O demônio da memória

Em "Espera passar o avião", novo romance de Flavio Cafiero, o ruído funciona como metáfora para uma narrativa fragmentada e repleta de traumas
Flavio Cafiero, autor de “Espera passar o avião”
30/04/2019

Se o problema fosse apenas um ruído passageiro, como uma mosca que incomoda mas logo se vai, Felipe Martins Viegas não viveria tão perturbado. Protagonista de Espera passar o avião, novo romance do carioca radicado em São Paulo Flavio Cafiero, esse “inventor de silêncios” é um diretor de som que desenvolve problemas auditivos, tenta manter um relacionamento que vai de mal a pior e, ao longo da narrativa, lida com vários outros tormentos, sobretudo os relacionados à morte de seu irmão mais velho, quando ainda eram crianças, e à memória — ou falta dela.

Se “desaprendemos a silenciar e, consequentemente, a escutar o outro”, como propõe Cafiero, o protagonista de sua obra insurge, em contraponto, como “o mais apagado dos homens”. Não é possível afirmar que se trata, porém, de uma espécie de introspecção filosófica. O silêncio desse personagem, que vive há anos em Portugal e volta ao Rio de Janeiro para ajudar seu melhor amigo, o Zé Mário, na produção de um longa-metragem, responde aos traumas do não dito. Do que não devia, mas foi. E assombra.

A relação do protagonista com o cinema, aliás, não é à toa: trata-se de uma linguagem de suma importância para Cafiero, que também já participou de produções como ator e roteirista. “É difícil imaginar como seria minha escrita sem a influência do audiovisual”, diz o autor que estreou na literatura com O frio aqui fora (2013) e trabalhou narrativas breves em Dez centímetros acima do chão (2014), pelo qual levou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte.

Afora a gradual neurose de Felipe e a prosa igualmente perturbada, numa relação harmoniosa entre forma e conteúdo, em Espera passar o avião o leitor encontra um narrador tão amargo e ranzinza quanto o personagem principal. Críticas são disparadas contra a Cidade Maravilhosa, o comportamento das famílias burguesas, as produções hollywoodianas de massa e a idiotização geral.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Rascunho, Cafiero fala da sua relação com o cinema, discute as questões que nortearam seu novo romance, opina sobre o mercado editorial e, entre outros assuntos, discorre sobre a literatura em geral, essa arte que constrói sentidos em cima do que não tem e “abre a existência para a alteridade, enriquece o dia, prepara para o diálogo”.

• Espera passar o avião traz detalhes técnicos sobre o cinema, além de referências e até uma breve cronologia dos avanços da sétima arte desde sua concepção. Qual sua relação com o cinema? A linguagem audiovisual influencia de alguma forma sua escrita?
Minha relação com o cinema é intensa, e não apenas como espectador, pois cheguei a participar de produções como ator e roteirista. É difícil imaginar como seria minha escrita sem a influência do audiovisual. Minha geração cresceu com a explosão dos blockbusters e presenciou a popularização dos filmes, tanto nas salas de exibição quanto em casa, com o advento dos videocassetes. O cinema faz parte do meu cotidiano, sou capaz de assistir a três filmes em sequência. Em termos de influência, o audiovisual (pois incluo aqui a televisão) é tão definitivo e relevante em minha escrita quanto a própria literatura.

• A narrativa de seu novo romance, algo onírica, mescla presente e passado sem aviso prévio, é fragmentada e traz silêncios — brechas — que instigam a imaginação do leitor. Como chegou a essa estrutura? Exigiu muita reescrita?
Sim, exigiu muito retrabalho. É aí que mora o grande esforço do escritor: na reescrita, nos cortes, nas mudanças estruturais e na carpintaria final. A estrutura fragmentada, com a mistura de presente e passado, é de certa forma um espelho do próprio cinema, onde nos acostumamos com uma gramática de saltos temporais e variações de ritmo. É interessante como passamos a estranhar esse tipo de recurso na literatura. Muitos leitores encontram dificuldade na fruição de obras literárias fragmentadas, mas o mesmo não acontece no audiovisual: nos acostumamos com sua linguagem, sedimentada ao longo de um século de exposição massiva. Na história do livro, a fragmentação vem justificada pelo processo de recuperação das memórias do protagonista. E memória e imaginação (passado e futuro) estão diretamente ligadas à construção da linguagem cinematográfica, e, claro, a toda linguagem artística.

“É aí que mora o grande esforço do escritor: na reescrita, nos cortes, nas mudanças estruturais e na carpintaria final.”

• De onde veio a necessidade de refletir sobre diferentes tipos de silêncio e o ruído branco, questões que têm peso essencial no livro?
Essa reflexão nasceu de mãos dadas com a escolha da profissão do protagonista, um diretor de som. E tem a ver com o silenciamento do passado, com o trauma da perda do irmão mais velho ainda na infância. O ruído é uma realidade contemporânea, desaprendemos a silenciar e, consequentemente, a escutar o outro. Vivemos um tempo de uso abusivo da palavra nas redes sociais, isso sem falar no ruído objetivo das máquinas no dia a dia. É do que mais gosto no Felipe, o protagonista: o apreço obsessivo pelo silêncio, essa busca diária pela pausa.

• “Espera passar o avião”, frase metafórica que dá título ao livro, aparece na página 98 e desencadeia uma neurose que acompanhará o protagonista até o final. Você tinha desde o princípio a ideia de usar essa metáfora da interferência para nortear a narrativa? Nos conte um pouco sobre a escolha do título e seu significado.
O título surgiu em um set de filmagem, no sertão de Pernambuco. O diretor de som do filme soltou essa frase e na hora veio o estalo. Coincidência ou não, casou com a referência a Bye bye Brasil, que é um dos filmes icônicos do livro. A neurose auditiva surgiu durante a escrita, não estava prevista. A ideia era priorizar a guerra entre ruído e silêncio na vida dos personagens e no set de filmagem, mas aí acabou surgindo essa minitragédia na vida do protagonista: um técnico de som com problemas de audição. E a metáfora cresceu, tomou corpo ao longo da narrativa. Nossa escuta está doente: não escutamos mais, apenas falamos. E falamos muito. A metáfora acabou desaguando nessa seara.

• O início do livro e o começo do último capítulo são metaliterários e quebram o pacto ficcional — o narrador reflete sobre a obra, dirige-se diretamente ao leitor. Ainda há espaço para a ficção “bruta”, digamos, algo como os calhamaços russos do século 19, ou a literatura contemporânea pede manobras estilísticas mais ousadas?
Há espaço para todo tipo de literatura. Obviamente o narrador onisciente neutro vai perdendo cada vez mais seu reinado em um mundo sem deuses e morais rígidas. Particularmente, prefiro os narradores com personalidade, que vão descobrindo a história junto com o leitor, gosto da imagem do narrador sentado no ombro do personagem, enxergando o mundo pelo mesmo ponto de vista, tentando apreender suas emoções e pensamentos. Meu narrador é um narrador onisciente, ele entra na cabeça do protagonista, mas apenas na dele, e encontra resistência, testemunha uma luta com a memória e o esquecimento, com os silêncios e ruídos.

• “Uma ferida aberta no corpo de um herói pode indicar algo importante” é uma frase que aparece já no início da obra. A literatura nasce de feridas abertas, de alguma necessidade de expiação?
É uma hipótese. Pode não nascer das feridas, mas elas vão sendo incorporadas no processo de escrita. Não há como escapar, pelo menos no meu processo pessoal. Estamos sempre escrevendo sobre nós mesmos, essa pedra já foi cantada por muitos antes de mim, e assino embaixo. O que fazemos é criar a ficção, mas sempre em cima dessas feridas, desses desejos soterrados. Mais uma vez: memória e imaginação, é esse o caminho da ficção.

• Alguns elementos do livro, como o cinema, a cocaína e o álcool, me fizeram pensar em Pornopopéia, do Reinaldo Moraes. Quais escritores você admira? E quais te influenciaram/influenciam?
Difícil definir, porque leio de tudo, e há a influência confessa do audiovisual e do teatro. Costumo ler bastante meus contemporâneos, acho importante saber do que estão tratando, e como. Os nacionais, como o Cristovão Tezza, o Michel Laub, o Luiz Ruffato, a Elvira Vigna e também o Reinaldo. E os estrangeiros, como o Franzen, Lydia Davis, Coetzee, Ian McEwan, Paul Auster e muito Philip Roth. Mas também leio muito Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Machado de Assis. Gosto de alternar, e de revisitar. E, pelo meu trabalho com aulas de escrita criativa, acabo lendo muitas formas breves, os contos que utilizo em classe, e também alguma teoria. Faço uma boa mistura, e sou muito atento às formas narrativas. Incorporo muita coisa dos colegas, sem pudores.

• “Há quem defenda a hipótese de que a ocorrência de um fenômeno é proporcional à sua divulgação”, diz o narrador a certa altura. Deslocando essa suposição para o universo literário, como enxerga esses booms editoriais recentes, como, por exemplo, O sol na cabeça, de Geovani Martins, e Outros jeitos de usar a boca, de Rupi Kaur?
Inescapável. A linha de produção invade todos os quintais, é assim com o cinema. O mercado editorial também faz parte de uma indústria, precisa responder a certos tipos de demanda, estimular o surgimento de best-sellers, incensar nomes. Algumas vezes o jogo fica mais evidente, outras vezes mais camuflado e natural. Mas encaro como algo necessário e inerente ao nosso tempo. É torcer para que haja coincidência entre o valor das apostas e a qualidade da escrita.

• A ideia de que “todo mundo bebe números diariamente para decidir o passo seguinte” vale para o mercado editorial? Ainda se publica um livro pela sua qualidade, ou é tudo sobre números?
Sim, ainda se publica um livro pela sua qualidade. Mas um livro de alta qualidade literária, assim como um filme de arte, precisa fazer parte de um cenário complexo, onde o popular muitas vezes paga a conta. E sempre foi assim, de certa forma. É que agora todo mundo tem que usar a calculadora para sobreviver, não tem jeito. No meio da última crise do mercado, por exemplo, a Cosac Naify fechou, a Companhia das Letras ficou mais comercial, mas surgiram novas editoras, como a Todavia e a Ubu, houve um avanço das editoras independentes, inclusive em prêmios literários. Jornais de literatura foram lançados, enquanto suplementos literários de jornais foram extintos. É uma gangorra, movida por números e por algum idealismo por trás, quero crer. E essa gangorra não pode parar. E não vai parar.

 “Narrar é um jeito de construir sentido em cima do que não tem, a vida, a existência.”

• “Contar uma história, e da melhor maneira” justifica, para o narrador de seu novo romance, as minúcias que envolvem uma produção audiovisual. Você enxerga a literatura da mesma maneira? Além de contar uma história, a literatura tem algum compromisso maior?
Sim. A minha escrita tem um compromisso com a forma, com a novidade. Encaro a literatura mais como manifestação artística do que como um trabalho meramente intelectual. Muitas vezes as pessoas encaram o escritor como intelectual, e não como um artista que responde aos mesmo ímpetos de um artista plástico ou um coreógrafo. Gosto do risco, da busca por novos temas, novas perspectivas, novos tipos de narradores. E é esse risco que empurra a história para a frente: a forma e o conteúdo surgem de mãos dadas, e como aliadas.

• Na página 138 é utilizada uma fábula de La Fontaine — A cigarra e a formiga — para discutir o ócio da arte e o pragmatismo do trabalho. A literatura pode ser trabalho? Encarar a literatura como ofício diminui seu valor artístico?
A arte é um trabalho, mas que funciona dentro de outra lógica, diferente da lógica capitalista de alta produtividade e de resposta a demandas mais pragmáticas. É um ofício que exige tempo, e tempo é uma mercadoria cara hoje em dia. A fábula entrou no livro na época em que o Temer assumiu a presidência, quando uma turma de inapetentes começou a chamar os artistas e intelectuais de vagabundos, toda aquela história de guerra à Lei Rouanet e às universidades, por exemplo. Todo mundo gosta de ler um livrinho na praia, escutar uma música no rádio, ver um filme no fim de semana. Mas esquece que nada dá em árvore. É uma incapacidade de entender o mundo a partir de uma ótica não capitalista, um vício por produção sem limites… Existem outros tempos, há ofícios que funcionam em outra chave, e isso precisa ser defendido.

• O personagem Zé Mário não gosta de críticos tentando achar pelo em ovo em suas produções cinematográficas. Quanto a você, Cafiero, qual sua relação com a crítica literária? Como enxerga esse ofício?
Acho a crítica importantíssima. Mas lamento que a crítica tenha se tornado sinônimo de resenha, em muitos casos. Como em muitos campos, a análise mais cuidadosa e embasada tem perdido espaço para a opinião pessoal. Ninguém aguenta mais ouvir tanta opinião. Sinto falta da curadoria, da seleção, da boa indicação, do garimpo de talentos. Isso vai ficando raro, escasso.

• O narrador fala da “masturbação criativa, nas delícias da pré-produção” de um filme. Quanto à produção literária, para você há espaço para improvisos ou se atém ao planejamento?
Não funciono com planejamento rígido e nada do que escrevo nasce a partir de algo estabelecido a priori. A necessidade de alguma forma de planejamento apareceu no meio do meu último livro, quando a história foi ficando complexa e comecei a sentir falta de um esquema, uma sumarização. Um exemplo: há um filme sendo rodado dentro do livro e precisei, a certa altura, fazer a escaleta do roteiro, inteirinha. Corria o risco de me perder nas duas histórias, até em termos de continuidade. Mas é tudo rabisco, porque a história se dá mesmo é no susto do processo, não tem jeito. Eu nunca sei como um conto vai acabar. O mesmo vale para os romances.

• As bibliotecas são apresentadas como instituições tão sagradas quanto a Igreja em seu novo romance. Você compartilha dessa visão do narrador? Qual sua relação com as bibliotecas?
Não tinha o costume de frequentar bibliotecas, sempre escrevi na clausura. Mas tive a experiência de escrever e pesquisar em bibliotecas durante uma bolsa em Lisboa. E meu último livro foi todo revisado na biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, porque estava morando bem perto. Tomei gosto. Graças às bibliotecas, passei a conseguir trabalhar fora de casa, e isso foi ótimo para minha rotina de escrita. Passear entre os livros, hoje, é um prazer.

• No livro, discute-se a necessidade de significar a realidade através de narrativas. Você acredita no potencial catártico da representação literária? A literatura pode nos fazer pessoas melhores?
As narrativas são importantes desde sempre, é o que o narrador diz no livro. Narrar é um jeito de construir sentido em cima do que não tem, a vida, a existência. Assim, é algo imprescindível, é o meio que o homem encontrou para suportar: narrar a própria vida, acompanhar as narrativas de outras pessoas, reais ou imaginárias. E a literatura, na minha opinião, é a herdeira direta da narrativa arcaica, oral, porque nela a palavra tem primazia, tem valor, como na época em que palavra era questão de honra. O narrador literário é o artífice medieval, é o marinheiro que traz histórias de longe, o camponês que preserva tradições. Não sei se faz as pessoas melhores, mas abre a existência para a alteridade, enriquece o dia, prepara para o diálogo. É, no mínimo, um instrumento de socialização, de paz. Eu acredito nisso.

“Eu acredito na literatura, em todas as suas formas e gêneros.”

• Lê-se, na página 254 de Espera passar o avião, “os profetas estão sempre aí, anunciando o fim”. As livrarias têm fechado, as vendas de livros e indicadores de leitura no Brasil são catastróficos. Como enxerga o futuro da literatura em nosso país?
É como disse anteriormente: uma gangorra. Perdas e ganhos. Não posso ser pessimista, comecei a ser publicado nessa década, com todos os sinais de crise já no ar. A literatura vai continuar sempre, não sei se como um nicho, como muitos dizem. Espero que não. Tem uma garotada leitora chegando, uma turma que enche as feiras e bienais. Vamos ver se eles se converterão em leitores com um repertório mais complexo, mais agudo. Precisamos ter esperança, a história é pendular. Eu acredito na literatura, em todas as suas formas e gêneros.

Espera passar o avião
Flavio Cafiero
Todavia
270 págs.
João Lucas Dusi

É autor do livro de contos O grito da borboleta (Penalux, 2019).

Rascunho