O que vocês vão ler, leitores e leitoras do Rascunho, é o que meu pai me ensinou e o que eu sempre faço, ou procuro fazer: produzi a entrevista que gostaria de ter concedido. Se vocês vão ler Roberto Gomes a falar, levem em conta que procurei extrair dele tudo que eu teria dito se fosse ele, mas não sou, todos sabem. Também o que me guiou neste bate-papo foi tentar proporcionar ao leitor uma prosa como se fosse uma conversa da realidade. Roberto Gomes interagiu comigo a partir do lançamento de seu romance Júlia. Mas também falou, instigado por mim, sobre a sua faceta de editor e ainda a respeito de sua performance como cronista do mais importante jornal do Paraná, e um dos maiores do Brasil, a Gazeta do Povo. Ainda: eu poderia inventar a coluna “Rascunho-Caras”, ou “Rascunho-Contigo”, e revelar que Roberto Gomes, catarinense que é, tomava banhos de rio com Vera Fischer (sim, a original). Mas isso não cabe neste espaço. Boa leitura.
• Júlia traz como personagem central uma figura histórica do Paraná, assim como Os dias do demônio também tratou de uma questão histórica. Outros romancistas paranaenses também mergulharam em questões históricas. Miguel Sanches Neto aproveitou a Colônia Cecília; Domingos Pellegrini recriou a origem de Londrina e a passagem de Prestes pelo estado. Em sua opinião, cabe, também, aos romancistas, dar corpo, e mesmo recuperar, e ainda recriar fatos que a nossa historiografia não dá conta?
Eu evitaria falar sobre o que “cabe aos romancistas”, pois isso poderia dar a impressão de que proponho uma tarefa prioritária aos que escrevem, algo como uma condição sem a qual não se faz boa literatura. Na verdade, os romancistas, se têm uma obrigação, é a de contar boas histórias que sejam bem escritas, sejam elas baseadas ou não em fatos históricos. No caso do romance Júlia, encontrei sua história em meio a uma pesquisa mais ampla que fazia sobre o século 19, em especial em acontecimentos relacionados de um modo ou outro ao período em que ocorre a Revolução Federalista, 1893-1895, o que me ocupa há muitos anos. Lá pelas tantas, reencontrei — ou me dei conta — de que a história de Júlia Maria da Costa, poeta nascida em Paranaguá, em 1844, mas que viveu desde os seis ou sete anos, na ilha de São Francisco, em Santa Catarina, até morrer em 1911, era uma espécie de síntese de vários temas que atravessam o século 19. O auge e o declínio da monarquia, as lutas dos republicanos, o fim da escravidão, mas também o aparecimento de uma nova figura de mulher, que é o grande mérito e a grande desgraça de Júlia Maria da Costa. Sofreu o que sofrem os pioneiros, aqueles que vivem antes de seu tempo.
• Antes desta pesquisa, Júlia já havia chamado a sua atenção?
Júlia da Costa já havia chamado minha atenção anteriormente. Destas coisas quase inexplicáveis: sempre que encontrava um poema seu ou uma referência a seu nome, me passava pela cabeça que ali havia algo que merecia atenção. Me parecia uma vida cheia de significados. Mas só quando a situei no contexto do século 19 é que entendi a dimensão que poderia adquirir sua história pessoal. Contar a sua vida era falar de todo um período histórico, não só catarinense e paranaense, mas também brasileiro.
• Mas voltando à primeira pergunta, não respondida ainda…
É verdade que de uns tempos para cá alguns escritores radicados no Paraná publicaram livros inspirados em fatos históricos. Além dos romances do Miguel Sanches [Um amor anarquista] e do Domingos Pellegrini [Terra vermelha], há o de José Angeli [A cidade de Alfredo Souza], publicado em primeira edição — desastrosa editorialmente, infelizmente — na década de 1970 e que é um belo romance. Foi reeditado recentemente. Isso me parece muito bom. Umas das dificuldades que encontrei, ao escrever Os dias do demônio — entre 1977 e 1987 — foi a falta de referências literárias, de um caminho já explorado. Depois de ler tudo que havia sobre a revolta dos posseiros em 1957, no sudoeste do Paraná, depois de visitar algumas vezes a região e entrevistar vários dos participantes da revolta, eu me sentia incapaz de iniciar o romance. É que me faltava o tipo humano, suas vestes, sua linguagem, seus modos de agir e reagir, etc. Levei muito tempo até achar a clave da história, um épico caboclo, como disse um crítico. Ou seja, quando um romancista como o Tabajara Ruas ou o Luiz Antonio de Assis Brasil, no Rio Grande do Sul, escreve romances históricos, eles contam com um background que vem de longe, desde o romance regionalista gaúcho, bem como da obra de Erico Verissimo, de Josué Guimarães, etc. Aqui, não havia esta tradição. É nisso que estamos trabalhando agora. Estamos fazendo neste momento alguma coisa desbravadora: transformar em ficção, em linguagem, a aventura humana que está escondida por detrás da vida em terras paranaenses.
• Mas algo especial em Júlia, não é mesmo?
No entanto, no caso de Júlia, esta terra é mais catarinense do que paranaense, o que, aliás, alimentou uma polêmica um tanto ridícula entre literatos do Paraná e de Santa Catarina lá pelos anos 1910, 1920. Seja como for, é uma história que, retratando o século 19, retrata de alguma forma tudo que se passa no resto do Brasil naquele período.
• E o lance do amor? Poderia esmiuçar a questão do amor no romance?
A origem deste romance — a origem literária, quero dizer — está neste encontro entre a minha curiosidade a seu respeito e um desejo que sempre alimentei de escrever o que poderia ser chamado de “romance de amor”. Me explico: eu alimentei, desde que comecei a escrever, entre outros projetos, três quase-manias. Um, era escrever uma sátira para retratar o Brasil: o resultado foi Alegres memórias de um cadáver. Depois, o projeto de escrever um épico; daí resultou Os dias do demônio. O terceiro destes projetos era o “romance de amor”. Eu gostaria de recuperar a arte de narrar uma grande paixão e as desilusões que costumam acompanhá-la. Neste sentido, a vida de Júlia da Costa foi um prato cheio.
• Qual a sua avaliação sobre a Júlia poeta?
Chama atenção em Júlia da Costa a qualidade de sua poesia. Não se trata de uma grande poeta, está claro, mas sua obra tem uma qualidade inegável, um refinamento raro, um domínio bastante elevado da composição poética e uma sensibilidade aguçadíssima. Num mundo em que a mulher era um ser de segunda classe, submissa ao mundo dos homens e vítima deste mundo, ela era ousada, independente, capaz de atitudes que eram tidas como extravagantes — por exemplo, pintar os cabelos, coisa que então só as prostitutas faziam, ou participar de polêmicas em jornais, igualando-se aos homens, com os quais discutiu temas da época — a escravidão, a república, a guerra do Paraguai, etc. Uma mulher com um espírito livre e indomável, que, no entanto, terminou vítima do grande sonho de um amor romântico, casada com um homem 30 anos mais velho do que ela e a quem não amava. Sem ter podido realizar seu sonho amoroso e sem ser amada, sua vida só poderia terminar em desgraça. Esta tragédia pessoal — que retrata a tragédia da mulher em geral no século 19 — é ao mesmo tempo a derrota e a grandeza da vida de Júlia.
• Você idealizou a Criar Edições na década de 1980, que ficou desativada em meados dos noventas e que ressurgiu no século 21. Como está a sua paixão, que é atividade de editor?
Editar é uma paixão e uma diversão antiga, mas acho que também nesta área já não há espaço para aventuras mais ou menos românticas. Hoje a situação editorial brasileira, se melhorou no que se refere à produção — toda feita em computadores, o que permite melhor qualidade e custos muito mais baixos — por outro piorou consideravelmente porque mudou o perfil das livrarias, da distribuição, dos livros editados e dos leitores. As livrarias pequenas e médias sofreram baixas enormes nos últimos anos — basta contar, em cada cidade, o número de livrarias que desapareceram. Ficaram as megastores, que vendem porcarias, só expõem best-sellers e auto-ajuda, e livros instantâneos, estes escritos por celebridades medíocres. As distribuidoras sumiram, perdem o papel que tiveram — não divulgam, só entregam pedidos. Os livros editados são oportunistas na maior parte e algumas editoras têm tanto poder que inviabilizam a atividade de empreendimentos menores, de maior risco. Sempre dissemos que a Criar Edições eram o “besouro voador”. Como se sabe, um besouro, segundo as leis da aerodinâmica, não pode voar. Mas voa. Hoje penso que os besouros já não podem voar.
• E a sua atuação como cronista quinzenal aos domingos na Gazeta do Povo? Isso te ajuda enquanto ficcionista? Te dá retorno? De que tipo?
Escrever crônicas quinzenais é algo que já faço, na Gazeta, há mais de onze anos. Fico impressionado com duas coisas. Uma, o diálogo com os leitores, que me escrevem e-mails, telefonam, me procuram, usam as crônicas em debates, em sala de aula, pregam nas paredes de faculdades e escolas, fazem circular entre amigos através de xerox ou anexadas a e-mails, etc. Outra, a quantidade de leitores que se alcança por meio do jornal e da internet, pois as crônicas estão disponíveis num site. É um número considerável de leitores, o que é um grande estímulo. Mas outro dado importante é que a crônica, tendo essa dupla natureza literária e jornalística, permite a discussão dos temas mais diversos, desde abordagens do cotidiano, dos fatos culturais, políticos, uma festa. Permite mesmo textos líricos e bastante sutis. Me parece que a crônica nos permite ser gostosamente irresponsáveis. Podemos falar de tudo, colocar tudo em questão, e conversar com um público que poucas vezes se aventura a ler livros. Mas, se não tem o hábito do livro, é capaz de apreciar um bom texto. Já são quase quatrocentos textos publicados e que já renderam um livro e até uma peça de teatro, O amor, seja como for, na qual reuni textos que falam dos desastres do amor. Foi encenada em Curitiba em 2007, pelo grupo Pé no Palco.