“Não tem lugar de fala na literatura”

Bernardo Carvalho fala sobre seu mais recente romance, "O último gozo do mundo", e de como a literatura brasileira tem se afastado de sua capacidade de retratar contradições
Bernardo Carvalho, autor de “O último gozo do mundo”
01/08/2021

O último gozo do mundo, novo romance de Bernardo Carvalho, investiga um futuro pós-pandemia a partir da memória ou da sua ausência. Acompanhando a viagem de uma mãe e seu filho ao encontro de um vidente, o autor de Simpatia pelo demônio coloca o leitor em um furacão de impressões e paranoias a respeito de algo que ainda não atingimos: o fim da Covid-19. Talvez seu livro mais real, ao lado de Nove noites, de 2002, O último gozo do mundo esgarça a noção de realidade e ficção por meio de um processo de esgotamento de ambos.

Em entrevista ao Rascunho, Bernardo Carvalho discute os rumos da literatura, que parece ter se distanciado da importante capacidade de cair em contradição, e analisa o papel do Brasil como vetor não só do vírus, mas também de uma ignorância acachapante — que revela, antes de tudo, as nuances da personalidade de um povo perdido em sua própria história.

• Você sempre elogiou a literatura que usa da invenção para dar forma à narrativa, como se transcendesse a memória e a experiência. Já em O último gozo do mundo, parece ter mergulhado na realidade, na sua experiência de confinamento. Por que essa mudança?
É inevitável: não dá para fazer literatura se não tiver experiência. E acho que com a pandemia houve uma coincidência, para mim pelo menos, de ter acontecido um confinamento junto com o dispositivo da internet. A personagem principal do livro faz uma tese na qual diz que a internet não tem memória, que o passado é inalienável; de alguma forma, por estar sempre presente mas também obstruído, não existe mais passado. Existe um aqui presente. No meu caso, também houve o contato com gente muito próxima que começou a sofrer de demência senil, por exemplo, e esse negócio me perturbou demais. É uma experiência que eu não fazia ideia. Achava que a gente ficava velho e tudo bem. E não é. É uma situação em que a perda da memória não acarreta liberdade de imaginação, ao contrário, contamina a imaginação para sempre. A imaginação é reduzida à alucinação, ao delírio, ao pesadelo. Eu era um pouco militante dessa literatura de invenção, e não sei o quê, mas não existe memória sem imaginação. Como não existe imaginação sem memória. As duas estão interligadas. E outra coisa que também me ficou muito clara é a estratégia de um governo como o atual: por que ele precisa obliterar a memória? Porque ele precisa que o futuro seja alucinação, pesadelo, e que não possa haver projeção, projeto de futuro. E para isso é muito fácil, basta você embaralhar a memória, destruindo a possibilidade de futuro. Aí, então, essas coisas todas foram se encaminhando e se entrecruzando. O livro é muito alegórico. De um lado você pode ler como uma história da personagem e do filho, mas também como uma alegoria de Brasil. E o Brasil tem muito essa ideia, recorrente, de uma espécie de crença num messianismo, quer dizer, você não tem memória — um país com memória curtíssima, no qual se esquece tudo imediatamente. E isso aí se desdobra numa espécie de redenção messiânica que é sempre alucinação, que é sempre pesadelo, delírio. Essas coisas começaram a me incomodar muito e no confinamento elas ficaram muito concentradas.

• A figura do vidente representa muito bem essa ideia da alucinação. Ele, por ser completamente desmemoriado, tem o futuro que bem entende. Como surgiu esse personagem?
Acho que há várias leituras, quer dizer, não está claro: ele pode ser uma vítima — pode de fato ter perdido a memória e projetar no futuro o que as pessoas passam a interpretar como vidência —, mas também pode ser um simples impostor, um cabotino. Existe essa duplicidade, um messianismo e uma vidência de alguém que pode ser, ao mesmo tempo, cabotino e vítima. O próprio cara é vítima, mas também traidor: um negro funcional para o racismo — coisa que é superpresente no Brasil, e fala muito sobre o que temos aqui: essa tentativa de negar o racismo. É uma armadilha. Você diz “somos todos iguais, não somos racistas”, mas isso só perpetua o racismo. Acho que esse personagem está ali numa espécie de cruzamento de todas essas coisas. Nem me lembro como é que surgiu. O livro é resultado de uma encomenda. Um produtor de cinema que no início da pandemia me pediu para escrever imediatamente depois da quarentena e, muito rápido, descobri que o que estava ali, muito urgente, era a impossibilidade de imaginar, a impossibilidade de futuro. O que a pandemia me trouxe ficou mais candente. Imaginei, vou tentar criar uma semidistopia cujo tema seja a impossibilidade de imaginação, e o vidente acabou incorporando isso. Ele encarna a impossibilidade de imaginar o futuro ligada à perda da memória. Acho que ele é superalegórico num certo sentido.

Bernardo Carvalho, autor de “O último gozo do mundo”

“A literatura está se tornando uma representação de um mundo feito de asserções cegas.”

• Num papo com o crítico Manuel da Costa Pinto você comentou que para resistir à realidade era preciso se rebaixar a ela. Essa lógica se tornou mais potente agora com a pandemia?
O grande realismo que surgiu na modernidade, se começar com Dostoiévski ou mesmo Machado de Assis, é um realismo todo quebrado, de contradição. Um realismo em que você tem a afirmação e dúvida, a afirmação e a contradição. O que acho que aconteceu com a gente — uma pequena tragédia nas artes em geral — é que esse realismo foi sendo reduzido a uma representação unívoca. E essa representação se tornou como se fosse a asserção do autor, uma afirmação, uma declaração — política, de posição, de posicionamento. O que se perdeu foi a realidade, porque a realidade é contradição. A realidade tem sido representada como se fosse palavra de ordem, e isso é não só muito pobre esteticamente como uma perda muito grande em comparação ao projeto de realismo da modernidade. Mas, mais do que isso, é um suicídio. É avançar em uma incapacidade de leitura e compreensão do real. É um mundo em que a morte não existe, em que o mal não existe — o mal está sempre no outro, nunca em você. É uma impossibilidade você carregar o mal em si, já que você é uma pessoa bem delineada à própria identidade, que tem um controle muito nítido. É uma falsidade. Não existe isso. Não existe identidade, a identidade é uma convenção. O que existe são seres de subjetividade muito porosa, muito quebradiços e [de identidades] sujeitas ao entorno e às relações. Essa ideia de “eu nunca vou ser Hitler”, ou “eu nunca sou racista”, ou “eu nunca faço mal”, é, justamente, a possibilidade de perpetuação do mal, do nazismo, de tudo. Porque nunca está em você. É estranho porque está em alguém, mas em você não. Os grupos identitários se formam assim, projetando o mal no outro. O mal está sempre do lado de fora. E a literatura está se pondo a serviço da ideia de que o mal é o outro, nunca quem está escrevendo. A literatura é reduzida a essa asserção. O bacana do realismo, e em Dostoiévski isso é muito claro, é que o cara se abre, torna-se permeável à contradição, embora tenha todas as ideias dele. A contradição atravessa o livro a ponto de destruir a própria identidade de quem está falando. Isso é uma conquista muito grande da literatura ocidental moderna, e perder isso é uma pena. É uma pena e é um suicídio, como disse, porque a literatura está se tornando uma representação de um mundo feito de asserções cegas.

• No curso que ministrou em Berlim, você falou muito sobre o desejo contra a identidade — que parece sintetizar a ideia central do seu livro. Como foi essa experiência?
Dei aulas no Departamento de Literatura Comparada da Freie Universität, importante em Berlim, em uma cátedra para escritores estrangeiros. A cada seis meses eles convidavam um escritor estrangeiro para dar um seminário, o que acabou na pandemia. Tive sorte por ser o último presencial. Eu estava muito nervoso, tinha que propor um tema e comecei a pensar nas coisas que estavam mais me intrigando, mais me questionando. O desejo representando aquilo que você traz em si, mas não domina, o inconsciente, as coisas que te atravessam — sem que você queira ser atravessado por elas —, quer dizer, uma identidade muito menos rígida e delineada. O desejo não permite a ideia de uma identidade fixa. É a identidade como uma convenção. Propus o tema e eles acharam estranhíssimo, ficaram muito intrigados, desconfiados. Porque a Freie Universität, nas humanidades, é muito esquerda. Os alunos são muito engajados nessas lutas identitárias, de minorias, e tudo mais. Eles estavam desconfiados de eu ser um cara de direita, um negócio assim. Ficaram com medo. Então, fiz uma espécie de resumo e fui para lá dar essa aula. Atraiu muita gente, aparentemente, foi um curso muito popular — tinha mais de 50 alunos, o que é bastante. Mas começou o curso e logo já se iniciou uma espécie de guerra civil entre a gente. As aulas eram superviolentas, de certa forma, na reação dos alunos. Criou-se uma dinâmica muito interessante, na verdade, porque levei a ideia de contradição para dentro do curso. Eles foram aprendendo, e eu também. A gente foi aprendendo em guerra. Houve um monte de momentos ridículos, sobretudo de uma coisa muito dogmática da parte deles. Li com eles a introdução do livro O erotismo, do francês Georges Bataille, que é um ensaio no qual ele fala em sexo com a mulher, e decapitar a mulher como em um ritual de sacrifício. As pessoas ficaram enlouquecidas porque só conseguiam ler ao pé da letra, então não tinha como entrar a fundo no que o autor estava querendo dizer. Essa aula, por exemplo, foi terrível. Acabou muito mal. Mas, em geral, era essa guerra. Essa disputa. No final, eles entenderam. Talvez nem todos, mas muitos sim. Eu dizia para eles o seguinte: “Estou com vocês. Essas lutas que vocês estão lutando eu também quero lutar. Acho que tem um lado da literatura que vocês não estão percebendo, que vocês vão perder, e é esse lado que estou trazendo aqui para a gente tentar entender juntos”. A condição que me deu a possibilidade de ministrar esse seminário, no fim das contas, e que pudesse haver esse diálogo — ainda que de forma muito belicosa —, é que sou gay. Anunciei logo de saída, e me abriu portas. Se eu fosse branco, heterossexual, esse curso não poderia ter acontecido. Isso mostra um pouco a fragilidade desses discursos, porque eles acabam impossibilitando a própria ideia de reflexão e de pensamentos baseados em contradições. Por causa dessas fragilidades, acho que surge um oportunismo da direita desautorizar esses movimentos — qualquer luta libertária, emancipatória —, baseada na eventual burrice desse discurso. O que é interessante é que a gente possa, dentro desse discurso, introduzir a contradição e conseguir ter embates que não sejam dogmáticos, sem cair na coisa da direita desautorizar, inteiramente, essas lutas.

“O livro que te confronta com essas contradições, com o mal na gente, é um livro com muito pouca chance de ter repercussão mercadológica.”

• Nessa questão de identidade e discurso, me veio à mente o lugar de fala. Esse conceito pode transformar a literatura em um espaço limitado de criação? Não pode cercear a criatividade e a liberdade da ficção?
Acho que não tem lugar de fala na literatura. Não é como um jornalista que está escrevendo um ensaio ou um artigo em que está defendendo uma posição. O interessante é a literatura como uma espécie de abertura para o mundo, quer dizer, em que tudo cabe, tudo se confronta, tudo se choca. E você acaba ali com um estado de perplexidade diante de uma explosão que é o livro. Então, você lê Dostoiévski e não sabe exatamente onde está a razão — tudo é certo e tudo é errado. A ideia de lugar de fala se dissipa. “Ah, o cara é russo, branco, cristão”, mas não importa, porque ele está lidando com as contradições, e isso é que é importante. A ideia de lugar de fala como expressão direta do autor tem a ver com uma concepção muito delineada de quem ele é e que lugar esse autor ocupa na sociedade — se esse cara representa tal coisa que você conhece. Você tem que reconhecer previamente. O bacana na literatura é você poder quebrar essa conexão entre representações e coisas que já estão predefinidas. A coisa mais genial da literatura é, de repente, você se deparar com representações de coisas inconcebíveis antes daquelas representações. Elas não são meras ilustrações de lugares que já estão predeterminados na cabeça das pessoas pelas ciências sociais, sociologia, o que seja. Então, acho que não cabe muito essa coisa de lugar de fala na literatura. É meio ridículo. É um negócio que não deveria nem ser discutido. Agora, tem uma coisa muito interessante do lugar de fala se olhar para ele de uma forma mais inteligente: é confrontar o branco que nomeia o outro — é sempre o branco que nomeia quem é o outro, quem é o exótico. Confrontar com uma relatividade que é insuportável para ele: “Não acredito em raça, mas se você impuser uma raça que você inventou, isso aí vai de volta”. A ideia do lugar de fala funcionar como o espelho reverso, uma coisa de você jogar de volta o que o cara está impondo em cima de você, acho interessante. Não sou negro, mas tenho experiência de autor brasileiro na Europa. A ideia de lugar de fala burra me constrange, pois ela me obriga a funcionar dentro de um limite de possibilidades que eles atribuem a um autor vindo de onde eu venho. Se você — sendo brasileiro, reconhecido como tal — discute com um alemão, por exemplo, e começa a dizer coisas que não se encaixam com o que esse cara espera de alguém vindo do Brasil, você desaparece, você é aniquilado. Não tem discussão, ele para de te ouvir, nem leva em consideração o que você está dizendo. Não é o lugar de fala que determina os meus limites como brasileiro, e isso meu interlocutor tem que encarar. Ele me impor limites faz parte, justamente, dos limites que ele não quer ver em si mesmo. Acho que tem essas duas coisas. Tem alguma coisa interessante nessa coisa do lugar de fala como reação, como vingança do racismo e dos preconceitos, mas acho que na literatura é, realmente, muito empobrecedor. Não faz o menor sentido você ler um autor baseado em quem ele é, porque o que ele está escrevendo — embora seja ele também — é outra coisa, não é uma simples asserção, não é uma defesa de tese, não é uma simples ilustração.

• Você não costuma explorar aquele que seria o modus operandi que se espera de um autor brasileiro — a não ser no Nove noites, talvez, no qual trata da visão do estrangeiro sobre o povo originário. Ao não atender essa demanda, acha que acaba por fechar portas na Europa?
É muito ambíguo. Acho que todos os autores brasileiros têm problemas com publicação fora do país. Isso tem a ver, sim, com uma atribuição de uma identidade por esse centro cultural, intelectual, ocidental — e não só ocidental, porque se for para a China vai ser a mesma coisa. O Brasil acabou sendo visto como um país não literário, e isso é muito interessante quando se é escritor. Essa é uma das armadilhas das identidades e das imposições de identidade. O Brasil — ao contrário da Argentina, do México, de Cuba — é considerado um país não literário, inclusive dentro do mundo hispânico. Na Espanha não funciona escritor brasileiro porque ele é, a princípio, vulgar. É uma literatura vulgar e atrasada, pouco sofisticada, de representações rurais. Não que isso não seja genial. Guimarães Rosa não tem nada a ver com isso. Mas essa é a ideia de uma literatura que parou no tempo, que ficou atrasada e que não se recupera, que não tem nada a dizer — e que está desautorizada intelectualmente. Isso é que é interessante, porque os argentinos não estão desautorizados intelectualmente, mas os brasileiros estão. Não sei de onde vem isso. Um pouco deve ser culpa da gente, mas tem uma imposição, uma camisa de força, do que se espera de um escritor brasileiro. E o que é ambíguo para mim é que na França, que é um lugar que sempre funcionou mais ou menos bem para mim, ando meio que num limite, numa coisa delicada porque às vezes funciona e às vezes não. Quando não funciona, você percebe um preconceito. Tem uma predeterminação do que pode aquele escritor e, se você ultrapassa aquilo, para o bem e para o mal, você se torna invisível. Há uma questão de identidade no cerne do Nove noites, que você comentou. O personagem é um antropólogo meio arrogante, muito ambicioso e muito brilhante, que vem estudar os índios brasileiros, como se fossem um simples objeto. Ele acaba contaminado e destruído por esse objeto de estudo. Quer dizer, tem uma contaminação da razão por esse próprio objeto. Então, isso aí discute exatamente o lugar desse cara que vai determinar quem são esses índios, que vai colocar num lugar internacional de identidade, de especificidades daquela etnia — é uma etnia que está em vias de extinção —, mas a razão acaba fraquejando quando ele topa entrar em contato com esse objeto de estudo. O livro tem um núcleo muito explosivo dessa impossibilidade de relação com o outro quando é para valer, e a questão de o outro também trazer o mal. O contato pode ser uma coisa suicida. Essas são as coisas que interessam. A questão da identidade é uma coisa que me interessa muito desde meu primeiro livro [Aberração, de 1993], porque acho que tem um negócio aí de conversão, de fragilidade. Foi curioso que no mundo aconteceu de as identidades virarem quase um dogma. Hoje, identidade é natureza. Ninguém questiona a ideia de identidade, como se a identidade fosse Deus, uma coisa inquestionável; para mim, desde o meu primeiro livro, a ideia era justamente pôr as identidades em dúvida — identidades nacionais, individuais, sexuais.

• Alguns personagens que aparecem nos contos do Aberração ressurgem em outros de seus livros, como Reprodução e Simpatia pelo demônio. Isso faz parte de um projeto literário?
Não. Depois de terminar Simpatia pelo demônio, que foi escrito em uma espécie de surto, me dei conta de que um dos personagens principais era claramente o personagem do primeiro conto de Aberração. Essa conexão, para mim, foi totalmente inconsciente. Mais do que um projeto, acho que tem a ver com uma compulsão, uma pulsão que me leva a tratar de alguns temas. Nesse caso tem a ideia do mal, da contradição interna, dos desejos como contradição. É um pensamento meio cristão, mas acho interessante: o desejo ligado ao mal. Isso também me interessa porque você não se livra do mal tão facilmente. O mal está em nós. Acho que tem um projeto civilizatório na ideia de aceitar que o mal está dentro de você, e não no outro. Se todo mundo topa isso, existiria responsabilidade e culpa pelos próprios atos, que acho que é o projeto bíblico do cristianismo — você levar a culpa consigo. Aí, o que a igreja fez foi desvirtuar isso e dizer: “Vai em frente que a gente assume a culpa para você”. Acho que a igreja liberou o homem para fazer o que ele bem entendesse, os horrores todos: “Vem aqui, se confessa, a gente dá uma bênção e você vai matando por aí”.

• É como se terceirizasse a ideia do mal.
Exatamente. E é por isso que deu certo. Na Bíblia, a ideia do Caim é deixar o homem vagar pelo mundo com o fardo da culpa. O que aconteceu, e o Dostoiévski fala isso, é que o homem não aguentou esse fardo. Era pesado demais. O que eu acho é que a literatura pode trazer essa ideia de volta. E o que é ruim na coisa identitária, na coisa do mercado, é que estão tentando fazer a literatura ser o contrário, ser mais como a igreja: aliviar da responsabilidade que você deveria ter. O livro que te confronta com essas contradições, com o mal na gente, é um livro com muito pouca chance de ter repercussão mercadológica, porque ele não agrada, ele repele. A internet é isso, também. Parece que você vai lidar com o outro, mas você cancela o outro. Você cria uma página de Facebook que é uma página ideal da imagem que você quer ter. É uma relação narcísica com o mundo. Tudo isso como a igreja, que é para aliviar você desse fardo insuportável de carregar. O que acho incrível na literatura moderna, começando por Dostoiévski, é pôr esse fardo nas suas costas e fazer você lidar com ele de uma forma possível, sem querer dar um tapinha na sua cabeça e falar: “Vai matando todo mundo”. A relação desse governo de hoje com a pandemia: ele não tem nem a formalidade da convenção de um governo eleito de se responsabilizar pelos seus atos. Não é à toa que a tentativa de transformar o Brasil numa espécie de teocracia tem a ver com isso. É a ideia de ninguém se responsabilizar. Ninguém tem culpa de nada. Acho que a literatura pode estar tocando esse ponto. Agora, para isso, ela tem que se livrar da ideia de ser boa dependendo das vendas, de ser considerada boa literatura atrelada ao mercado. É um contrassenso.

• Nesse sentido, lembro da polêmica, na Flip de 2016, quando você falou “foda-se o leitor”. As pessoas não entenderam a questão do não produzir uma literatura que seja sob demanda.
Exatamente. É produzir uma literatura que traga contradição para dentro do negócio. E o que está se tentando fazer hoje, ao ficar escandalizado com essa frase, é transformar o autor numa espécie de empresa em que o leitor é cliente. Ele paga se agrada e, se não agrada, devolve. Essa lógica aplicada às artes, à literatura, é muito perversa porque funciona mais como igreja, como bênção, como essa gente que comprava um lugar no céu. É fazer a literatura como isso aí. Acho péssimo.

• O último gozo do mundo, Reprodução e Simpatia pelo demônio formam uma espécie de tríade que resume muito do pensamento conservador, da forma que opera o bolsonarismo. De que forma você identificou e transpôs para a literatura a centelha desse novo fascismo?
Para mim, isso sempre foi muito óbvio desde o início. Participei de três manifestações em 2013. A primeira foi encantadora, mas era um negócio não brasileiro. Era uma classe média alta, uma coisa estranha. Era de esquerda, mas todo mundo bonitinho. Aí, o negócio foi degringolando com a entrada de uma direita muito assustadora e bárbara. Me lembro de que, na terceira, era uma espécie de comemoração porque os garotos tinham conseguido que as reivindicações fossem atendidas, mas já estavam lá esses neofascistas fazendo um elogio da Arábia Saudita. Tinha gente com faixa da Arábia Saudita porque lá ladrão perde a mão. Tinha uma espécie de slogan que falava: “Arábia Saudita sim. Brasil, não”. Era um negócio tão desvairado. Acho que já estava muito claro para mim. Até sobre a eleição do Bolsonaro, eu tinha certeza de que aquilo ia acontecer. Todo mundo dizia [para mim]: “Você é burro, ignorante. Você não entende nada, não é cientista social”. Esse negócio foi tão chocante porque para mim era meio óbvio, era um negócio que estava sendo gestado. Acho que não era uma centelha, era algo que estava claro e a gente não queria ver. É estranha, no brasileiro, essa incapacidade de criticar o país. A ideia de você ser pessimista é uma heresia. Tem que ser otimista. O otimismo é que é o bem. A gente está vendo que o otimismo não é o bem. Não adianta as pessoas reiterarem como se fosse uma coisa de autoconvencimento: o Brasil é o melhor lugar do mundo. Não é. E se foi, para quem estava tocando bossa nova em Ipanema, era para aquela pessoa — os outros caras, na periferia, no morro, estavam sendo assassinados. Se você pegar a história do Brasil — saiu uma biografia muito boa do Euclides da Cunha pela Todavia, e conheço pouco do início da República —, é uma loucura, porque aquilo ali era só bolsonarismo. O Brasil começou com um idealismo totalmente bolsonarista. A República começou desse jeito. Era um terror, uma gente horrorosa, uma porcaria de pensamento, de projeto de país. Tudo errado. É estranho a gente não querer ver. As pessoas inteligentes e do bem tentam disfarçar, revisitar a história do Brasil edulcorada. Isso é muito perturbador. Tudo o que é negativo no Brasil é ruim. Eles não estão entendendo: é o contrário. O negativo é contradição, é para o bem, é para andar para frente. É para melhorar. Acho que isso é uma perversão da gente, da identidade brasileira — se é que isso existe. Mas a gente pode cair de novo nessa armadilha porque agora são várias frentes funcionando a favor desse horror que vivemos. Tem jurista, juiz, médico, advogado, cada um fazendo a sua parte a favor desse desastre. E parece que a crítica não funciona, ela fica girando em falso, porque não pode pegar pesado — o pegar pesado não tem eco. Então, de tudo isso, acho que não foi uma centelha, mas um negócio que me incomoda muito no Brasil. É engraçado: esses dias acabei lendo na internet, não sei o porquê, um artigo de um cara acadêmico me desautorizando como escritor e me associando com José de Alencar. Ele dizia que, como José de Alencar, eu não suportava o Brasil, eu não queria estar aqui, que eu queria estar na Europa. A minha literatura era de um cara brasileiro que não se conforma com o próprio país. É uma distorção do entendimento da coisa. Se eu me incomodasse e não quisesse estar no país, eu não estava fazendo o que estou fazendo. Eu criaria uma cena idílica em que tudo está lindo. É muito estranha essa relação com o negativo no Brasil, a incapacidade de lidar com contradições.

“Não adianta as pessoas reiterarem como se fosse uma coisa de autoconvencimento: o Brasil é o melhor lugar do mundo. Não é.”

• O último gozo do mundo traz o pessimismo como fonte de movimento. A impressão é que seus personagens saem da inação graças ao impulso da insatisfação e do não pertencer. Por que essa escolha num país tão empregado de um otimismo cabotino?
Não acho que seja inação. É um movimento permanente, mas é um movimento, como você disse, de insatisfação. E esse movimento é sobretudo de não pertencimento. Acho que a ideia de pertencimento, de você assumir uma identidade, significa que você está satisfeito no grupo, que você está apaziguado, que aquele é seu lugar. O que acho interessante na literatura, e nas artes em geral, é você se sentir mal no seu lugar, para que haja movimento, para que haja pensamento, para que haja reflexão e tudo mais. É contraditório, porque é lógico que sinto o maior prazer nisso também, de estar onde estou. Não é que estou totalmente com desprazer… De alguma forma, não sou brasileiro, mas sou completamente brasileiro. Não sou outra coisa. Sou absolutamente brasileiro. Não sou francês, não sou português. Não tenho nada a ver com Portugal, nada a ver com a França, embora tenha. Essa ideia de você viver com a contradição é muito importante, e com essa ideia de não pertencimento, essa ideia de você não relaxar para dizer “está tudo bem, encontrei o meu lugar e é o melhor lugar do mundo”, sabe? Isso é importante. O que incomoda talvez seja essa ideia de elogio para o não pertencer, para um exílio na sua própria terra. Isso é um clichê, mas é muito importante. Não estou dizendo que eu sou [exilado], mas citei Dostoiévski — esse aí é um cara que não cabe na Rússia e não tem escritor mais russo do que ele, mas ele não cabe ali de jeito nenhum; tem que se exilar, ao mesmo tempo é uma idealização da Rússia, uma noção da miséria e do horror daquele lugar. Todos os outros grandes escritores têm isso. Nenhum tem uma relação com a pátria totalmente tranquila, pelo menos os escritores que adoro. Você pega um Kafka, que é um cara que adoro, não tem mais não pertencimento do que aquilo: em Praga, escrevendo em alemão, judeu. Tudo no lugar errado. O próprio Fernando Pessoa, que dizem ter a alma do português, mas é a alma do português totalmente em contradição, tanto que ele precisa dizer que “a minha pátria é a língua”. Aquele lugar não dá pra ele.

• Kafka e Pessoa têm uma coisa em comum: não se encaixam no próprio corpo. O primeiro pela pessoa em si, o segundo na questão dos heterônimos. Eles se cruzam, não?
Totalmente. Eles não cabem no próprio corpo, e isso põe em questão a própria noção de identidade. E aí tem um cara que hoje é elogiado pelos movimentos identitários, que é o James Baldwin, e é incrível: se você vai ler os ensaios, percebe que tem uma guerra civil dentro do próprio corpo dele — ele está em desacordo com tudo, não cabe em lugar algum. Na comunidade negra ele não cabe porque é gay, na comunidade americana ele não cabe porque é negro. E aí ele vai parar na França, mas é um desacordo, um desacerto total. Aqui no Brasil tem um cara muito interessante, que é o Mário de Andrade, em desacordo completo com o próprio corpo — com a história de ser gay, de ser feio pra caramba. Tem um negócio ali que é incrível, uma loucura para encontrar uma identidade nacional que ele não acha de jeito nenhum, a ponto de escrever Macunaíma, o herói sem nenhum caráter — fazendo pesquisa, indo para a Amazônia, tentando achar uma âncora identitária nacional e não conseguindo. Acho isso muito rico, essa cosia dos heterônimos, da multiplicação das identidades.

• Durante muito tempo a sexualidade do Mário de Andrade foi deslegitimada, como se o fato de ele ser gay invalidasse toda a obra dele.
E você pega o Oswald de Andrade, que é uma espécie de contraponto. É o cara heterossexual como se fosse uma coisa libertária e poderosa, mas, ao mesmo tempo, está escamoteando muitas outras coisas, como um conservadorismo incrível, com um lugar de fala que, nesse caso, de interesse de classe social. Isso não desautoriza toda a obra, mas coloca a obra em perspectiva. O Oswald era muito mais assertivo em fechar uma identidade nacional com base num slogan, “somos todos antropófagos”. Eu não sou, entendeu? E sou brasileiro, e estou cheio de contradições. Essa ideia da antropofagia, ela é muito fácil, muito narcisista. Ela fala “eu vou devorar o outro”, é potente. Todo mundo quer ter essa ideia. Ninguém quer parecer um país fodido. A ideia de “somos todos antropófagos” em um país fodido e analfabeto, miserável, escravocrata, é muito potente para as classes mais poderosas porque te dá um alívio. É uma espécie de Facebook. Tem um negócio narcísico ali. E o Mário de Andrade, ao contrário, está num lugar do coitado porque é um cara lidando mal e porcamente com aquelas contradições todas. E isso está expresso na obra. Acho que no confronto desses dois modernismos, do Oswald e do Mário, o do Mário me parece muito mais interessante, muito mais reflexivo, muito mais introspectivo e é menos publicitário e narcísico. A gente, claro, pegou o caminho da positividade que é o da asserção heterossexual. Não condeno nada. No Oswald tem coisas geniais, incríveis. Acho que esses personagens mais cheios de conflitos, como o Fernando Pessoa, Kafka, Mário de Andrade, são incríveis. As obras desses caras são incríveis porque, justamente, partem dessas identidades que são totalmente quebradas. E essa experiência é muito rica, é muito permeável. A contradição está presente o tempo inteiro.

• A busca por uma identidade nacional me faz pensar em Torto arado, que se tornou um fenômeno avassalador. É importante termos fenômenos literários para legitimação do papel do escritor ou para a formação de novos leitores?
Acho que não é importante. Não li o livro, então não sei. Tem muita gente que diz que o livro é incrível, mas eu não sei. Acho que ele vem suprir uma falta que é, justamente, o emblema identitário. Não estou dizendo que está reduzido a isso, mas ele tem um papel dentro desse universo de um discurso da literatura como representação da experiência do autor — que não é a minha.

• O começo do seu livro fala em “o fim do mundo travestido de reinauguração”. Esse movimento de reinauguração não seria um reflexo do brasileiro de não conseguir lidar com a tragédia e o próprio otimismo compulsório, que faz parte da identidade do povo?
Acho que é isso: converter tudo em positividade, mas carregando um negócio todo quebrado. A própria coisa da escravidão no Brasil é uma loucura, e tem um discurso por aí de reinterpretação como um paraíso da miscigenação. Tem uma tradição de autoengano no Brasil que é assustadora. E até com gente legal. A maioria dos meus amigos é para cima, para frente, mas diz “se fosse viver como você, eu não acordava, me matava”. Preciso ter alegria, mas tenho alegria na contradição. Não estou me matando, não vou me suicidar nem nada. Os escritores de que gosto muito, Kafka, Thomas Bernhard, Beckett, são escritores cuja obra é, aparentemente, muito sombria, mas que tem o riso dentro. Todos os três são escritores que as pessoas que os conheceram liam gargalhando. Você produz uma coisa que parece o fim do mundo, que não tem saída, mas o próprio ato de produzir aquilo é tão potente, tão forte; é a própria contradição da obra. No Kafka, isso é claro. Como é que um cara naquela situação produz uma obra daquela dimensão? É uma força que ninguém que está morrendo, pessimista ou massacrado pelo tempo, tem. Aquilo demanda uma força inédita. A mesma coisa com o Thomas Bernhard e o Beckett. Você não pode associar literatura diretamente ao que você supõe que ela está representando. A representação da literatura, do que ela está fazendo, não é o autor, não é o lugar do autor.

“Acho que esses personagens mais cheios de conflitos, como o Fernando Pessoa, Kafka, Mário de Andrade, são incríveis.”

• Essa coisa de o brasileiro não conseguir lidar com as próprias chagas não explica um pouco o porquê de produzirmos um humor, às vezes, tão rasteiro, como se o riso escondesse a tragédia?
Essa infantilidade vem da incapacidade de lidar com a morte, da incapacidade de lidar com o outro, mas o outro como um negócio insuportável. Não o outro bonitinho, mas esse outro radical. Isso é muito infantil e contribui um pouco para aquilo que eu dizia da ideia de o Brasil não ser considerado um país literário. Tem um pouco da imposição de fora, mas tem uma culpa de a gente ser uma cultura que está muito baseada numa infantilidade. O humor melhorou muito, tem umas coisas que são interessantes por aqui, mas durante muito tempo houve um humor muito infantilizado. Lógico que há exceções. E isso é curioso porque no Brasil não tem tragédia, não tem representação da tragédia. É como se a tragédia fosse tão grande, mas tão grande, que fosse impossível de ser representada e a gente tivesse que lidar de uma forma paliativa, com gracinhas que são mais infantilizadas. Essa incapacidade de lidar com a morte como representação é muito interessante, mas aqui não dá, não tem tragédia. No Nelson Rodrigues, por exemplo, que é um cara que acho fabuloso, a tragédia é de uma inteligência, mas passa por um lugar que é o lugar da impossibilidade da tragédia. Ela é um nível acima, um escracho da tragédia.

• Tem um cinismo que, por sinal, já vimos em Dom Casmurro, Memórias póstumas de Brás Cubas…
Não dá para acreditar na tragédia. Tem um ponto abaixo, que é a infantilidade, e tem um ponto acima, que é o cinismo — presente em Machado, Nelson Rodrigues.

• E não é essa mesma infantilidade — a incapacidade de lidar com o diferente e o diverso — que permite um presidente mandar um jornalista calar a boca?
Claro. No caso do governo, acho que ele [Jair Bolsonaro] não tem noção da responsabilidade. Ele foi eleito e assumiu um lugar de responsabilidade, e que pressupõe um monte de papéis, funções e atribuições. Ele não tem ideia da culpa e da responsabilidade. Ele foi eleito sei-lá-para-quê, para resolver as coisas dele, salvar os filhos, salvar a própria pele. Ele não foi eleito para responder a um apelo e isso é muito estranho e muito particular. Nas democracias ocidentais isso não existe.

• É como a parábola das formigas que você cita n’O último gozo do mundo, em que fazem o que estão fazendo porque não sabem o que fazer. Isso revela um pouco da natureza violenta do atual governo?
Revela a natureza violenta, mas revela, principalmente, uma natureza suicida. Parece que a gente tem consciência do que está acontecendo, de que a gente tem consciência de que está caminhando para um precipício, mas a gente continua caminhando porque é impossível dar meia-volta. A impossibilidade de dar meia-volta, mesmo com consciência, é o que deveria dar a ideia de tragédia, mas não é o que acontece. De fato, é uma sociedade muito estranha e suicida.

O último gozo do mundo
Bernardo Carvalho
Companhia das Letras
144 págs.
Jonatan Silva

É jornalista e escritor, autor de O estado das coisas e Histórias mínimas.

Rascunho