac. Vejo hoje, recolhendo emoções na tranqüilidade, alguns elementos que devem ter concorrido para o meu gosto pela Poesia. Coisas que eu percebia, como o anoitecer; ou que eu era levado a sentir (pela guerra, pela propaganda do Estado Novo ou por um sentimento inato de nacionalismo), como uma vaga idéia de pátria; coisas que imaginava, como o bonde, ou que eu conhecia de perto, como o rio, tudo isso vinha nos poemas que éramos obrigados a ler na escola. E essa “obrigação” é importantíssima na formação do gosto literário. Vejo-me com nove anos, diante da professorinha que me mandava ler em voz alta o poema “A Pátria”, de Bilac. Ouço-a me corrigindo a pronúncia e ainda sinto a vergonha das suas correções diante da turma, sobretudo diante de uma certa menina que me olhava de vez em quando. Mas o que mais me agradava era algo mágico, indefinível, que eu ia percebendo na música das palavras, possivelmente no ritmo que ia descobrindo na leitura em voz alta de versos como “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!” ou “Esbraseia o Ocidente na agonia / O sol…”. No alexandrino de Bilac, o encantamento tinha algo a ver com o conteúdo do verso: o orgulho de haver nascido em Goiás de Pedro Ludovico e no Brasil de Getúlio Vargas, tanto que, quando este morreu, eu escrevi-lhe um soneto encomiástico, que aparece agora na quarta edição de Hora Aberta (poemas reunidos). No decassílabo de Raimundo Corrêa havia outra espécie de encantamento, melhor, de enigma e de curiosidade. A ordem inversa e o enjambement me faziam olhar várias vezes para o texto, tentando compreender porque o sol vinha lá no fim, como se estivesse mesmo se pondo entre as nuvens vermelhas dos céus de Goiás. E isso me agradava. Eu sabia o que era brasa por causa das fogueiras de São João, mas não sabia bem o que era Ocidente e aquele “na agonia o sol” me estimulava a imaginação. Hoje vejo que a sucessão de vogais tônicas (eia, ente, ia e ol) deve ter atuado como uma melopéia nos meus ouvidos e no meu espírito que se ia abrindo para a linguagem e para a poesia. Aos quatorze anos aprendi a metrificar, lendo Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Olavo Bilac. Começava a compreender o segredo do ritmo na poesia. Era tão difícil no início que eu às vezes passava uma semana para endireitar os versos de um poema. E devo ter comido também os meus biscoitos, madeleines, roscas e pamonhas, pois as imagens da infância me vêm nítidas, espontâneas sem precisar que eu lute com le temps perdus. A única luta (ou lide) que se conta — e que é também proustiana — é com o lúdico: apreendendo a brincar, a jogar com as palavras, o homem aprende também a jogar com o mundo. E é sem dúvida desse jogo que provém a poesia. A melhor poesia, pois escrever é mesmo (como você pergunta afirmando) lidar com o lúdico, com a alegria, com a vida. Todo poeta é também um opó-rapá-cupu-lopó alguém que saiba brincar com a linguagem para descobrir / revelar o outro lado das coisas.
• Para o texto ser revolucionário, deve haver conteúdo e forma revolucionários, ou com apenas um dos ingredientes, a revolução pode ser feita? Existe novidade hoje em dia?
Um dia me dei conta (na Retórica do Silêncio) de que há duas espécies básicas de vanguarda: uma, que se diz e se quer revolucionária, que faz manifestos e que vem por fora da literatura estabelecida e que eu chamei de provocante, pregando a destruição e anunciando uma literatura nova, que não se sabe bem como é; e outra, natural e por dentro da linguagem literária. A primeira se refere a movimentos como o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo e o concretismo brasileiro; e a segunda se aplica a todos os poetas como Bandeira, Oswaldo, Drummond e Cabral, os quais foram vanguardistas no sentido de que tiveram ousadia, originalidade e virtuosidade na produção de seus poemas, na criação de sua poesia, isto é, conheceram a fundo a sua arte/ciência de fazer versos. Depois desta “introdução”, pego a sua pergunta e junto “conteúdo e forma” num só termo — forma —, sem pensar em separá-los. Quando Maiacoviski disse que “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, ele não está separando forma de conteúdo, pois ele sabia (ou intuía) que na linguagem tudo é forma. Há, portanto, uma forma do conteúdo e uma forma da forma: esta se manifesta, aquela fica latente, mas de tal maneira que uma alteração numa repercute na outra. Por exemplo: é muito difícil que num soneto, poema fechado nos seus catorzes versos, se possa exprimir o sentido revolucionário das duas formas de vanguarda. A forma da forma não encontra liberdade para expressar a forma do conteúdo novo, literário, social ou político. Não sei se ficou claro, mas é assim que penso. No meu livro A Escrituração da Escrita (Vozes, 1996), no capítulo “O Processo da Moderna Poesia Brasileira”, faço uma síntese dos procedimentos da “Nova Vanguarda Européia”, citando, dentre outros, os seguintes movimentos: o poema visual, o sonoro ou fonético, o multidimensional, o semântico, enfim, uma série de recursos de que se valem para vender um produto poético (ou não) como novo. Todo tipo de apelação possível e impossível. Aparentemente, novidades.
• Você tem a versatilidade dos tempos pós-modernos. Escreve poemas concretos, metrificados, sonetos, verso livre? O poeta é um camaleão?
Acho que a sua pergunta atinge aqui a força de uma bela definição teórica: ser pós-moderno é misturar tudo, mas sem eliminar a autonomia de cada forma poética. É o camaleão brincando de poeta e lambendo as astúcias miméticas de Aristóteles. Ou do Teles, que mantém a tradição do aristos [aristoz], isto é, de querer o melhor, o excelente. Se essa mistura é mesmo pós-moderna, estou feliz. No Brasil o “pós-moderno” foi uma onda que passou pela universidade, arrastando todos os que só vivem do novo: ser inteligente é citar o último tango de Paris… Aliás, estou falando de barriga cheia, pois um professor da UFRJ, num livro sobre épica, estudou a minha Saciologia Goiana como épica pós-moderna. Nunca tinha pensado nisto. Mas concordei com ele: o meu livro era mesmo uma mistura de todas as formas e movimentos literários. Penso, entretanto, que não escrevo poema concreto coisa alguma: escrevo poema visual, que é outra coisa. Tanto que os concretos se valeram dos poemas visuais, que são tão antigos como a escrita. Veja-se o livro de José Fernandes, O Poema Visual, publicado pela Vozes, creio que em 1996. A minha “versatilidade” (pena que não é versutilidade) me faz ser ou pretender ser um “camaleão”: daí a minha língua comprida, língua de sogra / língua de sabre / língua de sobra / língua demais […] a língua oca / que pende langue / do céu da boca.
• Você é angustiado por alguma influência?
Li o livro de Harold Bloom (The Anxiety of Influence / A Theory of Poetry), quando trabalhei como professor na Universidade de Chicago, no fim da década de 1980, depois de haver escrito A Retórica do Silêncio, que é de 1979 (Cultrix) e possui um subcapítulo denominado “A Influência”. É claro que já sabia do nome do autor mas ainda não o havia lido, embora o seu livro tenha saído em 1973. Como a sua pergunta intertextualiza o título do crítico norte-americano, vi-me na obrigação de citar a sua obra, antes de tocar no problema da “influência”. Levantei a história desse termo e terminei o meu estudo dizendo que, hoje, em face de uma obra com que o espírito do escritor encontra identificação estética, “o novo escritor, em vez de imitar, como nos tempos clássicos, procura conscientemente atualizar os elementos que lhe parecem importantes na estruturação de sua obra. Mas não resta dúvida de que à margem de sua consciência fluem imagens, construções estilísticas e até traços do assunto de obras literárias que o tenham impressionado. Mas sempre de maneira parcial, nunca total. Senão seria o plágio”. Agora, pessoalmente posso dizer que tenho algumas influências palpáveis na minha poesia, possivelmente nesta ordem: Bilac, Cruz e Sousa, Raul de Leôni, Paulo Bonfim, Bandeira, Mário de Andrade, Drummond, João Cabral e Lêdo Ivo. Na poesia brasileira, são os autores que mais leio. De fora, devo consciente a Lorca, Jorge Guillén, Vicente Aleixandre, Reverdy, Aragon e mais proximamente Raymond Queneau. Nunca o havia lido, mas um crítico brasileiro, também romancista e tradutor, me disse: Puxa! Como a sua poesia se parece com a de Queneau. Achei graça, mas na primeira viagem a Paris saí procurando obras de Queneau. Hoje penso que ele devia ler bem português e acabou me descobrindo…
• Harold Bloon aponta Shakespeare como o inventor da modernidade. Concorda?
No Jornal do Brasil (Idéias), de 2 de setembro do ano passado, falo do Shakespeare: a invenção do humano, de Harold Bloon, como o livro mais importante que eu estava lendo. A tese central do crítico norte-americano é a de que Shakespeare “nos explica” porque “nos inventou”. Ele é o “inventor do humano” e não, como você está dizendo, “da modernidade”. A não ser que o “humano” tenha aí algo de “humanismo” e, portanto, de modernidade avant la lettre. Para Bloon, a arte de Shakespeare é tão infinita que nos contém e há de continuar abraçando os que vierem depois de nós. “As [suas] peças nos lêem de maneira definitiva”. E não é à toa, portanto, que “Depois de Jesus, Hamlet é a figura mais citada no Ocidente”.
• Walter Benjamin erra quando hierarquiza a arte dizendo que o cinema é a maior delas?
Acho que sim, que erra. A começar com a comparação entre as artes. Cada uma tem sua matéria própria, sua forma específica e seu universo especial. Destacar uma em detrimento da outra não me parece metodologicamente correto. No seu conhecido artigo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” [estou citado pela tradução francesa da Denoël, de 1971], Benjamin diz que pela primeira vez — e isto no cinema — “o homem deve agir, com toda a sua personalidade viva e segura, e entretanto privada da aura. Porque sua aura depende do seu aqui e agora. Ela não sofre nenhuma reprodução”. Compara depois o cinema ao esporte e diz que nos dois casos os espectadores são semiconhecedores e chega à conclusão, aliás verdadeira, de que o desenrolar de um filme “fornece um espetáculo que não se teria jamais podido imaginar no passado”. Enfim, coloca o cinema como uma super-arte, em vez de vê-la como uma reunião de artes, cada uma com a sua característica, mas concorrendo todas para um sentido coletivo que tem no movimento o seu ponto culminante.
• Quem é o escritor brasileiro?
É como qualquer escritor em qualquer país do mundo. É muito raro que ele seja somente escritor. É sempre uma mistura de médico e poeta, advogado e romancista, professor e crítico. Enfim, um sujeito que estuda pouco a sua arte, pois tem de estudar a sua profissão para sobreviver. Isto é o comum. Mas é também um sujeito, no Brasil e no exterior, que tem de lutar para aprender a escrever, para escrever, para publicar, para distribuir o seu livro, para obter reconhecimento e para receber o pouco que lhe toca de direito autoral. Mas ele possui ainda a “aura”, a sua arte de poesia ou prosa não a perdeu não. E é ela que lhe dá uma espécie de salário indireto, de estima e de admiração que acaba lhe rendendo alguns trocados.
• O livro acaba? O desmatamento também?
Em A Escrituração da Escrita trato do mito da morte da poesia, do romance, do livro. É um mito antigo. Quando Jesus nasceu se ouviu numa das margens do Mediterrâneo a voz que dizia que o Grande Pã morreu, como se toda a cultura antiga fosse desaparecer. Mas o interessante é que algo realmente mudou, mas não morreu. Tudo continua vivo. Logo que passar a moda do computador, da internet, etc. vai-se ver que o livro continuará vivo, ocupando o seu espaço. Se o governo ajudar, o desmatamento vai acabar mesmo. Por que você não passa para o seu site o meu poema “O Matro Grosso Goiano”, de Saciologia Goiana, um poema visual que mostra o desmatamento e o critica. Se não puder encontrá-lo, me diga, por favor.
• Qual epígrafe personifica você e sua obra?
Vou juntar duas numa só, para responder. A primeira, uma epígrafe que tirei de Raymond Queneau, do livro L’Instant Fatal. Aí se diz, num poema, que “ça a toujours kékchose déxtreme / un poème”. A segunda, tirei do livro Lettres en Folie, de A. Duchesne e Th. Leguay. E diz simplesmente isso: “En nous incitant à jouer avec eux les mots nous invite à juer avec le monde”. A primeira é a prática da segunda e ambas nos põem no sentido do ludismo: brincar ou jogar com as palavras, com a linguagem. A primeira abre o livro L’Animal, publicado em Paris, numa edição bilíngüe, em 1990; a segunda abre o Álibis, do ano passado. Elas personificam a minha concepção de poesia, percebida por alguns críticos, como Paulo Rónai e como Péricles Eugênio da Silva Ramos que escreveu o seguinte na Revista de Poesia e Crítica, de 1985: Duas coisas chamam a atenção, liminarmente, neste Plural de Nuvens de Gilberto Mendonça Teles: em primeiro lugar, mostra-se com toda a clareza o virtuose do verso […]. E tudo isso casado com estilo por vezes sério, mas freqüentemente lúdico ou zombeteiro: Tudo o que escrevo / tem algo de travesso — assevera Mendonça Teles. […] A faceta bem humorada do poeta e o modo como a lapida situam-no em posto perfeitamente dele, pessoal, inconfundível, apesar das raízes longínquas que possa ter de escassos mestres. Na verdade, ninguém desenvolveu, como ele, em nossa poesia moderna, essa feição alegre, foliona, mas completamente destituída de ferrão, satírico ou mordaz, de qualquer ofensa ou maldade. O poeta brinca, como escrevia Mário de Andrade transcrevendo Pallazeschi: Lasciatemi divertire! E, brincando ou divertindo-se, realiza-se numa poesia de presença marcante. Plural de Nuvens não é livro que possa passar sem que se assinale seu lugar de realce em nossa poesia: chega a redmi-la de torrenciais mesmices e da obnubilação dos que pensam que cantam, mas na verdade coaxam. Aliás, o humor constitui o tema da dissertação de mestrado de Marília Núbile, A Carnavalização na Poesia (Estudo da poesia de Gilberto Mendonça Teles), defendida na Universidade Federal de Goiás e publicada pela Universo em 1998.