“Não sou missionário de nada”

Carlos Nejar hoje se diz acima dos gêneros literários. Defende seu único espaço, o de ser livre em relação à existência e à literatura
Carlos Nejar: “Num mundo morto, aprendi sobre a ressurreição.”
01/08/2001

Hoje a poesia é, ao mesmo tempo, procura e encontro de Deus, para que o homem possa se ligar e até compreender o mistério do sublime, da divindade. “Depois do meu encontro com o Deus vivo, a minha criação tomou uma nova dimensão, a da Eternidade”, diz o poeta Carlos Nejar, membro da Academia Brasileira de Letras, autor de livros significativos da poesia contemporânea de um país feito de muitos equívocos e mentiras na área da Poesia. “O homem não é apenas um animal político e social. É também espiritual. Tudo compõe a integração dentro do Universo”, assegura.

Nejar está lançando em Portugal A Idade da Eternidade — Poesia Reunida (Imprensa Nacional-Casa da Moeda — Coleção Escritores dos Países de Língua Portuguesa), volume com 420 páginas que reúne três obras inéditas: Livro de Vozes, Os Mortos Visíveis e Rumor das Idades, escritas entre 1980 e 1989, e ainda A Idade da Aurora: Fundação do Brasil (1990), Memórias do Porão (1985), Elza dos Pássaros ou a Ordem dos Planetas (1993), Aquém da Infância (1995) e A Ferocidade das Coisas (1980).

A Idade da Aurora… pode ser lido como um romance com começo, meio e fim. Nejar explica o longo poema com palavras de Abgar Renault: “Livro que cria novas formas de expressão poética. De Idade da Aurora ninguém sai como entra”. Trata-se, como diz o poeta, de um retorno amoroso ao sentimento de nação, natureza, povo, terra, floresta. Um retorno ao Brasil, no início de seu destino, uma redescoberta épica e também lírica.

Se pode ser lido como um romance, também pode ser entendido como uma longa oração à vida do homem diante e dentro de si mesmo, como sempre a procurar-se na escuridão. E isso vale perfeitamente também para Memórias do Porão, Elza dos Pássaros… e Aquém da Infância, uma poesia feita exclusivamente da existência do homem a lidar com seus anseios de liberdade, o que implica ansiar sempre pela vida, especialmente quando se acredita que tudo, absolutamente tudo, é eterno. À semelhança de Deus.

Nejar assume ser hoje um “servo da palavra”, ao olhar o mar no seu Paiol da Aurora, na praia de Guarapari, no Espírito Santo. Seus poemas (“prosopoemas”, como quer em alguns casos) se desenvolvem com uma narrativa quase bíblica, um mergulho no reminescente, onde ainda vivem as paisagens que o poeta não quer perder, já que fazem parte de sua vida, equivale dizer, fazem parte de sua poesia.

Ao situar o Livro das Vozes, para citar apenas um exemplo, ele recorre a Paulo (I, Coríntios, 14:10): “Há, sem dúvida, muitos tipos de vozes no universo e nenhuma delas é sem significação”. Essa é a tarefa de Nejar, que ele se impõe naturalmente como uma missão: Todas as palavras têm um significado e é preciso fazer com que as palavras sejam limpas diante de um mundo feito de muitas sombras e pouco sol.

Os três livros inéditos incluídos no volume, na verdade, podem fazer uma única obra poética em que a morte, especialmente, é uma espécie de planta que cresce de verso para verso, de poema para poema, numa linguagem de absoluta convicção na vida, porque afinal é a vida que vale, é a vida que prepara e conduz à eternidade dela mesma, acima de dores e de angústias. E depois o mundo é feito só de coisas efêmeras, como se não existissem: “Irei num dia frio/com a roda de meus ossos/os olhos de alecrim/e o incrível desforço/de viver onde posso/e de morrer em outro” (O livro das Vozes, pág. 310).

Nejar explica a constante presença da morte, que ele quer com M maiúsculo: “É a morte que morri tantas vezes e a que também eu vi morrer. E essa morte da Morte é a crença poderosa no poder da palavra revelada. Sobretudo, o poder ‘Daquele que é a Palavra’, de que somos apenas o relâmpago ou centelha”.

Nejar quer dizer em seus poemas que a morte não é fim como se pode imaginar ou até mesmo como pode o poema sugerir. Não. “Renascemos dela. Não estou entre os seus arautos. Estou entre os que crêem absolutamente na Ressurreição. O Espírito de Deus em nós realiza a proeza de continuar vivendo. É o mistério da poesia”.

A poesia de Nejar revela que o poeta lamenta o mundo que hoje se apresenta e se revela fragmentado e, em muitos casos, destruído. Assim, tenta viver dentro do sonho e da poesia ainda possíveis, da palavra que ainda existe, já que, para ele, “o homem pode encontrar a Poesia onde encontrar a vida, o amor e a liberdade”.

Carlos Nejar hoje se diz acima dos gêneros literários. Defende seu único espaço, o de ser livre em relação à existência e à literatura. Assegura que cada vez mais quer ser um poeta da Poesia e menos poeta do verso, já que seu trabalho é com a linguagem.

Não há invenções em seus versos, ou nos “prosopoemas”. A poesia se revela e busca segredos e faz constatações dentro e fora do tempo, onde dorme a própria memória do homem. Nejar é um poeta missionário. Ele quer dar seu testemunho de fé na vida e na poesia que deve ser feita para o homem, se quiser ter alguma serventia no mundo. Diante disso e nessa condição — ele diz com absoluta convicção para que não pairem dúvidas em relação à sua obra: “Ao escrever, estou, na verdade, sendo escrito. Nas pegadas de Deus”.

• O que é Deus na sua poesia?
Como dizer sobre o que está tão vivo em mim, que já não me separa Dele? Que é explosão de amor e revelação, escondida aos olhos dos sábios e manifesta aos simples e “ aos loucos de eternidade”? Deus é a Luz da luz. E muitos são os que O descobrem no meio das sombras. “É Aquele que é a Palavra” (lemos no Apocalipse) fiel, que nos levanta, se estamos caídos. E sobre quem Jó dizia: “Eu sei que meu Redentor vive e se levantará sobre a terra e esses olhos O verão”. A eternidade é pouca para ver a Deus, na sua grandeza, face a face. E Ele é o centro da história, o Pai da eternidade. Se a palavra com sangue é Espírito, somos centelhas da grande Palavra. Escrevi, em Memórias do Porão, constante de minha poesia ora reunida, em Portugal: “Deus é o sol à sombra/ou a sombra mais gloriosa que o sol. Deus é/onde tudo existe”. Quando escrevi, em 1983, ainda não tinha a experiência e a fé que hoje tenho. Mas estou, como os poetas, que são servos da Palavra: entre “os loucos de Deus”. Não há honra mais alta.

• Certa vez escrevi que você é um poeta missionário. Essa expressão é correta ?
Não sou missionário de nada. Apenas o que vivo, passo para os que amo. É importante que eles vivam também. Não podemos estar sozinhos, quando a poesia é claridade. E Deus é uma palavra incandescente. Derrama fogo em quem a pronuncia. E não vivemos mais sem esse Fogo. Deus é destino.

• Participamos juntos de um evento cultural em Portugal e observei que, numa palestra, você utilizou várias vezes a expressão “Deus vivo”. O que é Deus vivo?
Já falei a respeito na primeira pergunta. E só posso testemunhar sobre o que “tenho visto e ouvido”. Como calar? Igual ao poema, que só é poderoso quando capaz de ser coletivo.

• A presença de Deus mudou sua poesia.
Sim. Num mundo morto, aprendi sobre a ressurreição. O poeta e o ficcionista não devem ser arautos da derrota, como observou Elias Canetti. E a palavra tem poder de mudar as coisas, pois mudou minha vida e mudará a de todos os que o quiserem. Em conseqüência, ampliou a  visão do que escrevo: não apenas o canto épico, lírico, político, amoroso, cósmico do homem. Mas também do ser espiritual que está nele. E a consciência só pode ser medida no amor.

• O que representa para você mais esta antologia sua publicada em Portugal ?
A Idade da Eternidade, que congrega alguns livros de minha poesia, a partir de A Idade da Aurora: Fundação do Brasil, até agora, representa uma penetração maior no mercado português, onde anos antes, já havia publicado alguns livros. E a editora da Imprensa Nacional/Casa da Moeda foi quem publicou a obra de João Cabral e alguns poucos brasileiros. Há um aspecto importante e que me alegra: trouxe à lume três livros meus inéditos, além de outros que foram editados, no Brasil.

• O que dizer da poesia brasileira hoje ?
A  poesia brasileira, hoje, está entre as de mais alto nível do mundo contemporâneo. Há grandes criadores nas províncias, não apenas no centro do país. Basta a referência de Drummond, Cabral, Jorge de Lima, Murilo Mendes. A poesia começa a sair “das catacumbas” e os recitais de poemas alcançam já excelente público. O que não deixa de ser um retorno aos “aedos” do tempo de Homero. O povo brasileiro tem sede da autêntica poesia.

• Existe crítica literária no Brasil ?
A crítica literária no Brasil, com algumas exceções honrosas, tem-se calado diante dos novos valores. Ou pela dificuldade de publicar, já que os suplementos são poucos, o que marca a importância e a coragem, por exemplo, de Rascunho, neste momento cultural. Nem falo da crítica universitária, que continua fechada em pequenos guetos. E a nossa geração e a nova, precisam, mais do que nunca, criar “o seu espaço crítico”. Não apenas para a poesia, também para o novo romance, que não se preocupa tanto com gêneros, mas com o trabalho da linguagem. Explico: Eduardo Portella distingue o “poeta da poesia”, do “poeta do verso” — o primeiro ultrapassa o instante, por operar na linguagem e o segundo, morre com o tempo do verso. Penso que a grande aventura da criação contemporânea é a de residir na linguagem. E a crítica, hoje, deve acompanhar esse movimento, que não é estático. Pois a crítica também é empresa da imaginação.

• A poesia tem o poder de transformar as pessoas ?
A poesia ajuda a viver. É a respiração não apenas do nosso pensamento, mas de um pensamento geral, pois lidamos com a linguagem, que é instrumento coletivo. Uma pedra atirada no lago repercute e impõe a circulação do mundo. A poesia não só nos dá a alegria de “ver”, é consciência da realidade que rebenta no poema, um meio de conhecimento do universo. Parafraseando Pessoa, a poesia é a melhor forma de estar com ( por) todos.

• O poeta é uma pessoa que vive de sonhos ?
Os poemas são os meus sonhos. Ao minha ficção são os pesadelos contemporâneos. Não posso viver sem uns e outros. Completam-se. Haja vista os meus romances Carta aos Loucos, Riopampa e Túnel Perfeito. Sim, o poeta torna os sonhos visíveis. E depois descobre que pode estar dentro deles.

• Quem é, afinal, o poeta Carlos Nejar ?
Gosto da explicação de Victor Hugo (que traduzo): “Eu sou um homem oculto por mim mesmo; só Deus sabe meu verdadeiro nome”.

Dois poemas de Nejar

Copo de água

Deus é um copo de água
um copo de água
um copo lento
de água.

É como se o tempo
arqueasse em mim
e fosse o comandante
e eu, comandado
no navio que começa
de onde vim
e onde acabo.

O coração é um caminho
um caminho
um caminhante.

Não correm nele
Palavras.

(de Livro de Vozes)

O texto

Deus é o momento de vidência
o momento fatal
de minha alma,
potentíssima escada,
sibilante.
E só na minha morte
hei-de escrevê-lo.

Na minha morte última,
dispersos os sentidos,
animais cegos
num labirinto.

Mas escrever é Deus
preso no texto.

(De Os Mortos Visíveis)

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho