Mario Sabino ocupa um dos postos mais importantes do jornalismo brasileiro: é o redator-chefe da revista Veja. “Trabalho na revista de 10 a 14 horas por dia, cinco dias por semana. E, ainda assim, consigo dedicar-me à literatura. Sou a prova de que escritores não precisam de subsídios oficiais para exercer seu ofício. Também por isso, é claro, não sou muito apreciado por aí”. Ágil, ferino, mas extremamente cuidadoso (não nomeia quem ataca), Sabino atirou para todos os lados, destilou fel — temperado com ironia — durante as conversas por e-mail que teve com o jornalista Marcio Renato dos Santos, durante o mês de agosto.
O escritor debutou na literatura com o romance O dia em que matei meu pai, e agora aposta suas fichas criativas no formato do conto. O antinarciso serviu de ponto de partida para a entrevista. No entanto, merecem atenção os comentários que o autor emitiu sobre escritores e organizadores de coletâneas, sobre a imprensa e a crítica literária. Por exemplo: Sabino prefere resenhistas a críticos. Ele acredita não haver crítico nem crítica literária no Brasil. “Acho fantástico não existir crítica literária no Brasil. Em todas as épocas e latitudes, a crítica literária mais transformou nulidades em gênios do que reconheceu o valor de quem merecia. Além disso, como em geral era exercida por professores universitários tacanhos e preguiçosos, ela foi responsável por petrificar o panorama literário, impedindo que lufadas de ar fresco renovassem o ambiente. Se os atuais escritores brasileiros têm alguma chance de firmar-se, é porque a crítica literária brasileira desapareceu”, afirma.
Sabino nasceu em São Paulo, onde vive há 43 anos. Há 21 é jornalista. Formado na PUCSP, passou por grandes redações da imprensa brasileira: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Isto É. Está na Veja há 11 anos.
Sabino considera o ser humano “sem importância”. E suas opiniões estão repletas de bossa, humor e algum veneno.
• O narcisismo é um dos males de nosso tempo?
O narcisismo é uma condição inerente ao homem, é parte constitutiva dele e importante para o seu desenvolvimento individual e social. No entanto, a exacerbação do narcisismo é um mal do nosso tempo. Vivemos numa época em que a miragem do “eu absoluto” nos fascina e paralisa. E, nesse encantamento maléfico, deixamos de enxergar com nitidez a nossa realidade interior e ignoramos as diferentes realidades interiores que nos cercam. O narcisismo exacerbado é um falseamento da subjetivação.
• “É que Narciso acha feio o que não é espelho.” Quebrá-lo seria uma solução?
Ao contrário do que diz o músico, acredito que o Narciso moderno acha feio o que é espelho, já que os espelhos não mentem, mas refletem com fidelidade o que lhes está à frente, como observou Umberto Eco no seu ensaio sobre o assunto. Na verdade, se enxergássemos o que os espelhos realmente refletem, talvez fôssemos menos propensos ao narcisismo absoluto.
• Eis o nosso tempo: a imagem se quer tudo. Então, escrever — e, sobretudo, publicar — ficção também é uma forma de narcisismo?
Toda produção intelectual é narcísica por excelência — no mínimo porque, ao enveredar por esse caminho, a tentativa é de diferenciação. Não há nada de errado ou condenável nisso, evidentemente, desde que o autor perceba qual é a sua verdadeira dimensão — um problema e tanto, convenhamos.
• Qual a sua relação com a escrita?
Minha relação com a escrita é profissional — dela vivo, nutro meu corpo e também minha alma, por assim dizer.
• Desde quando você se interessou pela palavra escrita e pela leitura?
Interessei-me pela escrita ainda na infância, por meio da obra de Monteiro Lobato. A palavra escrita transportava-me para longe de um cotidiano no mais das vezes não muito feliz.
• Hoje, você ocupa um dos postos mais importantes do jornalismo brasileiro: é redator-chefe da revista Veja. Qual o preço a pagar? Dorme quantas horas por dia?
Trabalho na revista de 10 a 14 horas por dia, cinco dias por semana. E, ainda assim, consigo dedicar-me à literatura. Sou a prova de que escritores não precisam de subsídios oficiais para exercer seu ofício. Também, por isso, é claro, não sou muito apreciado por aí.
• Qual a diferença entre escrever para imprensa e para a literatura?
Bem, a diferença entre jornalismo e literatura, creio eu, está bem visível nos jornais e nos livros — ainda que muitos destes últimos sejam mais efêmeros e desimportantes do que a imprensa.
• Você se sente solitário em meio ao que está sendo feito na malha literária brasileira? Ou há pontos de contato entre sua literatura e a de outros autores?
Confesso que não presto muito atenção ao que você chama de “malha literária brasileira”. Mas, entre os contemporâneos, acho que o Miguel Sanches Neto vem fazendo um ótimo trabalho. Outro de que gosto bastante, mas que se aposentou, é o Raduan Nassar. Não sei se sou diferente ou não dos atuais autores brasileiros, e sinceramente não acredito que esse seja um ponto importante ou minimamente interessante. Escrever é, e sempre será, uma atividade solitária, que diz respeito a um indivíduo e sua relação com o mundo. Qualquer tentativa de transformar literatura numa ação coletiva, geracional, é uma fraude. Coisa de marqueteiros.
• Quais autores da contemporaneidade lhe proporcionam prazer de leitura?
O norte-americano Phillip Roth, para mim, é de longe o melhor escritor contemporâneo. Com o qual sinto mais afinidade existencial, por assim dizer. Também gosto de Paul Auster, embora seu trabalho seja muito desigual.
• Há um aspecto em comum a todos os contos de O antinarciso: uma certa desilusão e um certo desencanto com a condição humana. Há ironia também. E ao mencionar desencanto e ironia surge a lembrança de Carlos Drummond de Andrade, apesar de que a proposta dele era outra…
Cá entre nós, o desencanto de Drummond era muito “funcionário público”. Mas vamos adiante: não tenho desencantos porque nunca tive ilusões quanto à condição humana. Somos mesquinhos, sem importância, e a função da literatura, pelo menos, da minha literatura, é apontar isso o tempo todo. Os 12 contos de O antinarciso tentam mostrar, ora privilegiando a forma, ora a estrutura, ora o conteúdo ou o sentido — uma referência jocosa à formulação de Aristóteles sobre a obra de arte —, quão idiota é o narcisismo da espécie humana, que usurpou um lugar que jamais foi dela e que, para falar a verdade, nunca existiu: o de centro do universo.
• Como O antinarciso tem sido recebido pela crítica?
Fui muito bem recebido pelos resenhistas. Não tenho do que reclamar. Mesmo.
• Há crítica literária atualmente? Ou vivemos na era dos resenhistas, e isto é irreversível?
Acho fantástico não existir crítica literária no Brasil. Em todas as épocas e latitudes, a crítica literária mais transformou nulidades em gênios do que reconheceu o valor de quem merecia. Além disso, como em geral era exercida por professores universitários tacanhos e preguiçosos, ela foi responsável por petrificar o panorama literário, impedindo que lufadas de ar fresco renovassem o ambiente. Se os atuais escritores brasileiros têm alguma chance de firmar-se, é porque a crítica literária brasileira desapareceu.
• O antinarciso aglutina 12 contos. Casualidade? O texto da orelha informa que “O antinarciso nasceu de encomenda. O livreiro carioca Marcus Gasparian sugeriu a Sabino que escrevesse um conto sobre o amor de um paulista por uma carioca. O autor escreveu, então, ‘Um beijo entre dois cocosh’”. Foi assim mesmo?
Foi. Mas o que nasceu por encomenda transformou-se num projeto com direção precisa. Só trabalho dessa maneira.
• O texto da orelha, na continuidade, informa que “a Editora Record pediu-lhe outros dois textos, a serem publicados em coletâneas temáticas, em 2006. Sabino escreveria, assim, ‘Amizade masculina’ e ‘Olhos de égua’”. Que coletâneas serão essas?
Essas coletâneas serão publicadas em Portugal, ao que consta. Quem tem essas informações é a Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record. Luciana, aliás, é a melhor editora brasileira, como sabe qualquer escritor que tem a sorte de trabalhar com ela.
• Você gosta de escrever a partir de uma encomenda ou de uma sugestão?
Se o tema proposto for do meu interesse, não vejo problemas. Mas, evidentemente, não sou a moça da Avon que aceita qualquer encomenda.