Militância tragicômica

Entrevista com o mexicano Juan Pablo Villalobos
Juan Pablo Villalobos. Foto: Divulgação
01/08/2014

Impulsionado pela notícia de que seria pai, começou a escrever o primeiro romance. Numa época conturbada, na qual escrevia uma dissertação, preocupava-se em manter uma bolsa de estudos e em trabalhar, escrever um romance não parecia se encaixar nas urgências que o cercava. Chegou até mesmo a pensar em abandonar a ideia de ser escritor, quando, enfim, se deu conta de que as turbulências mundanas não interferem na execução de um projeto de romance certeiro. Foi o que aconteceu. Após seis meses de escrita e mais dois anos de correções, Juan Pablo Villalobos lançava Festa no covil, em 2010, pela espanhola Anagrama, primeiro livro do que viria a se tornar uma trilogia sobre o México.

Se antes se dedicava às crônicas, contos e crítica literária, após o lançamento do primeiro romance logo engatou uma continuação — desta vez, porém, movido pela raiva. Se vivêssemos em um lugar normal — segundo livro da trilogia — veio como um experimento com os limites do real e do literário, repleto de palavrões e apoiado num sarcástico nonsense.

Apesar de ter publicado seu terceiro romance, No estilo de Jalisco, em português e exclusivamente no Brasil, Villalobos nasceu em Guadalajara, no México, em 1973. É Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade Autônoma de Barcelona. No Brasil, instalou-se em Campinas (SP), onde fica até setembro, quando voltará a Barcelona.

Sua trilogia sobre o México chegará ao fim com Te vendo un perro, que deve ser publicado em espanhol, no outono. Nesta entrevista concedida por e-mail, Villalobos fala de sua obra e do que aproxima e afasta México e Brasil.

• Inicialmente, Festa no covil faria parte de uma coletânea de contos. O que o impulsionou a transformá-lo no seu primeiro romance?
Até aquele momento, não me achava um romancista. Acreditava ser contista, cronista, crítico. Já tinha tentado escrever um romance, de fato, mais de uma vez, e tinha fracassado. Essas experiências tinham me mostrado que para escrever um romance era necessário um fôlego que eu, aparentemente, não tinha. Eu parecia trabalhar bem nos espaços curtos, em textos que precisavam de uma atenção intensa durante poucos dias. Hoje penso que, aliás, tinha uma ansiedade por publicar que não ajudava o processo de escrita, especialmente de um romance. Um romance precisa de paciência infinita. Era como se quisesse publicar antes de escrever. Estamos falando de 2006, eu tinha 33 anos, estava prestes a abandonar a categoria de “escritor jovem” e só tinha publicado alguns contos e crônicas em revistas e jornais não muito prestigiosos. Para ser honesto, estava prestes a abandonar a ideia de ser escritor. Naquela época, estava escrevendo uma dissertação de doutorado, tinha uma bolsa e um trabalho, ia ser pai… Não parecia o melhor momento para escrever um romance, parecia um momento dominado pelas urgências, mas eis que acabei descobrindo que as condições ideais para escrever um romance não importam quando o projeto de romance certo cai em suas mãos. Isso acabou virando tema de Festa no covil, onde se fala, sarcasticamente, que para escrever um livro você não precisa se enfiar numa cabana no meio do nada, como o Mazatzin, o professor particular de Tochtli, fez. Minha técnica para escrever contos era aguentar até ter todas as questões resolvidas, na minha cabeça e em notas que escrevia em cadernos, e só começar a escrita quando estivesse pronto para uma sessão intensa até chegar ao final. A experiência tinha me ensinado que se parasse de escrever, por causa de dúvidas ou de ficar sem ideias, normalmente acabaria largando o texto. Então, enquanto eu ia cogitando os detalhes de aquele conto sobre um menino que queria ter um hipopótamo, aos poucos fui achando que aquilo dava para ser um conto longo ou um romance breve, uma novela. Na época, estava muito influenciado pelos livrinhos do César Aira e estava obcecado pela brevidade, que achava quase um valor literário. A forma que o texto tomou na minha cabeça, “conto longo ou romance muito breve”, e logo a estrutura com que o texto foi se formando, em fragmentos breves, me ajudou a dar esse passo definitivo do conto para o romance, ou, melhor, de me achar contista para me achar romancista.

• Qual foi o principal obstáculo ao migrar do conto e crônica para o romance?
Aprender a acreditar. Para escrever um romance você tem que acreditar durante um longo tempo (meses, anos) em um monte de coisas. Tem que acreditar em que esse é o romance que você quer escrever. Em que o romance está indo bem. Em que o que você escreveu ontem, e antes de ontem, etc. está legal. Tem que acreditar e seguir em frente. Esse desafio ainda continua e, de fato, escrevo várias versões de meus romances, principalmente porque em algum momento paro de acreditar. Não sei explicar por que, mas tem dias em que de repente não consigo acreditar que aquela versão do romance, na qual trabalhei, digamos, nos últimos dois meses, é o romance que quero escrever. Então, volto a começar.

Você declarou: “Fiz o livro para aceitar a paternidade” e dedicou-o a seu filho, Mateo. Ser pai influenciou na construção do personagem-narrador Tochtli?
Escrevi o livro durante a gravidez de minha esposa. O impulso para escrever o livro foi, sim, a notícia do nascimento de meu primeiro filho, mas ser pai, como ser escritor, é um work in progress. Você nunca acaba de aprender e você pensa o tempo todo que está errado e errando. Nem meu filho nem outros meninos da “realidade real” influenciaram a construção do Tochtli. Para mim, a literatura só pode ser autorreferencial. Ou seja, as influências foram outros personagens e narradores infantis. Não pensei nisso enquanto escrevia o romance, mas quando já estava publicado e os jornalistas começaram a perguntar sobre minhas influências, acabei descobrindo que havia três leituras que tinham sido decisivas para a escrita de Festa no covil. São três livros narrados por personagens infantis: Cartucho, da escritora mexicana Nelly Campobello, Un mundo para Julius, do peruano Alfredo Bryce Echenique, e O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, que é na verdade narrado por um adolescente.

Já sugeriram vários gêneros literários para definir Festa no covil. Havia alguma pretensão estilística quando começou a escrevê-lo?
Eu sabia que estava escrevendo um romance de iniciação, um Bildungsroman, mas muita da crítica ficou falando da violência e colocou o livro na gaveta da chamada “narcoliteratura”. Eu já falei muitas vezes, e até escrevi sobre isso, que não concordo com a etiqueta “narcoliteratura”, porque acho que é uma estratégia de marketing que simplifica as que eu gosto de chamar de “literaturas da violência”. Mas o escritor não controla o que acontece com seus livros depois de publicados. E acho isso perfeitamente aceitável, porque exatamente isso quer dizer “publicar”, virar público.

O tutor de Tochtli, Mazatzin, largou um negócio milionário e se isolou numa cabana no meio do nada para escrever um livro, mas a inspiração não veio. Como você enxerga esse tipo de sacrifício pela literatura? E possui algum método para escrever?
Acho que o isolamento está sobrevalorizado. Pelo menos eu preciso “estar no mundo” para conseguir escrever um livro. Isolamento leva a infertilidade, a perda do contato com a realidade, depressão… Isolamento, para mim, só leva a “brochar” na escrita. Não sei se é possível falar num método, a escrita de cada um dos meus quatro romances (estou contando o novo, que será publicado em espanhol durante o outono) foi muito diferente. Mas tem, sim, algumas coisas simples: escrevo a mão, reescrevo muito, e fico me fazendo a pergunta mais importante: este é um livro que eu gostaria de ler? Tem dias que a resposta é não, aí começo de novo.

Yolcault, chefão do narcotráfico e pai de Tochtli, afirma que “os cultos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida” e que “é preciso ser realista”. Num país que sofre com a violência, corrupção, injustiça e desigualdade mais vale o realismo ou o escape oferecido pela fantasia?
O que vale é entrar à realidade através da fantasia.

• Como foi a recepção crítica (e dos leitores “comuns”) a seus livros no México? Qual foi a reação ao olhar irônico e sarcástico de Se vivêssemos em um lugar normal?
Para ser honesto, leio só em diagonal a crítica sobre meus livros, porque acredito que isso pode virar uma influência perigosa sobre o processo de escrita. Seja porque você fica inseguro e desconfiante ou porque começa a abusar de suas “melhores virtudes”. Um amigo escritor me deu um conselho ótimo quando eu acabara de publicar meu primeiro livro: não ligue para as críticas, nem para as ruins nem para as boas. Eu mesmo fui (e ainda sou, às vezes) crítico literário e sou um defensor veemente da importância de uma boa crítica literária, mas acredito que a crítica serve para formar leitores mais do que para formar escritores. Quando Festa no covil foi publicado, eu estava curioso com a reação dos leitores ao uso do humor num tema delicado, como é a violência, mas felizmente no México temos uma bela tradição de literatura humorística (com grandes mestres como Jorge Ibargüengoitia ou Juan Villoro). Já o caso de Se vivêssemos é um pouco mais complicado, ao ser um romance decididamente político e ao estar localizado na cidadezinha onde eu cresci. Lembro que fui lançar o livro na Feira do livro dessa cidade, e todo mundo, começando pelo mediador da mesa, me falava: “Você não tem vergonha de vir apresentar esse livro aqui?”. Mas eles riam, batiam tapinhas sarcásticas em minhas costas. O mexicano devolve ironia com ironia, sarcasmo com sarcasmo. Somos um povo muito sacana.

Em entrevista, você disse que as realidades de México e Brasil são muito parecidas, mas no Brasil há otimismo. O que te levou a essa conclusão?
Isso foi há um tempo, hoje penso diferente. As realidades de México e Brasil são muito diferentes e acho que aquele otimismo, ou uma boa parte dele, sumiu. Minha conclusão atual (que mudará com certeza no futuro, já que o pensamento não é uma pedra) é que o Brasil e o México são aparentemente parecidos, ou seja, eles têm uma semelhança só superficial.

Seu romance de estreia levou seis meses para ser escrito e foi corrigido por mais dois anos. O segundo, Se vivêssemos em um lugar normal, foi escrito sete vezes durantes dois anos e meio. Ao fazer a revisão de seu próprio conteúdo, o quanto pesa sua formação como Doutor em Teoria Literária? Você se permite alterar o texto significativamente a partir do próprio olhar clínico?
Tento não ativar esse olhar clínico até as últimas leituras do romance já finalizado. Para escrever um romance é preciso soltar a mão, o escritor não pode ficar analisando o próprio texto enquanto escreve. Lógico que todo esse conhecimento, e todas essas leituras, influenciam a escrita. Do meu ponto de vista, hoje não tem mais literatura inocente, ingênua. No estado em que se encontra a história literária, a ideia de um autor genial sem formação literária me resulta inconcebível. A mais interessante literatura de nossa época é escrita por autores que conhecem profundamente a tradição literária e até, não sempre, a teoria literária. Num momento de profunda crise da escrita de meu novo romance, quando me sentia totalmente perdido, até fiz um resumo com todas as maneiras possíveis de escrever um romance. Todas as variantes que consegui pensar de narrador, tempo e estrutura. Ficou numa folha. Foi reconfortante achar que no fim das contas tudo era tão simples.

• A politicagem e seus podres estão bem presentes na trama do seu segundo romance, mas o tom é cômico. O tragicômico é a melhor forma de conscientização?
Nisso, sou militante. Tem uma frase de Theodor Adorno que se eu fosse candidato a alguma coisa usaria como slogan: “A arte avançada escreve a comédia do trágico”.

“Não era para acontecerem coisas maravilhosas e fantásticas o tempo todo?” é uma indagação de Orestes — adolescente narrador de Se vivêssemos em um lugar normal — feita no ápice de acontecimentos surreais. O que pretendeu ao ironizar esse estigma de o México ser um país surrealista?
No momento da escrita de Se vivêssemos eu estava com muita raiva, a raiva foi o sentimento que gerou a escrita desse romance. É por isso um romance profundamente político. Em relação à política mexicana, é um romance que tenta se aproximar da maneira em que foi construída a identidade do país, uma identidade pensada para manipular a população. Nesse sentido, como o México é um país não só surrealista mas diretamente absurdo, é “normal” que coisas absurdas aconteçam. Mas também há uma leitura literária que tem a ver com a construção do cânone literário mexicano e latino-americano. Na verdade, Se vivêssemos é um experimento com os limites do real e do literário. Basicamente pensei: vamos escrever um disparate usando materiais históricos (de política e economia) e autobiográficos. De novo, adentrar a realidade através da fantasia.

A trilogia sobre o México será abordada por personagens em três etapas diferentes da vida — infância, adolescência e velhice —, sobre o mesmo tema e mesma ótica humorística. Qual é o objetivo?
Não houve um planejamento nisso. De fato, só pensei que aquilo seria uma trilogia quando terminei o Se vivêssemos e já tinha na cabeça o projeto do terceiro romance. Aí fui consciente da estrutura da trilogia.

• Tochtli é, a princípio, uma criança comum: absorta no mundo da fantasia ao passo que desvenda o mundo que a cerca. Orestes é muito egoísta e não economiza nos palavrões. O que esperar do personagem central que irá fechar a trilogia sobre o México?
O livro já está pronto para ser publicado em espanhol, no outono. Chama-se Te vendo un perro. É um romance mais ambicioso que os anteriores, percorre 80 anos da história da arte e da política no México. O narrador é um aposentado de 78 anos chamado Teodoro (minha homenagem a Adorno).

No estilo de Jalisco é seu primeiro romance escrito em português e lançado primeiramente no Brasil. Por que tomou essa decisão?
Escrevi o romance por encomenda, como parte de uma coleção que sairia em 2014, com motivo da Copa. Pensei primeiro em escrever o livro em espanhol e a editora deveria fazer a tradução para o português. Logo pensei em escrever o romance em “portuñol”, com a ideia de que pudesse ser lido por leitores de língua espanhola e portuguesa. Finalmente, quando comecei a escrita, descobri que era mais difícil escrever em portuñol que em português, assim que perdi o medo e fui em frente. Aliás, No estilo de Jalisco só será publicado no Brasil, não pretendo oferecê-lo para tradução.

• Qual a maior dificuldade (ou desafio) ao escrever em português?
Eu fui meio trapaceiro, já que o narrador é um mexicano que mora há 30 anos no Brasil, e assim fiquei tranquilo de que ele falasse um português não necessariamente correto. Também por isso escolhi o tom oral do livro, que é, na verdade, uma conversa de boteco. Mas a experiência de escrever em outra língua é muito rica: é o exílio mais radical para o escritor, se exilar da própria língua.

Ruan — narrador de No estilo de Jalisco — conta que “gringo a puta que o pariu” é a primeira coisa que aprendeu a dizer quando chegou ao Brasil e, dentre outras definições, diz que a tequila brasileira é usada no México para desentupir ralo. Você teve alguma dificuldade para se adaptar ao Brasil?
Umas quantas… Acho que deixei um bom catálogo dessas dificuldades nos textos que escrevi para Granta e em minhas colunas no blog da Companhia das Letras. Aliás, estou indo embora do Brasil. A partir de setembro, estarei novamente morando em Barcelona.

Sobre a fórmula de seus dois primeiros romances, você disse que seria algo como 10% autobiográfico, 10% histórico e 80% ficção. No estilo de Jalisco, ao ser contado por um imigrante mexicano no Brasil, segue as mesmas porcentagens?
Sim. Na verdade, falei que a fórmula era 90% ficção, 10% autobiográfico e 10% histórico. Sei, a conta não fecha, mas a literatura não tem nada a ver com certezas.

João Lucas Dusi

É autor do livro de contos O grito da borboleta (Penalux, 2019).

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