Em tempos de especialização da atividade literária, há um poeta que deseja a indiscernibilidade. Sua luta poética não pretende demarcar territórios, ao contrário, busca o “desguarnecimento das fronteiras” em favor da liberdade criadora, investindo corajosamente na encruzilhada em que as forças da palavra e da vida se procuram. Com um projeto teórico de rara exuberância e uma poesia cravada no pensamento, Alberto Pucheu parte da experiência movediça da criação e da crítica para propor novíssimos intercursos entre o literário e o filosófico.
Seus ensaios e poemas reunidos, que acabam de ser publicados em dois volumes, Pelo colorido, para além do cinzento (ensaios) e A fronteira desguarnecida (poesia), apresentam a vitalidade de uma poética da escrita que há mais de uma década vem se afirmando como lugar do afeto e da alegria, graças a essa intensa dedicação do poeta àquilo que nos interstícios da linguagem permanece incalculável, e por isso mesmo, apaixonante: seu enigma.
Aliada a uma “ética do desconhecimento”, como diz Francisco Bosco no prefácio de um dos volumes, a obra de Pucheu é, sem dúvida alguma, sinônimo de vigor e responsabilidade. Na entrevista abaixo, realizada por e-mail, o poeta fala a respeito dos seus livros recém-lançados.
• No ensaio que dá título ao seu livro Pelo colorido, para além do cinzento, não por acaso você explicita ali “quase um manifesto”, digamos um manifesto pelo exercício de uma crítica sensível, que não se sobreponha à poesia, antes dela se alimente e com ela se confunda. Não seria preciso que, além do poeta, também o crítico, hoje, se dispusesse a vivenciar a literatura por meio da metamorfose?
O Pelo colorido, para além do cinzento foi o último ensaio do livro a ser escrito e colocado na abertura como um pré-escrito, como um texto que está antes dos demais por conter em si uma aposta de pensamento, antecipando, de alguma maneira, o que quer vir pela frente. É um começo antes do começo, o desde onde desejo intervir contemporaneamente numa discussão sobre crítica literária, literatura e filosofia. O fato de o Pelo colorido… se dizer “quase um manifesto” significa que há nele o diagnóstico de um sintoma geral da crítica literária brasileira e a busca por uma nova postura requisitante de experimentações. A partir de uma frase daquele que é nosso crítico literário de maior importância, Antonio Candido, que diz que “a crítica é cinzenta, e verdejante o áureo texto que ela aborda”, e de um momento em que Silviano Santiago afirma que o crítico “sempre vem a reboque”, diagnostiquei o que considero o limite voluntário da crítica como uma síndrome cinzenta, um complexo de rebocado, um sintoma de segunda divisão. Mais de cem anos antes da frase do crítico paulista, Euclides da Cunha, em uma conferência — crítica — sobre Castro Alves, chamou atenção para os “escrúpulos assombradiços da crítica literária”. Apesar disso, nossa crítica nunca se criticou a si mesma numa tentativa de se colocar como luminosa, solar. É possível uma crítica que não se coloque de modo algum como rebocada ou cinzenta, que seja tão colorida, tão verdejante, tão instauradora e tão intensa quanto a obra que ela aborda? É possível uma crítica que, nela mesma, seja poética? Neste sentido, se habitualmente se entende a literatura como um fazer e a crítica como um saber, teríamos aqui que tanto a literatura também seria um saber quanto a crítica seria igualmente um fazer, ambas em busca das maiores intensidades. Radicalizar a postura em que um saber e um fazer se encontram seria do âmbito não só da literatura como também da crítica, entendidas ambas como criação, devires, metamorfoses. Como seria igualmente do âmbito da crítica, e não só da literatura, tocar o homem em seu pensamento e em seu afeto, o que, contrariamente à literatura, ela não ambiciona fazer.
• Na sua opinião, o fato de a crítica não se criticar a si mesma, desafiando assim os seus limites — o que supõe penetrar nesse campo de “indiscernibilidades” — teria a ver, talvez, com um certo temor de perder o corrimão das certezas para se admitir tão vertiginosa e imprevisível quanto a própria poesia, e por isso tão pouco “guarnecida”? Por que nem sempre parece aceitável à crítica que “falar de literatura é também fazer literatura”, como você mesmo diz?
Se a crítica é cinzenta e está sempre a reboque, é porque ela não se reconhece como literatura. Antes, ela se coloca como uma instância reflexiva cujo discurso quer estabelecer um vínculo epistemológico com o objeto privilegiado que ela aborda. Ao não se colocar no mesmo grau de criação do literário, ao se assumir como uma carne de segunda querendo falar da picanha ou do filé mignon, o discurso crítico perde, desde seu início, justamente aquilo que, do literário ou poético, é o fundamental: a intensidade da criação. A crítica se esquece de que sua tarefa não é a de conhecer o objeto de seu estudo, mas, antes, já na revolução kantiana, num momento em que se achava que tudo era passível de conhecimento, a de lhe dar um limite. Crítico é o pensamento que limita o conhecimento, encontrando, de algum modo, seu negativo. Como diz Agamben no maravilhoso prefácio de Estâncias, a busca da crítica não consiste em reencontrar o objeto, mas em garantir as condições de sua inacessibilidade. Contrariamente ao que, em geral, se faz, cabe à crítica assegurar que seu objeto de estudo se mantenha inapropriável. A transmissão da criação não se dá através de um discurso não criador que toma a criação como objeto; ela se dá no momento em que surge um novo texto criador: o que Rosa faz com Euclides, o que Manoel de Barros faz com Rosa… É um criador atualizando outro criador em uma nova singularidade imprevisível e irredutível à anterior. Por serem do campo do literário, esses exemplos podem gerar uma expectativa de que isso não seja possível no pensamento teórico. Mas e o que Nietzsche fez com os gregos? O que Freud fez com Sófocles? O que Heidegger fez com Hölderlin, Rilke, Trakl, Stefan George? O que Deleuze fez com Proust, Kafka, Artaud?… Não seriam esses os grandes exemplos de crítica literária? Nesses paradigmas, ainda que se fale de um texto anterior, no lugar do conhecimento dele, se realiza uma criação instauradora, inteiramente suplementar, por sobre o texto anterior. É um colorido a falar de um colorido, um verdejante a falar de um verdejante, um rebocador a falar de um rebocador. Um criador a falar de um criador. Há uma minimização habitual do texto teórico. Quando, em geral, a crítica ou a teoria falam em gêneros literários, abordam o épico, o lírico, o trágico, o cômico… Mas o pensamento teórico também inventa seus gêneros: o poema, o diálogo, o tratado, a carta, a confissão, a meditação, o ensaio, o fragmento, o aforismo, o seminário… Todos esses gêneros possuem seus criadores. A teoria e a crítica trazem em si a criação de gêneros, ou, pelo menos, a criação de diversas modalidades de escrita. Não tenho a menor dúvida de que falar de literatura também é fazer literatura — e chegamos a um momento tal da crise da crítica que isso tem de ser radicalmente buscado e realizado entre nós.
• Pensando na militância intelectual de Mário Faustino, no final dos anos 50, e na sua contribuição para o dinamismo da crítica literária no jornal, podemos falar, nos dias atuais, na necessidade de uma nova percepção poética, que reúna “o principal de todas as outras abordagens — filosófica, mística, científica — acrescentando-lhes o que há de específico em seu próprio approach”, como falava Faustino?
Acho que, de alguma maneira, toda área precisa de um fora para arejá-la. No campo em que mais trabalho, não acho apenas que a crítica deva, de algum modo, se apropriar do literário, mas que a literatura também deva se apropriar de seu fora. Um livro de poemas que me impressionou muito foi Noiva, ainda inédito, de Renato Rezende, que leva a poesia a ser invadida pelo misticismo de uma forma atualíssima. Francisco Bosco, com o recente Banalogias, leva a escrita teórica a se aproximar de elementos do cotidiano coletivo de nosso tempo. Os poetas do concretismo sempre tiveram grande interesse pelos meios de comunicação de massa e pela ciência. O videomaker Tatavo acaba de colocar no youtube um dos incríveis trabalhos resultantes da GRAP, uma exposição que, no ano passado, a Cláudia Roquette-Pinto organizou com o pessoal do grafite, do rap e da poesia contemporânea (http://www.youtube.com/watch?v=sLYfPXiYk-0). Nele, o Tatavo faz a parte visual, o DJ Machintal, a musical, e os poetas Renato Rezende, Caio Meira, Sérgio Cohn, Cláudia Roquette-Pinto, Pedro Cesarino, Marcelo Diniz, Angélica Freitas, Marcelo Moutinho e eu participamos falando nossos poemas, gravados em estúdio, que o Machintal e o Tatavo fragmentaram como quiseram para o trabalho. Ficou uma coisa linda, com o encontro de todas essas diferenças produzindo grande liberdade de criação de todos os lados num resultado muito delicado, intenso e rigoroso. Qualquer que seja o fora, ele me parece necessário ao nosso tempo. Para mim, a forte dedicação a uma área de atuação é de fundamental importância, mas é preciso fazê-la se abrir a uma alteridade qualquer com a qual possa criar indiscernibilidades para que não caia na interioridade de uma fixidez ensimesmada, anacrônica e desinteressante. Vivemos uma época de fronteiras desguarnecidas.
• Parece haver em seus poemas uma preocupação fundamental com esse ponto de resistência que sempre escapa à palavra e que se afirma como potência da linguagem na medida do indizível. Na tensão entre ausência e presença no processo da escrita, não estariam os poetas, de maneira geral, inevitavelmente lidando com as implicações filosóficas imanentes ao tema da metacriação?
Se há algo fundamental de o poema mostrar é o fato de ele ser uma libertação da compreensão habitual que se tem da linguagem. Quase sempre se acha que a linguagem é o que se diz, que ela se confunde com o que dela é atualizado em algum dizer. O poema é o lugar que faz com que a linguagem se confunda, antes, com sua potência do que com sua atualização, ou, então, que faz com que sua atualização, de algum modo, traga à tona sua potência. Assim, a linguagem é a possibilidade de dizer, o ter lugar da linguagem. Todo querer de cristalização em um dito específico é autoritário porque não condiz com o caráter maior de liberdade da linguagem, porque não encontra o que você, em sua pergunta, chamou de “ponto de resistência”. E é aí que a linguagem reside. Um dos fragmentos de Escritos da indiscernibilidade diz assim: “Não exatamente a linguagem, o poeta habita, mas percorre o movimento indizível de seus interstícios, como quem, por inindividualmente precedê-la, precisa recriá-la, inventando constantemente novos deslocamentos. — Ou será esse movimento indizível de seus interstícios o que chamamos de linguagem? Ou precedê-la será propriamente habitá-la?” Em algum lugar, o escritor egípcio Edmond Jabès escreveu que, quando tiramos um livro da estante para ler, um outro livro, deste mesmo livro, permanece lá, para sempre invisível, para sempre ilegível. Escrever tal livro invisível e ilegível, escrever a idéia do livro, é a tarefa do escritor, bem como a do leitor é saber ler, no livro lido, o ilegível que o constitui, a idéia que o plenifica, mantendo-o inapropriável. Em 1937, no discurso proferido em agradecimento ao prêmio concedido pela Academia Brasileira de Letras ao livro de poemas Magma, Guimarães Rosa disse que o artista tem por clima o incontentamento de quem não pode descansar, já que, faltando-lhe o repouso do sétimo dia, não tem o direito de se voltar para o já-feito, ainda que mais nada tenha por fazer. Logo em seguida, acrescenta que: Obra escrita — obra já lida — obra repudiada. O tema da meta-criação é importante, então, não por falar da obra escrita, mas por poder assinalar o (não-)lugar em que sempre nos encontramos, o da linguagem como criação que não se estanca nem tem fim. O da linguagem como nosso espaço privilegiado de liberdade.
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