O homem e o seu tempo

Entrevista com Fernando Molica
Fernando Molica, autor de “O ponto da partida”
01/05/2008

O jornalismo é a profissão de Fernando Molica há 27 anos. A longa experiência o credenciou a criar um consistente personagem em O ponto da partida — o jornalista Ricardo Menezes, um homem que chega à encruzilhada dos 50 anos a carregar um amontoado de dúvidas, tristezas e tentativas de recomeço. Nesta entrevista por e-mail, Molica fala, entre outros assuntos, da construção de seu terceiro romance, da imprensa brasileira, do realismo em sua obra e do mercado editorial.

• Diante das inúmeras dificuldades em que se encontra, o protagonista Ricardo Menezes implora por uma história “que me tire daqui, que imponha o riso, a banalidade e o humor diante de tudo isso que ocupa minha visão, meus sentidos”. Ainda que Menezes se refira ao jornalismo, esta frase poderia se estender à literatura? Esta seria uma das, digamos, funções da ficção?
É possível, isso não pode ser descartado. Mas acho meio complicado falar em “funções da ficção”, isso parece pressupor a existência de deveres ou compromissos de um livro. Talvez seja mais correto falar nas possibilidades de diferentes usos ou apropriações de um texto, de uma obra. Algo que é incontrolável e que vai depender do leitor e do momento pelo qual ele estiver passando.

• Mesmo com um crime bárbaro no centro de O ponto da partida, o romance não pode ser caracterizado como um thriller, como é o caso de Notícias do Mirandão e Bandeira negra, amor. Agora, o senhor explora as angústias, dúvidas, problemas de relacionamento que cercam o protagonista. Por que esta opção ficcional?
Bem, nem acho que os dois livros anteriores sejam thrillers clássicos — ainda que a editora alemã de Notícias do Mirandão o tenha classificado de policial. Bandeira negra, amor até pode ter um ritmo que o aproxime deste tipo de narrativa, mas acho que escapa um pouco da classificação de thriller. Fiz questão de, no Bandeira, apresentar a solução do crime que permeia a narrativa alguns capítulos antes do fim do livro. O, digamos, mistério passa a ser o destino do casal de protagonistas, um homem e uma mulher que têm uma série de dúvidas e angústias sobre sua relação. Acho — e nem sempre autor acha o certo, admito — que o mais importante do livro é a relação entre os dois. Mas concordo que os romances anteriores, principalmente o Mirandão, têm histórias mais evidentes, uma trama mais clássica. Em O ponto da partida, procurei radicalizar o foco no personagem, tudo giraria em torno do protagonista, ele ficaria em cena o tempo inteiro. O que busco é criar expectativas em torno do que poderia ocorrer na vida daquele homem angustiado, de humor meio corrosivo, que revisa boa parte de sua trajetória pessoal, política e profissional quando é obrigado a passar uma noite ao lado do corpo de uma mulher assassinada. É como se, olhando os três livros em perspectiva, eu fosse abandonando planos mais gerais e me concentrando nos closes. Mas não creio que isso seja necessariamente bom ou ruim, uma evolução ou não no jeito de contar uma história. Foram apenas opções que tomei para contar cada uma delas. De certa forma, o livro escolhe o jeito de ser contado.

• Pode-se definir a sua literatura como realista. O senhor aceita tal definição? Acredita que a ficção pode fazer um retrato aproximado da realidade? Ou seria preferível que a literatura a distorcesse, a ampliasse?
Cada um tem a liberdade de definir a minha literatura como bem entender, o leitor sempre tem razão. Mas acho a classificação de “realista” um tanto quanto curiosa, até porque mesmo na chamada vida real, o conceito de realidade é bem relativo. Cada um de nós “lê” a tal vida de um jeito, conforme nossos desejos, formações, preconceitos, expectativas. As cartas de leitores de um jornal mostram como um mesmo fato “real” desperta reações diversas. Um mesmo fato também gera diferentes versões e abordagens. Se o real-real não existe como algo concreto e indiscutível, é até engraçado tentar detectá-lo na ficção, local privilegiado do irreal, da fantasia — mesmo que esta fantasia esteja mascarada de “realidade”. Tenho, pelo menos até agora, optado por encenar minha ficção em cenários que se confundem com aquele em que vivo. Meus três romances se passam no Rio, na atualidade. Poderia inventar uma cidade; no caso de O ponto da partida poderia ter criado uma praia, assim como em Notícias do Mirandão inventei um morro (a favela do Mirandão só existe no livro). Para um leitor de Curitiba, de Boa Vista, de Santarém, a existência “real” da praia do Arpoador — onde se passa parte da ação do novo livro — não deve ser tão importante assim. Eu poderia ter inventado uma praia inteira, tê-la batizado com outro nome, muitos leitores nunca saberiam disso. Achei que seria mais simples aproveitar um cenário já existente. Nesse caso, procuro fazer uma narrativa que respeite características deste cenário, pelo menos, do cenário que vejo (cada um vê o Arpoador de seu jeito). Ao fazer isso, acabo trazendo para o livro, para aquela trama inventada, determinadas características daquele cenário. Não em busca necessariamente de um “realismo”, mas de uma verossimilhança que permita ao leitor entrar na história. Talvez o fato de eu ser jornalista contribua para que alguns apontem o tal do realismo na minha ficção. Mas, aviso: é tudo mentira. Os objetivos de meus romances são bem distintos dos de uma reportagem. No caso da situação deste livro, por exemplo: como repórter, eu teria que me concentrar na solução do crime da mulher assassinada e esquartejada. Como romancista, foquei no personagem que foi cobrir o caso, ele é meu objeto de interesse: sua subjetividade, seus desejos, suas angústias. Ele, o Ricardo Menezes, não é uma notícia, é um personagem de romance. É claro que posso me inspirar em fatos passados em uma determinada realidade, mas, no fundo, é tudo mentira. Uma mentira que tento passar como “real” — que desperte interesse, reflexão, e mesmo emoção. A realidade na literatura se faz a partir da primeira página (ou da capa, sei lá) e termina quando fechamos o livro — ainda que esta “realidade” possa repercutir na cabeça do leitor e que tenha um determinado grau de diálogo com um tempo e um espaço. Não há por que fugir da possibilidade de uma conversa com o tempo, com a cidade e com o país em que vivo. Um diálogo mediado por uma ficção. Temer esta possibilidade também é algo meio absurdo: se somos obrigados a fugir tanto assim do “real”, poderíamos até considerar, no limite, que escrever em português seria uma concessão à realidade. Mas isso é uma opção minha, dos livros que escrevi até agora. Não representa nenhum juízo de valor sobre formas de se fazer literatura. Importante também frisar que a tal da realidade, do real-real, é muito mais rica do que qualquer ficção. Em 2003 lancei um livro-reportagem chamado O homem que morreu três vezes, sobre um ex-banido, o advogado gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera. A vida dele é inacreditável, não sei se sua história se sustentaria como ficção, iria parecer algo inverossímil demais. Você quer algo mais absurdo e mesmo inverossímil que o incidente do Ronaldo com os travestis? Parece ficção barata, de má qualidade. No entanto, aconteceu. E a história de um pai acusado de matar e jogar a filha pela janela? Quanto às premissas para uma boa literatura: marco NRA, Nenhuma das Repostas Anteriores. Não consigo ver um mérito essencial nesta ou naquela opção estilística ou temática. A qualidade de um livro vai depender do seu resultado, de como o autor vai conseguir realizar o que se propôs. Um livro pode ser bom ou ruim, ou mais ou menos. O julgamento não deve partir do estilo ou da temática, mas do resultado que está ali, entre as capas. Como dizem os bicheiros, vale o escrito.

• Ricardo Menezes e seu pai (ambos jornalistas) tinham uma fé exacerbada no jornalismo (Se não saiu no jornal, não aconteceu). O senhor compartilha desta opinião? Em que medida o jornalismo brasileiro consegue ser um retrato das imensas diferenças do Brasil?
Bem, a fé do pai do Ricardo no jornalismo era bem maior que a dele. A frase citada na pergunta é relacionada ao pai, o MM. No livro, Ricardo surge, em meio a várias crises, inclusive com a profissão. Logo no início de O ponto da partida, ele demonstra sua decepção com o tratamento que um jornal da empresa em que trabalha deu a uma reportagem que ele fizera. Ricardo, de uma certa forma, encarna quase que um contraponto à fé no jornalismo, esta sim exacerbada, do seu pai. Quanto à outra pergunta: acho que o jornalismo brasileiro retrata tão bem ou tão mal as diferenças brasileiras assim como o jornalismo francês retrata as diferenças francesas, e assim por diante. Isso, claro, com as devidas gradações. Nenhum jornalismo consegue ser um intérprete assim tão completo da sociedade.

• Em O ponto da partida, há uma alternância de vozes narrativas. Como o senhor chegou ao equilíbrio narrativo? De que maneira se deu a construção do romance?
Em termos de estrutura, o romance tem apenas uma premissa: desde o início, decidi que em toda a primeira parte do livro (que ocupa, acho, 80% das páginas) haveria capítulos que marcariam três tempos da história. Um tempo presente — Ricardo Menezes na praia, ao lado do cadáver — e dois pretéritos (um recente, onde haveria a narração de fatos daquele mesmo dia, e um mais antigo, em que seriam relembradas situações mais antigas ocorridas na vida do personagem). Essa foi a única definição estrutural. O resto foi sendo decidido na medida em que escrevia. De um modo geral, gosto de alternar a narração: criar um capítulo com predominância de diálogos, um outro na primeira pessoa, e assim por diante. Essa alternância pode ocorrer dentro do próprio capítulo. Acho que isso dá um certo ritmo ao texto, quebra uma eventual monotonia, faz o leitor ficar mais atento. Mas, insisto, decido isso na hora.

A sua longa carreira como jornalista em jornais e na TV o credencia a compor um consistente personagem-jornalista. Mas empreitadas desse tipo sempre acarretam riscos de excessos ou caricaturização. Como a sua experiência profissional ajudou ou atrapalhou na confecção de O ponto da partida?
Ajudou, tenho certeza. O personagem principal não seria, necessariamente, um jornalista. Eu queria um cinqüentão que passasse por um momento especial, de questionamento, que uma sucessão de episódios concentrados em um mesmo dia o empurrasse para um impasse. Poderia ser um médico da emergência de um grande hospital do Rio, perdido em meio a casos de baleados, poderia ser um engenheiro transformado em corruptor oficial de sua empreiteira, um advogado especializado em absolver clientes milionários. Ou então um jornalista. Eu normalmente implico com a caracterização de jornalista na ficção, com o estereótipo que é produzido. Imagino que ao retratar em detalhes a vida de um médico ou de um engenheiro, poderia cometer os mesmos, digamos, erros. No Bandeira negra, amor, criei um advogado e uma oficial da PM — mas não entrei em muitos detalhes de suas vidas profissionais. Desta vez eu precisaria mexer muito com o cara, com a vida dele, com suas memórias. Não me senti seguro para criar um médico — para isso, teria de pesquisar muito, conviver com médicos, entrevistá-los. Para ser “real”? Não: apenas para não cair na caricatura, uma caricatura que prejudicasse a história e o personagem. Diante disso, achei melhor criar um jornalista, achei que, assim, o processo de feitura do livro poderia fluir com mais tranqüilidade, eu me sentiria mais seguro, mais tranqüilo para desenvolver a história.

O protagonista critica de maneira mordaz a composição das novas redações da imprensa brasileira, povoadas em grande parte por jovens recém-formados. O senhor compartilha desta opinião? O excesso de jovens nas redações fragiliza a imprensa brasileira?
É possível, vai depender de cada redação, de cada jornal. Não tenho como saber o que se passa em cada redação. Acredito que, como em quase todas as profissões, é bom se ter profissionais mais experientes e outros mais jovens. O excesso de pessoas mais velhas também pode atrapalhar. O jornalismo se propõe a traduzir uma certa diversidade social, seria bom que as redações fizessem isso, o que nem sempre é possível dentro das realidades e orçamentos de cada veículo.

Que conselhos o senhor daria aos jornalistas que estão buscando um espaço no mercado de trabalho?
Sempre rateio na hora de responder a essa pergunta, temo parecer meio arrogante ou dono de uma suposta fórmula. Até porque a resposta vai variar de acordo com os objetivos de cada um. Mas a pergunta é meio inevitável e mesmo compreensível, volta e meia ela surge quando vou a faculdades de jornalismo: compreendo as angústias de quem tenta entrar em um mercado restrito e cheio de oferta de mão-de-obra. Normalmente, para não frustrar os estudantes, falo o que é mais ou menos óbvio: é preciso gostar de informação, gostar do ser humano, é fundamental ler jornais, estar atento ao que se passa na sua cidade, no seu país, no mundo. Tentar saber um pouco de tudo e, se possível, um pouco mais de alguma coisa específica. Acho também que, em um país como o nosso, é importante ter um grau de inconformismo, de desejo de mudança.

• O mercado editorial brasileiro passa, há alguns anos, por uma imensa transformação, com a chegada de grandes grupos editorais estrangeiros e de negociações entre editoras. No entanto, na imprensa assistimos a um notório processo de enfraquecimento dos cadernos especializados em literatura. Como o senhor explica esta situação paradoxal?
É meio paradoxal mesmo. Por um lado, temos um mercado aquecido, atraente para as editoras internacionais. Os índices de leitura no país são baixos mas, se levarmos em conta o tamanho da população, é possível — isto é apenas um palpite — que tenhamos um mercado leitor/comprador do tamanho de pequenos e médios países europeus. Não é pouca coisa. E, como você bem nota, temos esta fragilidade no processo de divulgação/discussão dos livros, a diminuição dos cadernos literários. Talvez — talvez — porque os livros que mais aqueçam este mercado não dependam tanto do papel da crítica, corram por uma outra faixa. Assim como os filmes de grandes bilheterias não dependem tanto da opinião dos críticos. Isso sem falarmos que o grande comprador de livros do país é o governo, que representa um mercado que também não depende muito de cadernos literários e resenhas.

• O senhor acaba de lançar um site. Muito da produção literária da nova geração está on-line. O senhor acredita no poder da internet para disseminar a literatura? A internet vai acabar se transformado no espaço ideal para a crítica literária?
O Sérgio Rodrigues — que você cita na próxima pergunta — acha isso, que a internet pode até salvar a literatura, não como espaço de publicação, mas de divulgação, discussão e crítica. Tendo a concordar. A internet ampliou muito essas possibilidades, aproximou leitores e autores, abriu espaços. Mas o surgimento da internet não precisa gerar a morte de fóruns mais tradicionais, como os cadernos literários de jornais voltados para o público geral. Até para não criarmos guetos.

• O escritor Sérgio Rodrigues afirma que o Rio de Janeiro é “uma cidade belíssima indo para as cucuias. Mas, coisa curiosa, a literatura que nela se produz não parece muito interessada em refletir isso”. Ele cita o senhor como uma exceção? O senhor tem a preocupação de manter o Rio de Janeiro como protagonista da sua literatura? Por que a cidade “está indo para as cucuias”?
Não tenho como premissa a preocupação de escrever sobre o Rio. Os temas e personagens de alguma forma relacionados à cidade têm se imposto, certamente porque são assuntos que chamam a minha atenção, me instigam. Nasci e sempre morei no Rio, essa presença da cidade na minha ficção acaba sendo meio natural. Acho que qualquer cidade ou bairro ou esquina pode render bem na literatura, depende, claro, do autor. Mas a cidade que melhor conheço é o Rio, que tem características muito interessantes, aquela história de pobreza e riqueza, de contradições abertas e evidentes, de beleza e barbárie, de ex-capital que perde parte de sua pose. A cidade sempre deu samba, em todos os sentidos. Se está indo para as cucuias? Talvez, mas talvez ir para as cucuias seja uma forma de reinvenção, de reconstrução da cidade a partir de outros parâmetros.

• A música perpassa toda a trama de O ponto da partida, com destaque para Nelson Cavaquinho. Qual a importância da música na sua formação intelectual?
Não sou músico, não toco nenhum instrumento. Mas gosto muito de música, de vários tipos. Inclusive de samba, vou muito a rodas de samba aqui no Rio. Todos os meus romances têm uma espécie de trilha sonora, citações de músicas que, de alguma forma, ajudam a marcar um ou mais personagens. No caso deste livro, achei que as músicas e a personalidade de Nelson Cavaquinho se encaixariam bem como complemento para o personagem principal. Algo lírico, melancólico e profundamente trágico.

Fernando Molica

• Na página 75 de O ponto da partida, lê-se: “ignorar a barbárie era uma forma de fingir que ela não existia”. O senhor acha possível ignorar a barbárie que nos engole a todos? Ou a barbárie não é tanta e a culpa é da imprensa que a aumenta, como acontece neste episódio da menina jogada de um apartamento em São Paulo? O senhor considera adequado o tratamento que, principalmente, a TV tem dado ao caso Isabella?
Cada um reage de um jeito à barbárie. Alguns a enfrentam, a discutem. Outros preferem aumentar as grades de seus prédios ou condomínios, comprar carros blindados. É claro que a imprensa volta e meia exagera, carrega nas tintas. O caso Isabella, que é terrível, que mexe com valores muito básicos em todos nós, acabou ganhando uma proporção meio absurda, mas não apenas por responsabilidade da imprensa: os próprios encarregados da apuração do crime estimulam este jogo. É inconcebível que um crime ocorrido tarde da noite seja reconstituído numa manhã de domingo. Isso é um erro básico de investigação. Só que uma reconstituição num domingo pela manhã garante mais público, mais projeção. Mas, repito, o caso é terrível e ajudou a revelar que muitas e muitas crianças são mortas no país. Às vezes exagera-se, são publicadas com destaque notícias banais, como de furtos a turista, como se isso não acontecesse em Paris ou Miami. Mas o Rio tem uma situação muito particular, a de grupos armados — e muito bem armados — dominarem determinadas áreas densamente povoadas. Não sei se isso existe em outro lugar do mundo. É impressionante como isso, que é um escândalo, passou a ser aceitável, foi incorporado ao cotidiano. A imprensa carioca tem uma tradição de não ocultar fatos, não existe por aqui uma lógica de evitar publicar notícias ruins que, de alguma forma, possam prejudicar a imagem da cidade, atrapalhar o turismo. Isso não é muito comum em outras capitais. Talvez isso aumente de forma desproporcional o tamanho do problema carioca quando comparado aos problemas de outras cidades. Mas não podemos negar que a situação é grave.

O protagonista Ricardo Menezes tem um acesso de fúria contra um editor de Cultura porque este não conhecia Guilherme de Brito. O trecho é uma crítica à ignorância da imprensa em determinados setores e também ao apego que, principalmente, os cadernos culturais têm pelo estrangeiro? O senhor teme que O ponto da partida seja ignorado pela imprensa cultural?
O trecho é uma crítica do Ricardo ao editor de Cultura do jornal onde ele trabalha ou trabalhava, não sei se ele continua no emprego… O episódio é baseado em um fato ocorrido com um colega. Achei que seria interessante trazê-lo para a ficção, para a vida do Ricardo, serviria de elemento para uma outra crise de indignação do protagonista. O acesso de fúria contra o editor não é um protesto meu, autor. É um protesto do personagem — muitos leitores podem achar que a indignação do Ricardo é injustificável, que ele fez muito escândalo sem motivo. Muitos leitores podem não conhecer o Guilherme de Brito e nem por isso eu, autor, vou ficar indignado com eles. O episódio foi trazido para o romance para dar mais força à trama, caracterizar melhor o personagem, mostrar suas reações intempestivas. O livro, repito, é uma ficção, não um artigo sobre o que eu acho ou deixo de achar sobre o mundo, sobre as editorias de cultura. Por acaso eu gosto do Nelson Cavaquinho e do Guilherme de Brito, mas poderia não gostar. O mesmo episódio poderia ter outra versão, com a mesma função dramática, só que de maneira inversa: um jovem repórter poderia ficar indignado porque seu velho editor não sabe quem é Alex Kapranos (vocalista do Franz Ferdinand). Minhas opiniões não coincidem necessariamente com as do Ricardo Menezes. Ele não é meu alter ego. Sobre um eventual silêncio em relação ao livro. Ele foi lançado em abril, tem sido bem recebido e comentado. Esta entrevista é uma prova de que o livro não tem sido ignorado pela imprensa cultural.

• Como a literatura começou a ocupar a sua vida? Como se deu a sua construção como leitor e quando o senhor decidiu ser escritor?
O começo foi quando deve ser: na infância. Sou leitor desde que me entendo por gente, desde que fui alfabetizado. Li muito Monteiro Lobato e uma coleção de contos dos irmãos Grimm. Daí pra frente, não parei. A vontade de ser escritor surgiu lá pelo meio da adolescência, mas não prosperou. Só voltei a pensar no assunto bem mais tarde, quase aos 40 anos, quando comecei a escrever o que se transformaria no Notícias do Mirandão. Comecei até para ver se conseguia terminar, se aquelas páginas e páginas ganhariam corpo, virariam um romance. Por que levei tanto tempo para me iniciar como escritor? Não sei, mas hoje acho que foi bom ter começado mais tarde que a maioria dos escritores. Não gosto de fazer relações de causa e efeito entre o exercício do jornalismo e o da literatura. Acho que o jornalismo é uma profissão como qualquer outra, não necessariamente ajuda ou atrapalha quem quer ser escritor. Mas é possível que tantos e tantos anos de jornalismo — 27! — tenham contribuído para mostrar os limites deste tipo de atividade e gerado uma certa insatisfação, a necessidade de um outro tipo de abordagem da vida, das relações. O jornalismo vive dos fatos, da objetividade, da busca de provas. Tudo isso é fundamental, mas pode não ser suficiente. O ser humano é maior, mais complexo, tem áreas muito mais sombrias, de difícil acesso. Aí pode entrar a literatura, onde o não-dito pode ser mais importante do que é dito, freqüentemente é. É um campo em que podemos trabalhar detalhes, intenções, suposições. Volta e meia cito um samba que faz parte da trilha sonora do Notícias do Mirandão, chama-se Notícia de jornal, foi gravado há muito tempo pelo Chico Buarque. Um dos versos diz que “a dor da gente não sai no jornal”. Isso é bem interessante, bem provocativo.

• Quais autores povoam o seu imaginário como leitor? Quais nunca o abandonam?
São muitos, mas vale citar alguns, todos já consagrados. Uma lista grande e muito variada. O primeiro de todos é Machado de Assis, pela elegância, pela ironia, pela modernidade, pela extrema capacidade de contar bem uma história, pelo jeito de enganar e envolver o leitor. Entre outros brasileiros, Graciliano Ramos, Lygia Fagundes Telles, Antônio Torres, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Raduan Nassar, Rubem Fonseca. Entre os estrangeiros, Eça de Queiróz, Dostoiévski, García Márquez (Crônica de uma morte anunciada é espetacular), Vargas Llosa, Saramago, o fantástico Ian McEwan. A relação é ainda maior, incluiria também vários outros clássicos e outros contemporâneos.

• Que tipo de leitor a sua ficção busca? O senhor imagina um leitor ideal para seus livros?
Acho que seria muita pretensão tentar escolher um leitor. Todos são bem-vindos, todos, de alguma forma, colaboram, acrescentam informações e leituras — como disse antes, a internet é ótima para isso. Não dá pra imaginar o leitor, ele é que se impõe: algumas resenhas publicadas na Alemanha sobre o Notícias no Mirandão são muito interessantes, estabelecem um diálogo bem original com o livro. Lá sou completamente desconhecido, como romancista e como jornalista, não há referências anteriores sobre mim. O livro foi obrigado a se virar sozinho — o que acabou sendo muito bom.

• Caso tivesse de optar entre o jornalismo e a ficção, qual o senhor escolheria? Por quê?
Essa dúvida só se faria presente caso a venda dos meus livros fosse suficiente para gerar uma renda capaz de me manter. Isso, hoje, não é algo que eu possa vislumbrar. De qualquer forma, não vejo contradição no exercício das duas profissões. Dá para separar bem, da mesma forma que funcionários públicos, professores universitários, fazendeiros, médicos, publicitários conseguem e conseguiram escrever e exercer suas profissões. A dedicação exclusiva à literatura no Brasil é exceção.

Formar um bom leitor requer paciência, oportunidade e uma boa dose de sorte. Quais caminhos o senhor indicaria para a formação de um leitor num país tão desigual como o Brasil?
Acho que a receita mais óbvia é bem conhecida, testada e reproduzida em outros países. A formação do leitor tem a ver com uma educação pública de qualidade, com a disseminação de bibliotecas, com o maior preparo dos professores. O trabalho é lento, mas costuma dar certo. O problema é que vivemos em um país em que 53,8% das crianças não completam o ensino fundamental, de acordo com uma pesquisa bem recente. É muito difícil falar em formação de leitor diante de uma realidade como essa.

* Colaborou Marcio Renato dos Santos.

LEIA RESENHA DE O PONTO DE PARTIDA

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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