Se o cordel pode soar anacrônico ou “folclórico”, levando em conta o mundo tecnológico, urbano e cheio de efeitos especiais em torno das crianças, é puro engano. Com origens nos trovadores portugueses, e por eles sendo transportado e recriado no Brasil, o cordel se reinventa ao longo dos séculos à medida que narrativas, novas e velhas, são (re)contadas. Sua essência, no entanto, permanece intocada: é a arte de contar histórias.
Para João Bosco Bezerra Bonfim, é delas que somos feitos. E além das histórias atraentes, o escritor e pesquisador do gênero vê no cordel uma forma muito familiar ao universo das crianças, ao guardar características da língua falada, como rimas, repetições e a busca da melhor sonoridade. Seja através de narrativas antigas — cantadas ou contadas até hoje por várias pessoas, em várias regiões, carregando a herança de uma família, de um local, de uma época — ou histórias que se passam no tempo presente, dialogando com questões contemporâneas, Bezerra Bonfim acredita na identificação e na emoção que histórias bem contadas podem gerar.
Partindo deste pressuposto, o autor buscou nas Mil e uma noites o material para seu reconto em cordel O jumento e o boi (Caramelo), ambientando a história, ilustrada com xilogravuras de Nena Borges, no sertão brasileiro. Nascido em Novo Oriente (CE), em 1961, e radicado em Brasília (DF), João Bosco é também autor de ensaios sobre linguística e poemas líricos, além de ministrar cursos sobre letramento literário e cordel. Na sua produção infanto-juvenil, destacam-se No reino dos preás, o Rei Carcará (2009) e Chronica de D. Maria Quitéria dos Inhamuns (2004), também narrativas em versos de cordel. Nesta entrevista, o escritor comenta a potência e a atualidade do gênero que lhe é familiar desde a infância.
• Assim como O jumento e o boi, o senhor possui outros livros em que utiliza a arte de contar histórias em versos. Além de realizar o estudo do gênero, o que o motiva a escrever literatura infanto-juvenil em cordel? Que potencial ele tem frente a outras formas de narrativa?
Contar histórias em versos é a forma mais antiga de se contar histórias. Pode até não ser a mais fácil, mas é a que nunca morreu. Então, são as outras formas de narrativa, em prosa, que estão sempre concorrendo com a tradição de contar histórias em versos: em versos estão escritas a Ilíada e a Odisséia, peças clássicas do nosso mundo. Shakespeare escrevia suas peças em versos… e os nordestinos contamos histórias em versos, nos folhetos e nas feiras. E por que o cordel deve ter seu lugar privilegiado na escola ou na estante das casas das famílias? Porque ele faz a ponte entre o oral (que é o que as crianças trazem, quando lá chegam) e o escrito (que é o ideal). O cordel tem tudo da língua falada: rimas, repetições, busca da melhor sonoridade. Então, como primeiro contato com a escrita é a forma perfeita. Os estudos comprovam o que a gente mesmo pode constatar no dia-a-dia: crianças adoram cantar, rimar e criar histórias.
• De que maneira mudanças como a chegada do rádio e da televisão e a influência da cultura urbana no nordeste brasileiro, onde o gênero é entendido como parte da cultura local, afetam o cordel? A relação das novas gerações com o cordel e a contação de histórias vem perdendo força?
É incrível que o cordel não tenha perdido a força. Justamente porque ele é irmão gêmeo da cantoria de viola, da cantiga a desafio, que passou a ser transmitida pelas rádios das capitais, como Recife, João Pessoa e Fortaleza, mas também de cidades do interior, como Crateús, no Ceará. Hoje o cordel é retomado nas escolas, mas já sendo bem recebido, em vez de ser rechaçado, como o foi no passado. Já vem em edições bem preparadas, belas, ricamente ilustradas, escritas de acordo com a chamada norma culta. Enfim: é uma tradição. E tradição não morre, se reinventa, se recria.
• Como se deu o seu contato inicial com o cordel? Que leituras marcaram sua infância e adolescência?
Meu primeiro contato foi com a literatura oral, isto é, com os contos de cordel ditos em voz alta pelo meu pai, Cândido Bezerra. Um cordel que ele cantava muito, de cor, era A peleja de Riachão com o Diabo, de Leandro Gomes de Barros. Só mais tarde, escolarizado, é que voltei ao contato com os cordéis. E vi que estavam impregnados em minha memória. E quando fui pesquisar, vi que esse mesmo Leandro foi o maior escritor de cordel — mais de quinhentos folhetos — que este país já viu.
• O cordel tem suas raízes na oralidade. Como é fazer cordel com a palavra escrita? O que diferencia o cordelista contador de histórias, que trabalha com a forma oral, daquele que tem seu suporte no livro?
O fato é que a língua é oral. Escrita é invenção artificial. Então, o que o cordel por escrito faz é colocar no papel uma imagem sonora, é uma representação mais próxima da fala. Repare: prosa literária — um conto, um romance — pode estar muito próximo da poesia, como o fazia Eça de Queiroz. Então, estamos sempre falando da mesma coisa: a língua oral foi transcriada para o livro. E o contador de histórias será melhor à medida que devolver essa história — com as entonações, pausas, emoções da fala.
• O senhor também trabalha com adaptação de textos (ou “recontos”), como os de Hans Christian Andersen. O que busca capturar do original e como equilibrar isso com o que o senhor deseja contar e com a sua própria forma e voz?
Andersen foi um grande criador. E como tal, bebeu na tradição de outros contos e recontos que vieram da Índia, da China, de outros lugares da Europa. Muitos de seus contos ele ambientou na Dinamarca. Mas o principal é que a alma daqueles contos é a humana, planetária. E pode ser recontada em outros cenários. Quando reconto A roupa nova do imperador em cordel, por exemplo, situando-a no sertão, quero construir a proximidade dos brasileiros com esses valores universais: a cobiça, a ganância, a astúcia, a arte de enganar, tão próprias dos seres humanos. E, claro, celebrar a nossa língua.
• Seus livros também lidam com temas como a condição dos trabalhadores, a vida no sertão, noções de cidadania e de representação política. A literatura infanto-juvenil deve transferir um valor, uma moral ou uma lição ao leitor? O que o senhor busca de sua escrita para este público?
Toda escrita traduz valores, queira eu, como escritor, ou não. Um grande mestre meu, de eu admirar, é Graciliano Ramos, que ficou famoso por contar histórias de crianças e animais sofridos do Nordeste. Também é minha heroína das letras a Rachel de Queiroz, que falou da seca, da fome. Não sou jornalista, nem documentarista. Não tenho a pretensão de retratar o mundo com uma suposta objetividade. Mas creio que essas crianças que lerão meus livros podem desenvolver uma afeição positiva, uma solidariedade com os sofridos. Não escrevemos literatura para ensinar. Escrevemos literatura para emocionar. Mas sabemos que tais emoções fazem parte da construção do caráter, da personalidade de cada criança (e de cada adulto).
• Ainda sobre a temática, a narrativa de O jumento e o boi se passa num ambiente rural, arcaico, não identificado — trata-se de “um país muito distante” —, em que pai, mãe e filhos trabalham na roça para o sustento familiar. No entanto, a obra é destinada a um público infanto-juvenil sobretudo urbano e de classe média (que teria acesso ao livro), que não conhece ou não se identifica diretamente com o mundo ali retratado — mundo que tampouco tem o apelo de obras de universos fantásticos de dragões e princesas. Por que esta escolha de forma e história?
Em ficção, o que está distante é que é atrativo, chama a atenção. O próprio exemplo que você deu revela isso: o fantástico dos dragões, heróis e princesas é o que está distante, fora dos meus olhos, do caminho da escola, da casa dos pais, da quadra, do apartamento. Então, tudo o que é estranho me fascina. Por quê? Porque todos esses estranhos são o humano. Os dragões expressam os sentimentos de raiva e expelem até fogo do nariz, como muitas de nossas crianças, vivenciando a agressividade humana, gostariam de fazer. E — ainda bem — não o fazem aqui e agora, na sala de aula ou na sala de casa. Mas fazem com a imaginação. Fui buscar esse conto nas Mil e uma noites, obra oriental contada e recontada por séculos e séculos e que fala de princesas, vizires, mercadores, sultões, mas também de simples marinheiros e camponeses. E, principalmente, fala de como um poderoso sultão, doente de cólera, foi curado graças a uma contadora de histórias, Scheherazade.
• O cordel possui uma forma fixa em versos, rima e o compromisso de contar uma história. Como procura explorar essa tradição, lidar com seus limites?
O princípio é o da brincadeira. Eu e todos os rimadores brincamos com as palavras, sejam poetas de bancada, cantadores de viola, improvisadores de trovas, emboladores de coco, ou rappers. Essa parte é o melhor de tudo. Quanto aos limites, não há. Pode ser uma história com quinhentos versos ou com dois. Quer ver? “Era uma vez, uma galinha pedrês…” Pronto, há rima e há história. Que se completa com a imaginação de quem ouve. Contar histórias e ouvir histórias é dominar esse gênero. O que eu sei das pesquisas — e de minha memória de criança — é que esses tamanhos de versos, de sete sílabas, guardam semelhança com o tamanho das frases comuns da língua, do comprimento da respiração de cada emissão de frase. Para resumir, contar histórias em versos é como respirar, para mim. Sem isso eu não vivo. E desconfio que ninguém vive sem histórias. Se elas podem ser em versos, mais divertido ainda.