O grande contador de histórias

Fausto Wolff continua sua busca pela transformação do caráter crítico e revolucionário do homem
Fausto Wolff: crítico, bem-humorado, irônico e sarcástico
01/05/2003

Assim como eu, você também deve ter perdido a conta de quantas vezes escutou alguém dizer: “minha vida daria um livro”. Puro engano. As vidas são todas iguais, só diferem na qualidade do sofrimento. O que daria um livro é a capacidade de criar histórias e, mais que tudo, saber contá-las. O resto é conversa para fila de banco. E contar histórias é o que Fausto Wolff — este gaúcho de Santo Ângelo que morou em Roma, deu aula de literatura na Universidade de Nápoles e também dirigiu teatro na Dinamarca — sabe fazer como poucos, embora Nataniel Jebão não canse de dizer que “Fausto Wolff é alcoólatra, decadente, jogador e comunista, mas tem seu lado bom”.

Decadente seguramente ele não é. Terminou de escrever mais um livro, com setecentas e poucas páginas (com um título que honra a quantidade de páginas: As mil e uma noites de Fausto Wolff ou História do mundo para sobreviventes); se joga, o faz por que sabe; que é comunista todos sabemos e seguramente o é por que também sabe; mas alcoólatra ele não é. Esta é a maior calúnia que se pode jogar em Fausto, pois segundo meu amigo e psiquiatra aqui de Copacabana, doutor Luiz Saraiva (não se espantem, pois é possível ter um amigo psiquiatra, basta que se tenha muita paciência, exagerada boa vontade e uma pitada de desprezo. Eles se amarram…), o alcoólatra é totalmente improdutivo. Mais uma vez Fausto não se enquadra. O que existe de verdade nessa lenda do beberrão é que ele se sente muito bem na companhia de um copo, grande, de uísque. E o que poucos sabem: Fausto Wolff é a identidade secreta do Dalai Lama.

• De duas questões abomináveis você está livre — não vou perguntar “como é seu processo criativo”, tampouco investigar seu “próximo projeto” —, mas me interessa saber do dia-a-dia do ganhador do prêmio Jabuti, com A mão esquerda. Você consegue viver da venda de seus livros?
Vivo do que escrevo. Escrevo regularmente para o Pasquim21, recebo alguns direitos autorais e de vez em quando faço traduções, algumas palestras. E sem falar em projeto, permita-me falar um pouco do meu próximo livro As mil e uma noites de Fausto Wolff ou História do mundo para sobreviventes: Em dezembro de 2002, publiquei no Pasquim21 dez pequenas histórias que estão entre as primeiras vinte deste livro. Histórias sobre o caráter do homem passivo e a necessidade de transformá-lo em caráter crítico e revolucionário. Antes de finalizá-las, descobrira como escrever As mil e uma noites de Fausto Wolff ou História do mundo para sobreviventes: desordenadamente, como elas se apresentam no sonho, sem futuro e sem passado, apenas no presente. Para poder harmonizar um todo, teria de lançar mão não apenas de pequenos contos, mas de pensamentos, poesias, artigos, na medida em que aparecessem em minha mente confusa, pois eles mesmos dariam um jeito de harmonizar a estrutura como um ritmo procura o que lhe é mais conveniente ou como uma cor ajusta-se àquela que reflete o espírito do sonho. As mãos apenas escrevem, pintam, esculpem e a voz apenas entoa sons e formas que já se encontram dentro de nós desde que aprendemos a andar sobre os dois pés. Convido o leitor a imaginar um ponto e cercá-lo por um quadrado para depois cercar o quadrado com um círculo e depois cercar este círculo com outro quadrado. Aos poucos, o leitor perceberá que está diante do infinito, pois o círculo completa o quadrado e um não existe independentemente do outro. O leitor é o infinito e eu lhes apresento minhas mil e uma noites, que falam da estupidez humana e do esforço do homem para deixar (ou não) de ser estúpido, do modo que chegaram ao meu cérebro quando nasci e mais as lacunas que preenchi. Esta poderia ser a primeira história, mas não é. Outro dia, surpreendi Cláudia, minha secretária, no ato de jogar no lixo um velho tapete que fica em frente ao box do banheiro e a metro e meio do vaso sanitário. Em verdade não é um tapete, é mais uma grossa toalha velha metida a veludo. Mandei-a recolocar o troço no lugar, pois ele é a minha televisão. Sempre que olho para ele, graças às sombras e reentrâncias mais a minha imaginação, vejo mundos fabulosos: girafas e marajás, ladrões e raposas, estrelas e virgens, monstros e paisagens suíças. Assim é o meu cérebro, leitor. Assim é o seu cérebro, leitor, caso tenha um mínimo de imaginação e amor pela aventura da vida. Leiam meu livro como quiserem: ele sou eu e vocês.

• Você é um dos tantos gaúchos que amam o Rio de Janeiro e durante sua gestão na Fundação Rio foi elaborado — assistido por Carlos Emílio Correia Lima mais a colaboração de 30 repórteres — um livro chamado Rio de Janeiro, um retrato. A cidade contada por seus habitantes. Retrato da porção antropólogo de Fausto Wolff, de valor inquestionável, poucos viram tal livro, só os privilegiados o leram. Afinal, que obra é essa e que fim levou?
Entre 1985 e 1990, ouvimos mais de cinco mil habitantes do Rio de Janeiro: da meretriz à socialite, do herói ao torturador, do lixeiro ao físico, e assim por diante. Acabei editando um livro com pouco mais de 300 entrevistas, que no dizer de Millôr Fernandes, que me honra com sua amizade, é o mais importante documento de antropologia moderna já produzido no Brasil. Rio de Janeiro, um retrato é mais fiel do que uma entrevista em videoteipe, pois nela o entrevistado deixa de ser “ele” (pessoa) para ser “o entrevistado” (personagem). Os repórteres passaram horas conversando com cada uma das cinco mil personagens do livro e eu, naturalmente, editei o que considerei mais interessante, mas não acrescentei uma só palavra ao que foi dito. A maioria dos letrados no Brasil se comporta como os ingleses em relação à Índia. Quase nada sabem do povo. O copidesque (com auxílio do computador) na redação de jornais e revistas criou uma linguagem padrão, uma certa falsa simplicidade que desliza pelos canais de uma objetividade superficial. Ao ouvir o povo diretamente pela primeira vez no Brasil (e no mundo) ocorreu um fenômeno de desteatralização dos papéis combinados de cima para baixo. Creio que conseguimos explodir o centro do grande silêncio e compreender que atrás do povo se esconde a mensagem direta. Trata-se de um livro que jamais será reeditado (são quase mil páginas) e os poucos exemplares que restam estão trancados em universidades de jornalismo, se é que estas servem para alguma coisa.

• Você é um grande jornalista. Talvez esta seja a razão por não escrever em nenhum dos ditos grandes jornais. Sempre teve iniciativa, originalidade e coragem. Os jornais atualmente estão muito parecidos, prestam obediência ao mesmo senhor. Uma muralha já não seria suficiente para acomodar aquela turma de acomodados que anteriormente se “empoleirava” no muro. Por que o jornalismo, hoje refém da TV, chegou a esse ponto e o que os jornalistas podem fazer para mudar esse quadro?
Trinta e poucos anos atrás eu comecei a primeira coluna de televisão a sério no Brasil. Até então, as colunas de televisão eram quem saiu com fulana, quem tá namorando com sicrano (a mesma besteira que existe hoje em dia) e eu chamei atenção para os jornais: era uma coluna no Jornal do Brasil, bastante séria — eu sempre levei a televisão muito a sério, o inimigo a gente tem que levar a sério —, chamando a atenção para o perigo dos jornais se tornarem escravos da televisão. Eu chamava atenção para a necessidade de os jornais — na época havia alguns jornais sérios — obrigarem a televisão a ter uma postura humanista. Bem ou mal, os jornais tinham. Isso não aconteceu e o que nós temos hoje é um jornalismo impresso que é um subproduto da televisão. A sua pergunta foi: “o que os jornalistas podem fazer”? Eu acho que o jornalismo é a profissão mais bonita do mundo e ela dá a oportunidade a um jovem pobre que tenha amor pelo mundo, pelo país, pelo que acontece a sua volta, de dizer para o povo o que o poder está fazendo. Hoje o jornalismo é uma profissão para qualquer imbecil que não consegue ser médico, nem advogado, nem banqueiro. Conseqüentemente, o que aconteceu com o jornalismo? O jornalismo é uma profissão para quem diz sim. Então, eu não tenho o menor respeito pelo novo jornalismo, com algumas raras exceções como o Geneton de Moraes Neto, um excelente entrevistador (estou falando da nova geração), o André Sefrin, que é um sujeito interessado em literatura, e o Chico Caruso.

• Os grande jornais estão se tornando muito semelhantes. Isso não é um mau sinal?
Eles não estão se tornando, já são semelhantes. É tudo a mesma coisa. Vou explicar: se você tem um país como era o Brasil em 1930, 1940, até os anos 70, você tinha um público que duvidava. Duvidar é sempre uma coisa extremamente salutar, mas a dúvida cria um problema para o poder. É que o eleitor pode chegar e dizer assim: “eu não vou mais votar nesse sujeito, eu vou votar num outro”. Conseqüentemente, a dúvida é ruim para o poder. Outra coisa que é ruim para o poder é a educação. Se a educação for harmonizada como a cultura, pior ainda. Então, o poder — seja ele comercial ou econômico — está numa situação sem saída: ele quer vender, mas para vender ele precisa que as pessoas acreditem nele, e as pessoas esclarecidas não vão acreditar nele. O que ele tem que fazer? Acabar com a capacidade crítica, interpretativa da maioria. Ora, o que é melhor do que qualquer coisa para isso? Trinta anos de ditadura. Então, quando você decide que a arte é uma coisa que pode ser parida sem dor, quando você decide que o importante é aquilo que dá mais dinheiro, depois que você já estabeleceu que vai ganhar mais dinheiro na medida em que as pessoas forem se imbecilizando mais e mais, o que acontece? O produtor de arte fica sem arte para produzir, ele só tem dinheiro e miséria e vive nessa miséria. Hoje, se você for procurar os dez filmes mais vistos nos Estados Unidos, verá dez porcarias. Isso vale para todo tipo de arte, principalmente para a música e o cinema.

• A obrigatoriedade do diploma teve alguma responsabilidade na organização dessa “linha de montagem” de jornalistas. Saem todos iguais para realizar as mesmas funções.
Eu não sei se o diploma é uma coisa boa ou uma coisa ruim. Se o diploma é uma coisa boa, então por que é que o Sarney escreve, por que é que o Ermírio de Moraes escreve? Então, se quem não tem o diploma não pode escrever, eles também não deveriam escrever, eles deveriam ser entrevistados. O problema do diploma basicamente é o seguinte: o diploma impediu que muitas pessoas inteligentes fossem para o jornalismo e permitiu que todos os idiotas do mundo, exatamente os que não podiam se formar em qualquer outra faculdade, também fossem para o jornalismo. Antigamente, o jornalismo era mais romântico, mais idealista. Mas o mundo também era mais romântico, mais idealista e garotos do proletariado, como foi o meu caso e de tantos outros, foram para o jornalismo e deram ao grande público uma visão proletária das coisas. O que se tem hoje é uma visão puramente burguesa, idiota e artificial das coisas.

• Os cadernos culturais são reflexo disso?
Os cadernos culturais chegam a me dar nojo, porque eles falam mais em literatura estrangeira do que do pobre do escritor brasileiro que precisa tanto disso. Eu, pelo menos, preciso. Outro dia eu disse: a diferença entre mim e o velho amigo Rubem Fonseca é que ele foge da mídia e a mídia foge de mim. Só que eu sou jornalista e o Rubem Fonseca tem uma aposentadoria como delegado.

• Quem mais tem medo de Fausto Wolff?
Existem os radicais e os meio radicais. Eu sempre fui um radical e pago um preço por isso.

• A poeta Orides Fontela no poema Fala diz que “tudo será difícil de dizer/ a palavra real nunca é suave”. Ela fecha o poema dizendo que “toda palavra é crueldade”. O que a literatura de Fausto Wolff tem de real?
Nada.

• Inclusive essa sua inegável preocupação social?
Você precisa entender como eu vejo a realidade. Eu vejo a realidade como uma distorção da verdade, a realidade é sempre do mais forte, é que nem a história. Cabe ao poeta, cabe ao jornalista, cabe ao historiador colocá-la no seu devido lugar.

• E o Fausto escritor de livros infantis? Ele existe naturalmente ou é fruto do mercado, de uma necessidade do tipo “vou escrever livro para criança para ganhar dinheiro”?
Escrevi quatro livros infantis, mas nunca em função do comércio. Escrevi Carta aos estudantes logo que voltei ao Brasil — um livro tentando explicar a adolescência e seus problemas —, escrevi Sandra na terra do antes — uma tentativa de explicar com o que sonham as crianças antes de aprenderem a falar, é quase um clássico. Foi traduzido em várias línguas. O terceiro é Tristana a maior gota d’água do mundo e o quarto é O ogre e o passarinho.

• O ogre e o passarinho é um dos mais interessantes livros escritos para o público adolescente, sem contra-indicação para adultos e foi completamente esquecido pelos ditos veículos culturais — este Rascunho também embarcou nessa — deste nosso triste país. A ausência aqui não foi esta, mas existe uma má vontade da crítica para com você?
A imprensa não tinha e nem tem interesse em mim. É uma coisa mútua: nem eles me querem, nem eu os quero. Também não ligo para as redações pedindo que falem dos meus livros ou que me entrevistem. No dia em que começarem a aparecer muitos artigos meus n’O Globo ou no Jornal do Brasil, um dos dois estará errado. Ou o jornal, ou eu.

• E o Fausto poeta? Descoberta tardia ou receio?
Não. Sempre fui poeta, mas esperei ficar mais velho para entender melhor as coisas. O que digo em meus livros de poesia exigiria milhares e milhares de páginas de prosa. A poesia é como um quadro: fala de inconsciente para inconsciente; é uma chave para decifrar uma linguagem esquecida como a dos sonhos. Todo idiota começa escrevendo um livro de poesias. Eu sou um idiota que esperei ficar velho para publicar meus poemas.

• É inquestionável nossa tendência a supervalorizar. No livro de estréia já inventamos gênios. Sem contar com o material estrangeiro,  que já vem com o carimbo “inspecionado pelo ministério da cultura — ótimo para consumo”. Ficando no âmbito doméstico: a obra de Ana Cristina César é supervalorizada?
Trata-se de uma grande poeta. E certamente a obra dela é supervalorizada. Provavelmente se ela não tivesse se matado, seria extraordinária. Essa moça chegaria às alturas de uma Cecília Meireles, uma George Eliot, Geroge Sand, talvez uma Doris Lessing. Mas que Ana C. é supervalorizada, é.

• E Millôr Fernandes?
Millôr é o maior esgrimista da palavra, o sujeito que mais respeita a palavra entre os que eu conheço. Esse é o grande cultuador da palavra, só não é um grande romancista porque nunca tentou escrever um romance. Escreve duas ou três peças de teatro que talvez o qualifiquem como um dos grandes autores de teatro. Mas sem dúvida alguma ele é o nosso único filósofo.

• E Chomsky?
O Chomsky é uma das grandes forças libertárias do mundo hoje. Para não falar do Fidel Castro, é claro. E Yasser Arafat é um dos grandes heróis dos nossos tempos, como foi Luís Carlos Prestes.

• A crítica brasileira ainda se socorre muito em Walter Benjamin. Até quando se utilizará a mesma forma?
Eu acho Walter Benjamin extremamente chato, eu acho Lacan extremamente chato. Isso tudo é subproduto de Freud e Edmond Wilson e eu nem sei se a crítica literária tem algum outro valor hoje se não o de fazer vender livro. Porque houve uma época em que o autor e o crítico estavam do mesmo lado. Eu fui crítico de teatro durante muito tempo e quando não gostava absolutamente de alguma coisa, eu a desconhecia; quando gostava muito, eu tentava propagá-la; quando não gostava tanto, eu fazia o possível para que o autor pudesse ver até onde ele podia chegar. Então, a crítica e a originalidade autoral andavam lado a lado. Você jamais vai me ver fazer crítica de um livro, pois eu sou escritor. Que história é essa que eu tenho que fazer crítica de livro? Eu posso é escrever um prefácio, uma orelha de um livro. Se eu gostar. Agora, essa crítica estúpida — isso que o Ivan Lessa fez com meu livro A mão esquerda em cima de uma inimizade pessoal e que a Veja deu duas páginas — é um absurdo. Não é só um absurdo como é uma doença mental.

• É raro o número de um suplemento literário dos grandes jornais que não apresente um “novo e talentoso escritor que logo será esquecido”. Geralmente a fama dessas bactérias advém de uma masturbação formal e conteúdo zero. Era de se esperar que as editoras fizessem a triagem, mas parece que elas perceberam que quanto mais vulgar mais fácil de vender. A opção pela qualidade, pela erudição sem pedantismo, por não puxar o saco de nenhum editor implica em menos leitores?
A arte que está preocupada em buscar a novidade é uma arte burra. A arte tem que estar preocupada em ver, procurar, fuçar a verdade que a realidade encobre. A novidade é sempre burra.

• Você não tem o menor receio de se intitular comunista. O comunismo, no entanto, é pouco conhecido e ao mesmo tempo satanizado pela sua má interpretação e a divulgação daquilo que tem de pior. Fidel Castro acaba de dar uma inestimável colaboração aos detratores do regime, poucos justificaram tais atos (a execução de três homens que tentaram fugir de Cuba), entre eles Oscar Niemeyer. E você o que tem a dizer?
O Édipo tampinha — Bush — já invadiu o Iraque e logo rumará para a Síria, Jordânia, Irã, Coréia do Norte e era preciso encontrar um vilão. Estava na hora do vilão entrar em cena. E ele entrou: o ditador Fidel Castro (o único, pois jamais chamaram qualquer outro de ditador) condenou à morte três agentes da CIA que pretendiam seqüestrar um barco de passageiros para Miami e condenou até 25 anos de cadeia duas dezenas de intelectuais e jornalistas. A princípio sou contra a pena de morte, mas me espanta a hipocrisia dos colegas jornalistas. Afinal de contas, ele já mandara executar um homem do primeiro escalão, seu amigo, quando soube do seu envolvimento com drogas. Aqui já matamos pelo menos três presidentes, alguns senadores, vários deputados, prefeitos, jornalistas… mas só se chocaram com Tim Lopes, por que ele era repórter da Globo. Uma criança morre a cada hora no Brasil e isso sequer abala o sono dos nossos intelectuais. Esperavam o que de um país sem petróleo, que sofre um embargo cruel dos Estados Unidos, que tem o melhor serviço de saúde pública do mundo, ao ver seu sistema comunista ameaçado? Esperavam que abrisse as portas aos americanos? Que condecorasse os quinta colunas e aos agentes da CIA? Isso tudo me leva a desconfiar que nossos intelectuais estejam decididos a iniciar uma campanha chamada “Ajude a CIA a transformar a ditadura cubana numa democracia como a do Paraguai”. Também pode ser Brasil, Argentina, Bolívia et caterva.

• Você mora na Avenida Atlântica de frente para o mar, sem se deixar deslumbrar. Afinal de contas, ali estão meninos e meninas cheirando cola, enquanto isso nossos bem pagos políticos vivem de costas para o Brasil. A tão comentada violência do Rio de Janeiro não o assusta?
Minha pátria é Copacabana. Eu não acho que o Rio de Janeiro seja uma cidade violenta. Ao contrário, eu acho que o carioca é o mais cordial dos brasileiros. O povo brasileiro de um modo geral é extremamente cordial. Se você pegar o povo finlandês, onde praticamente não existem crimes e deixá-los sob a tutela do Fernando Henrique Cardoso, você terá um bando de unos. É claro que a corrupção e o roubo da classe dominante acaba se refletindo no proletariado, principalmente agora que a classe dominante é sócia do tráfico de drogas. Hoje, no Brasil, você tem o povo de um lado e de outro o executivo, o legislativo, o judiciário, a imprensa e os traficantes. É muito difícil o povo lutar sozinho contra tudo isso.

• Um dos maiores dramas dos escritores brasileiros, principalmente os novos, é conseguir uma editora. Isso não acontece com um escritor da sua expressão. Você está com seu próximo livro a caminho da editora, o lançamento será na Bienal?
Infelizmente o drama não se restringe aos escritores novos, os velhos também sofrem e meu livro ainda está sem editora.

• Contrariando os incautos, escrever — bem — não é para qualquer um. Fale um pouco do ofício e da formação do escritor. E de um de seus objetivos com As mil e uma noites de Fausto Wolff, pois um livro que vai da formação do planeta aos dias atuais não deixa de ser pretensioso, sem esquecermos que O lobo atrás do espelho (2000) já espantava a falsa modéstia de suas páginas.
Não há razão para escrevermos um livro se não o pretendermos grande. Desde que aprendi a ler e comecei a escrever histórias, o fiz por vaidade — é nisso que o homem se resume, em vaidade e autopiedade —, mas inconscientemente pretendia também dizer aos outros: olhem, eu observei, comparei e cheguei a uma conclusão. Escrevendo, enriqueço o meu espírito, aprendo sobre mim mesmo e aprendendo sobre mim mesmo, apreendo vocês e o mundo. Claro que eu não pensava isso desse jeito. Tudo estava — como está até hoje — muito confuso. Mais tarde, li os clássicos e os reli muitas vezes, pois queria descobrir o que era o homem e para o que servia. Li Homero, Virgílio, As mil e uma noites, Shakespeare, Molière, Gibbon, que falavam de deuses, heróis, reis e dos homens comuns. Li toda a filosofia oriental e ocidental e quanto mais lia e quanto mais escrevia, mais pesava a ignorância sobre os meus ombros. Para minha tristeza, descobri que não poderia contar a História do Mundo de uma só vez, talvez nem a história de um país, de uma cidade, de uma rua. Teria de me contentar escrevendo romances, contos, crônicas, ensaios, teatro, poesia, reportagens, histórias para adultos que continuam crianças e para crianças que se esforçam para atingir a idade adulta. A empresa da história do mundo e do homem estava acima das minhas forças. Continuei exercendo meu ofício sem, porém, jamais perder de vista o fato de que escrever bem pode ser importante, mas não é essencial. Essencial é a sinceridade. Pelo menos tentar ser sincero de todo o coração. Isso, em si só, já é um estilo. Um livro que não é o autor não serve para nada. Ousaria dizer como Walt Whitman que quem toca num livro meu está tocando num homem.

• Qual a função da Academia Brasileira de Letras? E ela cumpre sua função?
A função da Academia é a de preservar os valores burgueses e o faz muito bem. Tiveram duas oportunidades para mudar de rumo quando da candidatura de Mario Quintana, mas fizeram a opção pelo conservadorismo. Aquilo foi um dos maiores crimes já cometidos num país imbecil como o Brasil. O Quintana era um homem que vivia da sua poesia e perdeu para dois idiotas.

• Você consegue ser otimista, quer como jornalista, quer como escritor?
Eu acho que otimista não, mas humorista, sem dúvida. Tudo o que eu escrevo, em jornalismo e em literatura, é permeado por humor. Eu não tenho nenhum otimismo em relação ao mundo porque nós estamos marchando para o mundo ideal que é o mundo comandado por uma associação de pessoas perversas e seus medíocres.

• Planos para o futuro?
Sobreviver, conseguir continuar pagando o aluguel do meu apartamento e escrever um romance tão bom que me permita recusar o Prêmio Nobel.

Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho