O efeito do choque

Entrevista com o poeta e contista Everardo Norões, autor de "Entre moscas"
Everardo Norões, autor de “Entre moscas”
07/03/2015

Ao ler Os irmãos Karamázov, no início da adolescência, Everardo Norões descobriu o quanto a literatura podia transtornar a vida de um leitor. Do espanto das leituras juvenis ao prêmio Portugal Telecom 2014, na categoria contos/crônicas, com Entre moscas, formou-se um leitor atento e crítico, sempre disposto a olhar seu entorno com profundidade. Diz de Recife, cidade onde vive: “Hoje é uma metrópole com quistos provincianos, onde o sobrenome ainda é a chave do reino e o cheiro da senzala paira sobre o cadáver dos rios”. Nascido no Crato (CE), em 1944, Norões passou pela França, Argélia e Moçambique. Carrega na bagagem a leitura apaixonada dos autores clássicos, que ele defende como imprescindíveis para se entender o mundo contemporâneo. Na literatura, escolheu a poesia como seu principal ofício, sem deixar de também dedicar-se à tradução, ao ensaio e ao conto. É autor, entre outros, de Poemas argelinos, Retábulo de Jerônimo Bosch e A rua do padre inglês. Nesta entrevista concedida por e-mail, Norões fala de sua obra, de seu amor pelos livros e, principalmente, da importância da literatura no seu dia a dia.

• Em Entre moscas, os textos são carregados de referências culturais. Qual o efeito que o senhor pretendia ao fazer tais referências?
Referências culturais, no caso, são elementos que utilizo para provocar o leitor, arrancá-lo de seu exílio urbano, de seu apartamento. Penso que o texto literário deve ter, entre outros, o efeito do choque. Tomar como exemplo o que escrevia Baudelaire, na sua época, ao se deparar com o surgimento da metrópole moderna. Ele pressentiu, de forma pioneira, o surgimento do reinado do efêmero, que hoje toma conta de todos nós. Então, uso a referência clássica. Por exemplo, para insinuar que o bêbado entregador de leite poderia ter sido o herói das Termópilas. Ou que, quatro séculos antes de Leonardo da Vinci, Ibn Khalaf al-Muradi, na Andaluzia, havia tratado das mesmas coisas no seu Livro dos segredos. É uma forma de levar o leitor a questionar, a se questionar, a ir ao Google para pesquisar o que aconteceu nas Termópilas ou sobre o que dizia o tal Livro dos segredos. Talvez assim ele possa fazer a ligação entre coisas, épocas, mundos, o que hoje em dia costuma ser chamado de lincagem. Nosso eventual leitor vive, comumente, num mundo peculiar, o apartamento situado numa grande cidade. Apartamento, curiosamente, subentende separação, bicho apartado, cria retirada do peito da mãe. É que moldamos um estranho universo urbano, onde pessoas vivem no muito pequeno, mas com a sensação de que exercem algum domínio sobre suas próprias vidas. E fingem esquecer o que pulula em torno, porque a TV anestesia e o edifício em que mora está aparentemente blindado contra o assédio externo, com suas guaritas, vigilantes, porteiros. Então, essas referências deveriam soar como uma advertência: abram o olho, observem o que está à volta, há um mundo maior e mais interessante do que aquele em que você se encontra trancado, sobrevivendo.

• O senhor evoca muitos autores clássicos no decorrer dos contos de Entre moscas. Que tipo de leitura lhe é fundamental no dia a dia?
Para mim, a leitura fundamental é aquela para a qual apelamos nas horas mais especiais, como aquele vinho que aguarda o amigo com quem queremos compartilhar uma conversa, um segredo. Então, guardo sempre por perto alguns livros, como as obras de Cesar Vallejo, de Garcia Lorca, de Fernando Pessoa ou de Rimbaud. Também gosto de rever um ensaio de Auerbach, de Octavio Paz ou de Walter Benjamin. E há também aquelas leituras mais do que clássicas: As mil noites e uma noite ou a Bíblia, etc. Às vezes cito autores clássicos para mostrar o quanto eles são contemporâneos. Contemporâneo aqui entendido naquele sentido sugerido por Agamben: o inatual, o que enxerga não as luzes, mas a escuridão. Assim, o leitor pode observar o quanto os que chamamos clássicos estão mais próximos de nós do que muitos escritores “atuais”, que navegam na crista das ondas.

• Qual a importância de receber um dos principais prêmios literários do país, como o Portugal Telecom?
Um prêmio em si não significa muita coisa. Guimarães Rosa foi preterido num concurso e nem por isso deixou de se tornar um dos maiores nomes de nossa literatura. Mas fiquei feliz, sim, pelo fato de o Entre moscas ter sido premiado num Portugal Telecom que tem um júri composto de pessoas de conhecida competência e seriedade. Surpreendeu-me sobretudo o fato de o livro ter merecido matéria de um crítico da importância de Luiz Costa Lima, no Valor Econômico, ou de ter sido apresentado num programa da TV Cultura por Manuel da Costa Pinto como o acontecimento literário. Além disso, causou estranheza o fato de ele ter sido publicado por uma editora pequena, a Confraria do Vento, quando por tradição aguarda-se que prêmios dessa natureza sejam entregues a autores acolhidos pelas grandes casas de livros. Tanto que o fato mereceu uma matéria interessante de Ronaldo Cagiano, publicada no jornal O Estado de S. Paulo. É importante observar que o premiado, no caso, é o livro. Não o autor. Nesse aspecto, é curioso observar o quanto atualmente a mídia valoriza o autor, no exato momento em que as resenhas caem de qualidade e as revistas especializadas em literatura sobrevivem com tanta dificuldade. O autor, no meu entender, não deveria se comportar como ator. Ele é um trabalhador das letras, do mesmo jeito que o pedreiro é um fazedor de casas. Quanto a mim, prefiro me sentir como no poema de Fernando Pessoa, dando sempre adeus ao livro que se vai. Em contrapartida à surpresa e à satisfação de ver seu livro premiado, há o risco de o autor se sentir como o animal que não tem mais onde se esconder, vendo à sua frente o caçador de arma em punho, firme na tocaia.

• Há contos escritos como poemas. Há prosas com alta carga poética. Há também poemas que usam diálogos ou partes em prosa em suas estruturas. Ao exigir definição de uma obra literária, os prêmios literários não estariam defasados em seus critérios de avaliação?
As formas de ler e de escrever mudam historicamente. Basta que se observe, por exemplo, a evolução do romance desde o Romantismo até Nouveau roman francês do século passado. Ou a mudança na prática da leitura, do papiro ao tablet, dispositivo susceptível de conter toda a biblioteca da Babilônia. Os lugares de leitura também evoluem: antes, havia o gabinete, a biblioteca; hoje, as pessoas leem no metrô, nos lugares públicos, carregam suas bibliotecas no bolso. Há “ensaios” que se incorporam a obras de ficção, e “romances” que se escondem detrás de reportagens. Ou seja, é hora de romper com paradigmas, deixar que os jurados dos concursos enveredem por suas próprias escolhas, sem ficarem engessados em classificações formais. Se à época de Cervantes houvesse prêmio literário, o Dom Quixote certamente estaria fora do regulamento.

• O escritor Marcelo Moutinho publicou em O Globo uma crônica sobre certo incômodo que lhe ronda: ele é contista e frequentemente alguém pergunta quando publicará o primeiro romance. Ele responde que não escreve romance e que o conto não é escada para histórias de maior fôlego. O senhor é poeta e contista. Essa também é uma pergunta recorrente ao senhor?
A pergunta que me faço é: O que me motiva a escrever? Não escrevo para editoras, nem para um público definido, nem, a rigor, para “comunicar”. Um texto literário é uma espécie de objeto feito de palavras, que às vezes pode tomar a forma de um poema ou de um conto. Não existe uma hierarquia de tempo no fazer da escrita e há o risco de se escrever um péssimo romance ao condicionar esse trabalho a certos apelos exteriores. Nesse aspecto, concordo com o Marcelo Moutinho. Um dia, quem sabe, ele ou eu tenhamos vontade de escrever um romance e certamente o faremos sem essas amarras que tornam a literatura muito parecida com o prêt à porter.

• A que o senhor atribui esta “supremacia” do romance sobre os demais gêneros literários?
O romance é herdeiro direto da epopeia. Portanto, seu apelo político é mais forte do que o de outras categorias da ficção. Por exemplo, a Odisseia supõe a mitologia grega e todas as formas assumidas por ela para explicar o sentido do viver daquele povo mediterrâneo e, ao mesmo tempo, amparar as leis sociais necessárias à reprodução de seu mundo. Da mesma forma, o Dom Quixote encerrou o ciclo da cavalaria e acompanhou o entrar em cena de um novo tipo de sociedade, transição da qual ele é o registro maior. Creio ter sido Hegel quem disse ser o romance a epopeia burguesa moderna. Não é por acaso que a ampla difusão do romance inglês surgiu no momento em que crianças eram brutalmente exploradas nos teares de Manchester. É que aquele tipo de romance dito popular tinha a função de amortecer conflitos, de anestesiar os impactos brutais provocados pela Revolução Industrial. Ou seja, o lugar político do romance na sociedade moderna fez dele a categoria de ficção por excelência, pois é ele que narra com as minúcias necessárias acontecimentos que às vezes a própria História procura esconder. Ele é tão político que um escritor, tido como conservador, como Vargas Llosa, é um dos que denunciaram com mais maestria os desconsertos de nossa América Latina.

• Em sua opinião, a que se deve a permanência e a força da crônica na literatura brasileira?
Essa pergunta poderia ser respondida por outra: Será que na Alemanha ou na França a crônica tem essa mesma importância junto aos leitores? Responderia: Evidentemente que não. Então, devemos procurar entender quais especificidades levam a crônica a ter esse peso entre nós. Penso nisso depois de ter visto recentemente um filme francês, O azul é a cor mais quente, que se passa entre adolescentes. Há nele uma cena em torno de uma conversa sobre o livro La vie de Marianne, de Marivaux. Trata-se de um autor do século 18 debatido entre alunos que se preparam para um dever de classe. Isso demonstra que, em alguns países, os jovens são iniciados muito cedo à leitura e à análise de textos literários, o que os tornam capazes de penetrar muito cedo no mundo do que poderíamos chamar da alta literatura. Outro exemplo: Certa vez assisti a uma mesa redonda com escritores noruegueses e um deles foi contundente ao afirmar que não havia literatura para jovens, havia simplesmente Literatura. Uma afirmação dessa natureza só é possível quando a sociedade — sobretudo a escola — tem a possibilidade de formar leitores dotados de boa aparelhagem crítica. Infelizmente, estamos longe disso. Longe de uma escola secundária onde alunos falem várias línguas, dissequem grandes obras da literatura ou são orientados por professores saídos das chamadas “grandes escolas”. A crônica é normalmente um texto leve, acessível a quem lê jornal, gira em torno de assuntos em voga e, na maioria da vezes, conta com espaço limitado na imprensa e sua publicação é feita em dias determinados. Num país dominantemente tropical, onde a conversa de bar e a vida alheia são esportes prediletos e o interesse pela grande literatura, medíocre, o leitor mediano certamente estará mais propenso a ler a crônica de um escritor conhecido do que um clássico de Tolstoi ou de Marcel Proust. Isso não significa desvalorizar a crônica enquanto literatura, mas apenas situá-la num universo que, a meu ver, parece mais favorável à sua divulgação.

• O senhor acredita que um leitor de livros literariamente fracos evolui, pelo costume de ler, para livros reconhecidamente melhores? Ou o leitor que se acostuma a ler livros ruins tende a ficar acomodado nessa facilidade?
O leitor de livros “fracos” — e esse, a meu ver, é um critério subjetivo — pode, ou não, evoluir a partir de suas primeiras leituras. Isso não dependerá daquilo que lê, mas do próprio leitor. Admito que gostar de ler deriva de uma propensão íntima, porque um bom leitor é também vocação. Se for assim, não é apenas a qualidade do livro oferecido que torna alguém um bom leitor. Para quem gosta de ler, a iniciação à leitura, mesmo a partir de um livro considerado “fraco”, provoca certo estímulo. Em alguns casos poderá até despertar o sentido da crítica ou abrir janelas para que um dia ele, o leitor, possa se tornar um escritor.

• Por que um jovem, com seus 12, 13 anos, teria de encaixar a literatura em seu dia a dia, além do videogame, da televisão, da internet, do cinema, dos estudos para entrar em faculdades, do emprego, do namoro e tudo o mais que disputa o tempo e a atenção desse jovem?
A leitura deveria ser um exercício fundamental para a formação do jovem. A linguagem vertiginosa da mídia os sobrecarrega de informações, mas lhes nega a possibilidade de usufruir de toda uma gama de sutilezas e emoções que só pode ser transmitida através da leitura. Ocorre que a leitura necessita de um tempo, de um respirar, de uma sincronicidade susceptíveis de possibilitar a quem lê uma viagem dentro de si mesmo, através dos personagens ou das situações de cada livro. A linguagem literária, conforme assinalou Octavio Paz, é um “conjunto de seres vivos, movidos por ritmos semelhantes aos que regem os astros e as plantas”. Mover-se nesse universo das palavras deveria ser a preocupação maior do educador. Para isso, ele deveria conhecer não apenas as regras da boa redação, da boa gramática, mas também a capacidade de ensinar que, através da leitura, é possível se reconhecer nas experiências do outro — autor ou personagem — ou se identificar com paisagens e situações. Conheço pessoas que viajaram a determinados lugares depois que se apaixonaram por um autor ou motivados pelas circunstâncias de algum livro. Cito o exemplo de um amigo que partiu para a França depois de ter sido tocado pela poesia de Rimbaud.

• Como se deu a sua formação como leitor? Como o senhor se tornou um leitor de literatura?
Nasci num lugar onde o estudo era considerado importante ou, pelo menos, um das poucas saídas. Uma cidade de interior onde, para nossa sorte, havia dois seminários e um colégio. O aprendizado tinha uma conotação humanista, estudava-se latim e francês. Era um lugar relativamente pobre, estudar fazia parte da sobrevivência. Minha família cultuava a leitura, na casa de meus pais dispúnhamos de uma pequena biblioteca, entre pessoas da família havia escritores que nos serviam de referência. Depois, tive um professor que foi muito importante na minha formação, o professor José Newton Alves de Sousa, que mora em Salvador e até hoje é a primeira pessoa a quem envio minhas publicações. Li o que havia disponível na época: o clássico Tesouro da juventude, José de Alencar, Monteiro Lobato, Alexandre Dumas, Machado de Assis, Paulo Setúbal, Visconde de Taunay, Humberto de Campos, Augusto dos Anjos, Euclides da Cunha, Os sermões de Vieira, Maravilhas do conto universal, enfim, tudo o que me caía nas mãos. Até que um dia, aos 13 ou 14 anos, recebi o tijolaço dos irmãos Karamázov e descobri o quanto a literatura podia transtornar a vida de um leitor.

• As redes sociais na internet, principalmente o Facebook, mais promovem a literatura ou mais afastam as pessoas dela?
Sempre imagino a internet como uma grande cidade, com suas ruas, avenidas e moradores interessados nos mais diversos assuntos. Entre eles, a literatura. Uma cidade imaginária, onde o bom comércio dos livros tem seu espaço. Essa possibilidade de encontros rápidos, troca de opiniões, de textos, que nos traz a internet, é algo que vejo como muito interessante. Por exemplo, às vezes somos confrontados à informação sobre um autor, do qual nunca ouvimos falar e, em questão de minutos, descobrimos seus textos e somos tocados pela escrita de alguém que nos era totalmente desconhecido.

• O que o senhor pretendia quando começou a escrever e publicar livros? Suas ambições mudaram nesse tempo de estrada na literatura?
Em vez de ambição, prefiro utilizar a palavra vocação. A palavra ambição vem sempre carregada de um sentido pejorativo, subentende busca de alguma riqueza, prestígio, lisonja. Enquanto vocação, pela sua etimologia latina, indica chamamento. Ou seja, existe uma diferença entre aquele que escreve com o objetivo de alcançar alguma coisa e o que escreve por ter dentro dele algo que reclama, que chama. Isso acontece com o escritor, mas também com o músico, o ator ou o carpinteiro. Isso não impede que um determinado artista possua as duas coisas, a vocação e a ambição. Neste caso, acabará muito bem sucedido, como se diz comumente. No meu caso, não escrevo por ambição. Nunca montaria uma equipe para escrever e divulgar um livro com pretensões a best-seller, por exemplo. Mas há um prazer, sim, em ver um livro publicado, saber que alguém vai lê-lo, compartilhar com você o poema escrito com o rigor que lhe foi possível imprimir naquele texto que, de repente, deixa de ser seu, assume vida própria.

• Há alguma opinião sobre literatura que o senhor sustentava e que tenha mudado radicalmente?
Não costumo sustentar opinião sobre literatura, porque tenho a consciência de que tudo está em constante mudança, inclusive nós mesmos. E essa maneira — eu diria dialética — de olhar as coisas, nos obriga a rever de vez em quando nossa maneira de pensar, de enxergar as coisas. Quando éramos jovens, dentro da formação clássica, considerávamos importante a questão formal na poesia. Por exemplo, quase todos nossos poetas praticaram o soneto. Hoje em dia — repito o que sempre digo em outras ocasiões — o soneto é uma espécie de prisão, uma cela na qual fomos obrigados a ficar presos algum tempo para guardar a sensação de que éramos de fato poetas. E acabamos por deixar nas paredes marcas, marcas de prisioneiros que precisavam dizer: passamos por aqui, esse é o nosso sinal. Depois vem a cal do tempo e tinge os sonetos menores e, às vezes, até mesmo os poetas.

• Voltando ao mundo online. O senhor acredita que a palavra escrita (utilizada o tempo todo nas redes sociais) ganhou um novo status, voltou a ter um valor social significativo?
A palavra escrita utilizada nas redes sociais nada tem a ver com literatura, mas representa um avanço importante na cadeia das comunicações. Pelo seu próprio caráter provisório, imediatista, ela nunca surge cercada daquela espécie de aura que costuma identificar o texto literário. Mas as palavras, nessa intensa troca de informações, acabam sendo abreviadas, termos estrangeiros são incorporados ao texto e quase não existe, de fato, uma preocupação real com a qualidade da escrita. Ou seja, é um outro tipo de palavra a que é requerida pela rapidez das circunstâncias. Quanto à palavra da literatura, ela guardará em qualquer meio a sua radiação, seu mistério.

• O narrador de O furo na madeira, de Entre moscas, encerra o conto dizendo que “Inventamos um pai e a palavra é um tiro”. Qual a importância da palavra escrita ficcional na sua vida?
Num de meus livros, cito o texto místico guarani, o Aywu Rapitá, que foi traduzido por Douglas Diegues. Trata-se do poema Fractais e nele escrevi:

Abro a janela
da página do sonho:
decifro, lentamente, o Aywu Rapitá:
o ser do ser da palavra,
(flor pronunciada
entre as estrelas).

“Na leitura de um bom poema há sempre uma espécie de identificação que faz com que o leitor se sinta responsável pelas sensações emitidas por ele, o poema. Há sempre alguma coisa a decifrar.”

Penso que nesse pequeno trecho você pode encontrar resposta à sua pergunta. Porque a palavra é ser que gera ser. Sem a palavra o que seria do homem?

• O senhor nasceu no Crato (CE) e vive hoje no Recife. Antes, passou pela França, Argélia e Moçambique. De que maneira estas andanças, este cosmopolitismo, deixaram marcas na sua ficção?
 Aqui as pessoas gostam de se referir ao escritor dando certa importância ao lugar de nascimento ou ao período em que viveram: escritor pernambucano, foi ou não foi da Geração 65, viveu em tal lugar. No meu caso, carrego dentro de mim um pouco de cada um dos lugares por onde passei. Sou um pouco de cada um deles e de nenhum. O que conta na escrita é muito mais a forma como você a conduz do que os traços ou cicatrizes que essas passagens podem deixar eventualmente na sua ficção. Certamente tive a oportunidade de vivenciar situações diferentes ou estranhas para outras pessoas. Mas se isso pode parecer interessante enquanto vivência, não é o que faz com que eu escreva, não é o motor da escrita. Não é isso que faz com que alguém possa se tornar escritor. Se fosse assim, Leopardi não teria sido alguém que escreveu tanto, tão ricamente, e em tão pouco tempo, embora doente, sem quase nunca ter saído de seu gabinete de leitura.

• O que significa a poesia para o senhor? O que o senhor busca como leitor de poesia? E como poeta ao escrever um verso?
Quando se lê um romance ou um conto, a narrativa nos dá a sensação de que o leitor está seguindo o curso de uma história, de uma ação, ou de estar visualizando uma descrição. Mesmo se sentindo partícipe do livro, ele está sempre fora do contexto, porque é uma espécie de convidado, guiado pelo narrador. Na leitura de um bom poema há sempre uma espécie de identificação que faz com que o leitor se sinta responsável pelas sensações emitidas por ele, o poema. Há sempre alguma coisa a decifrar. Esse deciframento (o “recado que a alma dá”, segundo meu amigo, o poeta Maurício Mota) leva o leitor a se sentir integrado ao texto. Por isso, o mesmo poema lido por pessoas diferentes poderá ter várias interpretações. É o que faz com que o seu fascínio envolva, ao mesmo tempo, o autor e seus leitores. Às vezes, escrevo poemas sem acentuação ou sem maiúsculas. Acredito — não sei se tenho razão — que isso poderia levar o leitor a dar ao poema seu próprio ritmo, sua entonação, sua interpretação.. Ou seja, estará se associando ao poema, como se houvesse algo dele, leitor, algo que o próprio autor às vezes nem pode explicitar.

• É possível definir um bom poema? Como alcançar o bom poema?
Gosto de citar a opinião que deu Carlos Drummond de Andrade a respeito de um poema de Joaquim Cardozo, A nuvem Carolina. Segundo ele, o grande poema é aquele que aprendemos de cor e acabamos por incorporá-lo como se fosse nosso. O aprender de cor, de fato, remete à fonte latina, guardar no coração. Em certa ocasião visitei um amigo de meu pai que, aos quase cem anos, tinha uma lucidez que me deixou impressionado. Perguntei-lhe como ele havia conseguido preservar aquela memória tão viva. Respondeu-me que todas as noites, antes de dormir, recitava de cor trinta poemas, entre os quais o soneto do grande poeta Da Costa e Silva intitulado Saudade, poema de sua preferência. E o recitou de cabo a rabo, como se diz. Como alcançar o bom poema? Procuro até hoje essa receita e sempre findo com a resposta justa e óbvia para tudo o que é bem feito: inspiração e muito trabalho. Mas a inspiração a que me refiro se situa dentro daquela ideia de Octavio Paz, de que ela é uma manifestação “da ‘outridade’ constitutiva do homem” e a criação poética o “exercício de nossa liberdade, de nossa decisão de ser”.

• Ao escrever poesia ou contos quais são as suas principais preocupações? O senhor é muito crítico em relação à própria produção?
Sou crítico, sim. Em outra encarnação, se eu acreditasse nisso, imagino que teria sido jardineiro, tal a minha propensão em podar meus textos. Nos meus poemas raramente utilizo adjetivos, sempre os engaveto durante algum tempo, antes de serem refeitos, publicados. Ou cremados, deletados. E antes de publicá-los, dou-os a ler à minha mulher, Sônia, e a alguns amigos escritores, como Ronaldo Correia de Brito. Também não me incomoda a crítica alheia, que para mim é sempre útil. Tenho receio dos elogios que, segundo Lorca, são flores lançadas no túmulo do poeta.

• Que sentido a poesia (e sua leitura lenta e contemplativa) pode ter nestes tempos tão apressados e tumultuados em que vivemos?
Gosto da ideia de um poeta meu amigo, Jean-Claude Pinson, sobre cuja obra escrevi um trabalho. A de que a poesia deve ser uma maneira de tornar o mundo mais habitável. E como as utopias apodreceram no coração dos homens, talvez nos caiba tentar criar um poetariado, um grupo de pessoas susceptíveis de se opor à coisificação e a essa ditadura do dinheiro. Outro dia estive num grande shopping center, ocasião em que havia muito pouca gente, e me dei conta do quanto aquele ambiente meio deserto me parecia sinistro. Era como se as figuras das vitrines houvessem usurpado um espaço de humanidade para poder exercer o reinado das coisas. Vi-me como um estranho acossado por manequins e decorações extravagantes, naquele lugar sem tempo, bombardeado por uma luz irreal. Então pensei, como poderíamos exorcizar esse mundo que tomou conta das pessoas, a ponto de o motorista não se preocupar em parar para deixar passar o pedestre? Antigamente, as orações eram construídas como poemas e nos Exercícios espirituais, Santo Inácio de Loyola ensina como utilizar a respiração durante o ato de rezar. A mesma coisa deveria acontecer agora. Deveríamos utilizar a poesia, rezar o poema, para fazer um exorcismo, para espantar o demônio da desumanidade que tomou conta de nossa sociedade.

• O senhor acredita que há certa espetacularização da literatura na mídia e nas redes sociais, sempre em busca do grande novo autor?
Caricaturando, o autor vem se tornando um garoto propaganda. A vertente do seu trabalho deixa de ser o texto. O livro, em consequência, passa a ser a referência publicitária do seu ego. As capas dos livros coisificam o conteúdo, porque as editoras precisam vender muito e muito rápido. A lógica do marketing chegou à literatura. O que isso significa? Faço a comparação entre duas escolas de vinho: a francesa, que tem como foco a alta qualidade e a preservação de sua marca, sem muita preocupação em saber quem vai comprar seu produto; a outra, que fabrica o vinho em função de um universo de consumidores pesquisado com antecedência, para o qual o vinho será fabricado, então, sob medida, ao gosto do futuro cliente. Na França, acontece a mesma coisa com os livros. Escritores do porte de um Julien Gracq ou de um Pierre Michon têm suas obras publicadas por pequenas editoras, com capas limpas, sem ilustrações. Como um bom vinho a ser degustado.

• O senhor é escritor, poeta, tradutor e pesquisador. Qual destas atividades lhe dá mais prazer, lhe dá mais sentido à vida?
Cada uma dessas atividades tem seu momento. Mas a poesia é a que me dá mais prazer e, contraditoriamente, mais sofrimento. A tradução é mais lúdica, obriga-nos a mergulhar fundo na escrita do outro, recriar pedaços de universo, descobrir mecanismos de linguagem que às vezes você desconhecia. Mas é a poesia a que mais surpreende, a mais instigante. É um texto que se despede rapidamente de você, assume vida própria e é assumido pelo leitor, quando ele gosta. É estranho, mas o bom poema pode ter uma leitura que eu chamaria de caleidoscópica. Certa vez Jomard Muniz de Brito organizou uma leitura de meus poemas e, no final, disse que iria fazer um último experimento: ler os poemas ao contrário, de baixo para cima. Queria saber se meus textos passariam no seu teste. Porque, segundo ele, o bom poema preserva a qualidade mesmo lido ao contrário. Essa experiência seria impossível com outro tipo de texto.

• O Brasil parece viver um momento turbulento e de desilusão, principalmente no campo da política. Há certo descrédito a pairar sobre as instituições, os políticos… De que maneira a ficção pode ter uma participação política na vida do país sem ser panfletária?
Tanto na poesia, como nos contos, tento refletir essa nossa desagregação, que tem seu fulcro na divinização do dinheiro, no reino do fetiche. Na maioria das vezes, a política não existe (no sentido grego da pólis), foi substituída pela politicagem. Os critérios de gestão pública tendem a ser os mesmos utilizados pelas grandes empresas, como se a eficiência nos negócios levada à coisa pública pudesse conduzir a algum lugar. É dentro dessa lógica que as firmas de publicidade vendem políticos, como mercadorias destinadas às grandes massas. Assustam-me os grandes cartazes apregoando que tal prefeito ou tal governador estão entre os melhores do país, quando observamos que aquelas verbas de publicidade deixaram de ser usadas na formação da juventude, sobretudo a das periferias, cuja boa parte está sendo devorada pelo crack. A concepção da política de segurança, por exemplo, é algo fascista, que certamente culminará com grandes cinturões sanitários, separando a cidade pobre da cidade dos turistas e dos bairros de privilégio. Corremos o risco de termos que viver numa sociedade de novos colonos e colonizados. Como a Argélia da época dos franceses, descrita por Frantz Fanon no livro Os condenados da terra.

• Em alguns contos de Entre moscas, Recife é retratada de maneira impiedosa, como uma cidade quase inóspita. Como é sua relação com Recife e o que significa produzir sua ficção a partir desta cidade?
Recife é uma cidade que foi muito bonita, cuidada por homens como Joaquim Cardozo, Burle Marx, Antônio Baltar, Pelópidas Silveira ou Miguel Arraes. Hoje é uma metrópole com quistos provincianos, onde o sobrenome ainda é a chave do reino e o cheiro da senzala paira sobre o cadáver dos rios. Uma cidade devastada pela epidemia de um urbanismo que devastou patrimônios, aboliu o transporte público, premiou uma boa parte daqueles que participaram da fase extremamente repressiva do pós 64. É a cidade que louva os poetas que não moraram nela (como Bandeira ou João Cabral) mas destrói os que aqui ficaram, com a desatenção e o subemprego. Um lugar onde médico mata médico por questões subalternas, enquanto ocupa o primeiro lugar em matéria de consumo de uísque Johnnie Walker do mundo. Tão estranha, que nela há um único lugar onde os automóveis param voluntariamente para deixar passar os pedestres. Mais grave ainda, é a sociedade na qual se firma cada vez mais o que chamo de paradigma do esquecimento. Por isso, num de meus contos, escrevi: “O rio passa devagar, engolindo o mangue. Engolindo quase tudo. A nós, inclusive. A luzinha do navio atracado no Armazém 12 dá boa-noite aos frequentadores do Bar 28, onde torturadores e torturados se irmanam no bafo do Johnnie Walker, o armador escocês. E a lua está parada no céu, onde não há mais lugar para metafísica”.

• O senhor se considera um homem culto?
Não. Apenas uma pessoa que teve a oportunidade de ler, estudar e, portanto, de desfrutar de um aparelho crítico capaz de observar o mundo de uma maneira menos convencional. Aliás, a palavra “culto” tem, para mim, uma conotação elitista e uma de nossas tarefas heroicas, a meu ver, é a de “desselitizar” a literatura. Foi por isso que combinei com a editora Confraria do Vento lançar o Entre moscas numa escola de um bairro da periferia do Recife, a Bomba do Hemetério, com o apoio de organizações da comunidade. Na ocasião, havia cerca de trezentos alunos, que certamente nunca haviam tido contato com um escritor. Se alguns deles foi tocado pelo meu livro, quem sabe a literatura poderá ter ganhado uns leitores. Seria um prêmio.

André Argolo

É jornalista e pós-graduado em Formação de Escritores pelo ISE Vera Cruz (São Paulo). Autor do livro de poemas Vento sudoeste.

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