O marginal que virou cult

Após a publicação de 26 livros, o poeta Nicolas Behr começa a ter sua obra reconhecida
Nicolas Behr, Foto: Ricardo B. Labastier
01/11/2004

O brasiliense (de adoção) Nicolas Behr (de registro civil Nikolaus Hubertus Josef Maria Von Behr), que já foi um dia poeta marginal — tão marginal que acabou preso pela Polícia Federal em plena ditadura militar, por escrever poemas — virou cult — que é como estar numa espécie de limbo literário —, agora parece ter sido adotado oficialmente pela inteligência — com tudo de bom e ruim que isso implica.

Depois de ter seus poemas expostos em postes em pontos de ônibus de Brasília — junto com outros poetas do Distrito Federal —, Behr participou no ano passado da antologia Boa Companhia – Poesia, da Companhia das Letras, e este ano foi contemplado como primeira personalidade homenageada de uma coleção luxuosíssima — uma espécie de Cadernos de Literatura Brasileira — intitulada Brasilienses. Patrocinada por um chiquérrimo shopping de Brasília, Eu engoli Brasília tem prefácio de Ana Miranda, entrevista e perfil de Carlos Marcelo (que também é o idealizador e realizador da coleção), ensaio de Graça Ramos, fotos de Ricardo B. Labastier, projeto gráfico de Chico Amaral, orelha de Chico Alvim e uma seleção de poemas, inéditos ou não.

Nicolas Behr nasceu em Cuiabá (MT) em 1958 e radicou-se em Brasília em 1974. Desde agosto de 1977, Behr já lançou 26 livros (entendendo-se aqui livrinhos, livros e livrões), sendo o último agora em novembro, Braxília revisitada. Nesta entrevista, ele fala um pouco de tudo…

• Antes de mais nada, o que aconteceu com o poeta que, na década de 70 era um dos mais badalados da “geração mimeógrafo”, e que passou anos e anos e anos sem publicar nada?
O “badalado” poeta da geração mimeógrafo não estava maduro o suficiente (tinha 22 anos, em 1980, quando parou de publicar) para encarar as editoras, o cenário poético nacional ou coisa que o valha. Como tinha me exposto muito, decidi submergir. Comprei uma chácara, fui trabalhar em agências de publicidade como redator, virei ecologista de carteirinha, estudioso da flora e da fauna do cerrado. E nas horas vagas administrando o enorme latifúndio literário que adquiri em três anos de radical militância poética.

• Existe uma literatura brasiliense? É possível fazer literatura em Brasília? Mais: é possível ser rebelde, ou marginal, vivendo em Brasília?
Uma das poucas coisas que me irritam é essa pergunta se existe uma literatura brasiliense. Existe uma literatura paulista, alagoana, acreana, ou riograndense? Existe uma literatura universal. Não vamos fragmentar o que já está excessivamente fragmentado. Não podemos limitar a literatura em espaços geográficos. Literatura não é uma questão de toponímia. Falar de blocos, superquadras, eixos e asas não é caracterizar uma literatura como brasiliense. Falar de solidão, sufoco, busca, melancolia, tristeza talvez seja. Claro que é fácil ser rebelde em Brasília. É o meu caso, típico. Proponho a mudança da Capital para outro lugar. Criei Braxília, a cidade não-poder, não-capital. Braxília, a utopia dentro da utopia. Braxília é minha pasárgada, meu shangri-lá.

• Você tem acompanhado a produção poética atual? Se não, por quê? Se sim, como você a avalia?
Acompanho pouco a produção poética atual. Claro, dou uma olhada ali, outra mais ali. Não sou de ficar falando mal de coleguinhas, mas existe um padrão do que é poesia, isso existe. Aí eu vejo: puxa, nunca vou conseguir escrever desse jeito. Puxa, então isso é que é poesia, hein? Então essa é que a poesia que consegue convencer uma editora a publicá-la? Então existe esse padrão estético, uma mistura de hermetismo com complexidade. Minha poesia não é sofisticada eu sei. Tenho a sensibilidade de um lenhador. Mas vou abrindo meus caminhos na base da porrada, eu acho.

• Você ainda se considera um poeta marginal? E o que é ser um poeta marginal?
Se eu me considero um poeta marginal? Claro, moro nas margens do lago em Brasília. Mas tem acontecido uma coisa interessante: aqui em Brasília minha obra começa a ser estudada pela academia, tenho saído muito na mídia, tem um livro aí sobre meu trabalho. O interessante é que muitos poetas estão me “marginalizando” como se eu não pertencesse mais à turma, à galera, entende? E logo eu, que detesto entronização, detesto o oficialesco, eu que estou sempre em dúvida, que me considero um novato, eu que tento ajudar todo mundo, ser o cara mais acessível da praça… Pra mim tem sido difícil conviver com isso, como se eles dissessem: ah, agora o Nicolas é um poeta consagrado, não vamos chamar ele não, o Nicolas agora tá em outra. Isso me machuca, confesso. Mas vamos em frente…

• Que conselhos você daria para um poeta ter algum tipo de visibilidade hoje?
Conselho aos jovens poetas: publiquem. Publiquem muito, o máximo que puderem. A qualidade vem da quantidade. Ao publicar seus poemas você se livra deles. E eles adquirem vida própria, seguem seu próprio caminho e você o seu. Não esperem por editora nem peçam conselhos. Pega mal mostrar os poemas para outros poetas, os chamados “consagrados” — putz estou quase entrando nesse clube, tô fudido — e dizer: vê aí, o que você mais gosta que eu estou fazendo uma seleção pra um livro. Se o poeta começa querendo agradar, já começa mal. Publicar em fotocópia hoje é muito fácil. Colocar na internet mais fácil ainda. Mas o meio não é a mensagem: vale o que está escrito. Não importa a embalagem, vale o conteúdo e não o continente. E subir num carro alegórico não vai melhorar nem piorar sua poesia.

• Como você analisa o espaço dado à literatura pelos suplementos dos
jornalões?
Todos os suplementos literários dos jornalões poderiam ter um nome só: PANELINHA. O Rascunho inclusive, viu? Leio sempre o Idéias do JB, pra ficar um pouco por dentro. Não leio Mais! Nem o Prosa & Verso do Globo porque não compro jornal no domingo, só aos sábados.

• Você se sente tentado a (re)publicar seus livros por uma editora comercial?
Meu grande sonho é ser editado por uma editora comercial. Escrever uma poesia que não tem valor comercial como a minha é uma merda! Claro que queria meus livros distribuídos de Roraima ao Rio Grande do Sul. E eu sei que minha poesia não é grandes coisas. Se fosse grandes coisas já teria uns cinco livros publicados por editoras por aí. Mas esse dia há de chegar. Naturalmente. O meu problema com as editoras não é elas me dizerem “não”, mas dizerem “sim”, entendeu? E agora, a editora disse sim, o que fazer? Tenho uma relação muito visceral, orgânica com meus livros, todos escritos, paginados, diagramados, (não impressos) e vendidos por mim. Terei ciúmes da minha obra? Quero controlar quem vai lê-la? Cartas para a redação.

• Como você se sente ter sido por longo tempo guru de toda uma geração de poetas?
Eu não acho que fui guru de ninguém. Tudo bem, eu aparecia muito nos circuitos alternativos, tinha um bom método de distribuição dos meus livros pelos correios. Tinha toda aquela “aura” de poeta marginal, contestador (acho que ainda tenho, mas muito mais amadurecido, um revolucionário inofensivo que hoje só quer criar bem de seus três filhos…) O melhor de tudo é que eu acho que muita gente começou a publicar vendo aqueles livrinhos mimeografados, malfeitos, baratinhos (ready made) e isso me deixa feliz.

• Quem, da sua geração, consolidou o nome como poeta? Quem você acha bom? Quem você acha um blefe?
Quem da minha geração consolidou seu nome como poeta? Chacal, Cacaso, Francisco Alvim, Leminski, Arnaldo Antunes, Ana Cristina César… Quem eu acho bom? Os seis aí de cima. Quem é um blefe? Que tal eu?

• E a crítica? A crítica adianta alguma coisa?
A crítica… A crítica quer fazer uma ponte entre a obra e o público. Eu destruo essa ponte. Essa ponte eu mesmo faço, com licença. Fui a um debate e o crítico, professor universitário, é claro, logo falou: existe no Brasil a poesia rara e a poesia rala. Adivinha em qual eu me auto-encaixei? Não outorgo aos críticos o poder de dizer o que é boa poesia e o que é má poesia. Não tenho preconceitos, mas tenho minhas preferências. Os cri-críticos que se danem. E anota aí: poeta cria, crítico comenta. Não dá pra colocar poeta e crítico numa mesma mesa, não dá mesmo! O crítico não corre riscos, pega o material já pronto. Muitos críticos têm uma relação parasitária com a poesia, com a criação. That is disgusting, my friend!

• Sua relação com a música é só amigável ou há um interesse mais sério?
Minha grande frustração é não ter me tornado letrista de música. Dá uma grana violenta! Sei lá, não fui atrás, não batalhei. Sofri influências sim de letristas no início da minha “carreira” literária (argh, eu não queria dizer isso…) principalmente do pessoal do Clube da Esquina e de outros astros da MPB. Foi uma influência boa, com certeza.

• O que você faz para sobreviver?
Pra sobreviver, eu compro e vendo plantas, sou um viveirista de mudas. Tenho um garden center em Brasília, um dos mais completos da Capital, devo dizer. Sou o poeta-patrão. Talvez o único poeta capitalista que vocês conheçam. O único poeta que só lê um livro: o livro-caixa. Que deve estar sempre cheio, para poder pagar os impostos, os fornecedores, os funcionários e sobrar algum pra eu poder escrever poesia nas horas vagas! Como meus fornecedores são quase sempre caminhoneiros que me trazem plantas, adubos, vasos, gente da estrada, quando sabem que eu sou poeta pensam logo que sou viado! Acham estranho. “Me explica direito esse negócio de poesia, hein?” Estou sempre em contato com muita gente e isso ajuda muito a minha poesia, já que sou essencialmente um poeta de ouvido, refém do acontecido, celebrante do pitoresco.

• Como você se define ideologicamente hoje? E como você se definia na década de 70?
Como eu me defino ideologicamente? Nos anos 70, a partir de 76, eu era de esquerda mesmo, socialista, participava do movimento estudantil, fui preso pelo regime militar (Dops) por “posse de material pornográfico” (sim, meus livrinhos!) e acreditava (como ainda acredito) que deva haver democracia, partidos políticos, liberdade de expressão, todas essas coisas que fazem a maravilha da chamada civilização ocidental. E hoje? Votei no Lula, é claro! Mas me decepcionei. Lula é continuidade e não ruptura. Lula é refém do discurso. É visível o ranço autoritário no PT . Poetas no governo Lula? Muito bons, desde que não critiquem o Estado, o poder, a burocracia, etc. Desde que fiquem bem quietinhos nos seus cantos falando de passarinhos, flores, e da beleza do pôr-do-sol. Para o poder, qualquer que seja, poetas não são bem vindos, acredito. Hoje? Sou cada vez mais cético, cada vez mais desconfiado. Cada vez mais crítico. Cada vez mais indócil.

• O que significou para você ter feito sucesso com poesia, num país
analfabeto, numa idade bastante precoce?
Não acredito que tenha feito tanto sucesso assim. Talvez no meio da rapaziada, isso sim. Em lugar nenhum do mundo poesia faz sucesso. Ah, tivesse eu nascido para ser romancista!

Fale sobre cada um de seus livros. Quantos exemplares foram feitos, quantas edições, a repercussão de cada um, e sua relação com eles.

Iogurte com farinha: primeiro livrinho, de 1977, tem uns cinco poemas (em 33) que salvam o livro. É o primeiro, tem essa importância.

Grande circular: nome de um ônibus que até hoje circula em volta do Plano Piloto, fala só de Brasília e explora o fato de ser nome de linha de ônibus pra custar 9,80 cruzeiros (facilite o troco, estava escrito na capa). E tinha passageiros convidados: outros poetas que também falavam de Brasília. Isso foi no início de 1978.

Caroço de goiaba: antes de sair de férias, fui numa fazenda e quebrei um dente comendo goiaba e tive que pegar o dinheiro da viagem de férias para consertar o dente. E fiquei em Brasília e escrevi esse livro. Aí começa a minha fase frutífera.

Chá com porrada: sem dúvida, o livro mais punk. Depois disso, em 15 de agosto, Dops lá em casa… Fiquei impedido de sair de Brasília e de publicar os livrinhos, aí eu comecei uma série “O que me der na telha”, quando eu escrevia poemas em telhas frescas, queimava-as no forno de uma olaria e depois vendia por aí…

Bagaço: maio de 1979, o livro depois da quarentena… gosto do livro.

Aí começou uma fase pancada, tipo um livrinho por mês, até o final de 1980, quando eu já estava de saco cheio de vender livrinhos por aí, e o pessoal de saco cheio de comprar meus livrinhos, tanto que eu fiz um pacotinho com os livros dentro: Haja saco. E depois outra embalagem: De saco cheio. Os nomes dos livrinhos são: Com a boca na botija, Parto do dia, Elevador de serviço, Põe sia nisso!!!, EntreQuadras, Brasiléia desvairada, Saída de emergência, Kruh (é tão ruim que recolho quando encontro… ainda bem que só imprimi uns 300 exemplares…), 303F415 – poesia pau-brasília, L2 noves fora W3. Ufa!

Aí passei uns 13 anos sem publicar nada… e voltei em 1993 com Porque construí Braxília, em xerox. Depois vieram Beijo de hiena (1993), Pelas lanchonetes dos casais felizes (1994) e Segredo secreto (1996), todos xerocados. Depois, em 2001, o livro Viver deveria bastar e logo depois Umbigo, talvez o mais longo poema em língua portuguesa, repetindo “minha poesia” em todas as linhas…) Depois, a antologia Poesília – poesia pau-brasília — com uma antologia de poemas meus que falam de Brasília, primeiro livro em off-set (a minha poesia começava a merecer tratamento gráfico melhor… acho que a poesia já tinha sofrido demais na minha mão). Aí veio, em 2003, Menino diamantino, sobre minha infância num internato de padres jesuítas, onde vivi e estudei dos sete aos dez anos. O meu livro mais inofensivo. Depois, Peregrino do estranho, um livro pancada, acho. É isso…

• Quais foram as suas grandes influências?
As grandes influências foram do outdoor, do gibi, do videoclipe, das letras de música de rock e de MPB. Outras influências: Oswald de Andrade, Drummond, Chacal, Chico Alvim e Leminski. É por aí…

Nicolas Behr Eu engoli Brasília
Por Carlos Marcelo
Coleção Marcelo
120 págs.
Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho