Mergulho Na Memória

Entrevista com Milton Hatoum
Milton Hatoum, autor de”A noite da espera’
01/06/2002

Milton Hatoum escreve muito e publica pouco. É autor de “apenas” dois romances — Relato de um certo Oriente (1989) e Dois irmãos (2000), ambos pela Companhia das Letras. Nesse longo intervalo de 11 anos, dedicou-se febrilmente a inúmeros projetos. Rigoroso, deixou muita coisa na gaveta — inéditos que hão de permanecer aí pela eternidade. Em conversa com o escritor e jornalista José Castello, no projeto Inventário das Sombras, no Sesc/Curitiba, Hatoum mergulhou com muita vontade em seu mundo criativo, nas dúvidas, no rigor, no método de trabalho, no fracasso, no êxito, na desilusão…

• Por que você escreve?
Eu acho difícil escrever sobre um tema, uma questão que não te toque profundamente. Escrever sobre algo muito exterior a tua vida ou a situações ou questões não vividas, ou não pensadas, não refletidas. Eu acho um risco. Porque corre-se o risco justamente de parecer um texto forçado, um texto falseado no sentido que a linguagem vai passar para o leitor a questão que foi vivenciada profundamente. Então a gente não escreve — no meu caso que nunca escrevi — sobre assuntos, sobre problemas que estão muito longe das minhas preocupações. Problemas que não foram interiorizados e segmentados pela memória. E a memória é o que resta do meu trabalho, é um dos eixos. O passado é quase um imperativo para que eu possa escrever. Então, o passado da lembrança tal qual aconteceu. Mas de alguma coisa que, a partir desta lembrança, desta memória vivida, começa a criar, começa a inventar.

• A impressão que se tem ao ler seus livros é de que a memória é a matéria principal da sua literatura. Mas essa fronteira entre memória e imaginação é quase invisível. Como é que você trabalha com isso? Desde o trabalho íntimo e pessoal até chegar no contexto de fato.
O Mário de Andrade não aconselhava ninguém a escrever um poema antes de 25 anos. Antes do começo da maturidade é difícil escrever. E eu demorei muito a, não a escrever, mas demorei a publicar. Porque eu publiquei o primeiro romance (Caminho de um certo Oriente) aos 37 anos. Escrevia-o desde os 34 anos. Eu mandei para um editor, que não me respondeu, disse que ia publicar e esqueceu… Eu estava em Manaus, muito longe do eixo Rio-São Paulo, e não fiquei apostando, nem telefonando. O tempo foi passando e aquilo ficou lá, perdido. Depois eu descobri que o editor tinha saído da editora e não ia publicar mais nada. Depois, por uma série de circunstâncias — eu ganhei uma bolsa em 88 — eu tinha um contrato com a Companhia das Letras e publiquei. Mas o texto já estava pronto havia algum tempo, desde 86. O que eu quero dizer é que a memória, tudo o que eu escrevo, já aconteceu. O que eu vivi até os 25 anos, nas várias cidades em que morei, já me dá assunto, ou inquietação, para eu escrever até o resto da minha vida. Fundamentalmente até os 30 anos. Até o momento em que eu saí de São Paulo para morar no exterior. Eu acho que nessas viagens, na infância e juventude, e mais as coisas que me contavam, sonhos, inquietações, deram chão a essa ficção. Eu jamais poderia escrever sobre uma coisa que aconteceu no ano passado. Porque está muito perto, o envolvimento seria tão grande… Seria quase um realismo brutal. Quando o tempo passa e quando as nossas memórias começam a perder o contorno nítido, o espaço da invenção cresce. Eu lembro muito de uma passagem da obra de Marcel Proust que fala muito sobre a memória e diz que o escritor inveja o pintor. Ele gostaria de tomar notas, fazer esboços, desenhar, mas se ele fizer isso está perdido. No entanto, não há um único tique, um único gesto, um único comportamento de uma personagem que ele criou, que não tenha sido levado a sua inspiração pela memória. A partir de um momento, a memória passa a ser o movimento do imaginário. Então, aquilo que existiu realmente não faz mais sentido, porque a memória é uma recriação do passado.

• Roubei três frases de uma entrevista que você deu. Perguntaram por que você escreve, e você disse: “A necessidade de escrever surge de uma falta, de uma ausência. Para mim, a arte não é exatamente a vida, mas também não é exatamente a sua negação. Isto é, ficamos num limbo”. Aí há vários aspectos: primeiro esta questão da arte ser a vida e não ser a vida – mas antes, essa questão da falta, da ausência. Talvez tenha sido isto, de fato, que tenha te movido a escrever. Falta de quê, ausência de quê?
Eu pensei muito nisso quando comecei a escrever o segundo romance, Dois irmãos. Na metade do manuscrito eu pensei: “esse meu narrador está repetindo o primeiro”. O drama do narrador do segundo romance é muito semelhante à narradora sem nome de Relato de um certo Oriente. “O que aconteceu com ele? O que aconteceu comigo?” Por que eu insisti nesse narrador um pouco à margem da família, fora da família, mas ao mesmo tempo dentro dela, esse narrador cuja fronteira social é um pouco nebulosa? Ele é um filho bastardo — não que eu seja, eu acho que não, não tenho a menor dúvida quanto a isso. Não é a experiência de ser ou não um filho bastardo, mas é situação de desconforto em relação a pertencer a um único mundo. E depois eu pensei: a minha origem, de filho de imigrante por parte do pai libanês, e o fato de ser de Manaus já cria um estranhamento dentro da minha vida que é importante e que eu não tinha elaborado. Depois eu saí de Manaus, deixei o meu mundo familiar, que era muito intenso. Nos anos 50 e 60 Manaus era uma cidade espetacular, sob todos os pontos de vista. Eu fui crooner de um conjunto que tocava músicas nos anos 60. Convivi com tudo isso, com esse mundo da província, que era uma grande família, uma cidade em que todos se conheciam, e caí numa coisa contrária. Eu quis sair de Manaus. E quis sair sozinho. Fui morar no pior lugar desse país, naquela época: Brasília, que simbolizava tudo o que havia de pior, naquele momento, na vida brasileira. Repressão, censura, regime militar, AI-5… Eu presenciei tudo isso quando tinha 16 anos. Foi um choque muito grande, deixar o meu mundo, aquela grande esfera, aquele grande útero simbolizado por toda a floresta, rio… e ir embora para aquela cidade sem graça, naquela época. Jurei que nunca mais ia voltar, mas voltei 33 anos depois.

• Em Dois irmãos, o leitor pergunta o tempo todo quem é esse cara que está narrando, que só vai se revelar no final. A busca de uma identidade que não existe é de fato o tema?
Nós somos todos um bloco rijo. Somos vários. E o grande problema hoje do neofascismo europeu, é essa busca de uma identidade mista. Na França é o Le Pen querendo seqüestrar, tirar a França da Europa e dizer: “nós somos franceses e ninguém entra aqui”. Mas quem são os franceses? No século 18, As mil e uma noites já tinha sido traduzida para o francês. O imaginário francês já havia se alimentado do imaginário do Oriente havia muitos anos. No século 14, tradutores árabes de Toledo já haviam traduzido os gregos e divulgado para a Europa a filosofia grega. Então que Europa é essa que não quer se misturar? Aquela mistura desde as origens… É um discurso fascista, é um discurso da exclusão. É o paulistano que tem horror ao nordestino e por aí vai. Mas as culturas estão muito misturadas, desde sempre desde as origens. Elas não têm fronteiras. O que existe é uma hegemonia dos grandes centros. Uma hegemonia cultural dos impérios que manipulam, que querem dizer que a cultura mesmo é essa, o filme é o filme de Hollywood, o romance é o best seller americano e por aí vai. Tudo isso se reflete na cultura, nas nossas identidades, que são identidades misturadas. É claro que eu tenho um apego afetivo e sentimental. E não é o sentimentalismo derramado e lacrimoso, o sentimento banal. Eu tenho um sentimento muito medido e pensado sobre as minhas origens. Eu não saberia escrever sobre o lugar sem ter um convívio mínimo com esse lugar. Então Manaus é esse pouco mesmo que está na minha memória.

• Você é um escritor em busca da perfeição, em busca da palavra exata. É um texto muito crítico. Em certa ocasião, você disse: “Não faço parte dessa onda que seduz muitos escritores, o desprezo pela crítica”.
A crítica às vezes é áspera. Não há literatura sem crítica. O romance moderno surgiu com a crítica. Nossa modernidade está também junto com o discurso crítico. Machado de Assis escrevia críticas, escreveu sobre o Eça de Queiroz, e por aí vai. Eu acho que se a crítica for bem feita, for consistente, pode dar pistas para o escritor. Se apontar alguns problemas ou de estrutura do personagem ou de alguma coisa que não dê certo. Eu acho uma coisa importante para você repensar sua obra também. Há formas elegantes, há formas mais violentas, mais consistentes. Depende muito da pessoa. Ríspida que às vezes cria inimizades para sempre, o que é um problema. Eu tive que lidar com isso porque eu sou uma pessoa da literatura. Então, eu trabalhava com os meus alunos o texto escrito. O poema tinha quer ser lido, primeiro uma leitura impressionista depois uma leitura argumentada com base em coluna crítica. Com isso, eu não quero dizer que o leitor não seja soberano. O leitor tem uma percepção crítica que às vezes não é sofisticada, não é priorizada, mas ele tem insight, tem intuições poderosas e eu já ouvi de muitos leitores coisas que eu gostaria de ter lido numa crítica. São pessoas que têm um imaginário, uma riquíssima percepção de texto. Eu também aprendi a não me extasiar com críticas muito elogiosas e não me deprimir com críticas negativas. Eu acho que isso herdei um pouco do meu pai. São coisas que não vão mudar a minha vida. Vão me fazer pensar: o que for bom eu uso. O importante é escrever acreditando naquilo que se está escrevendo. Não estou falseando, não estou enganando a mim mesmo ou ao leitor. Aquilo tem um trabalho de anos e anos pensando, escrevendo. A crítica não é uma verdade. Então, um texto crítico é sempre uma aproximação. Uma leitura crítica é uma leitura aproximada. Um grande poema tem uma dimensão simbólica. Ele tem ali vários movimentos que são perceptíveis pela leitura crítica. Mas ele tem um momento, um nó, um enigma. A crítica certa se aproxima, mas nem sempre desvenda tudo. Por isso a leitura é fascinante. Com a leitura você encontra novas relações e novas dimensões. Essa verdade da crítica é uma busca. A verdade da literatura, se é que existe, não é uma verdade ontológica. Ninguém sabe o que é isso. Mas é uma verdade íntima que o leitor percebe. Ou seja, quando você lê um livro extraordinário do Garcia Márquez , como Crônica de uma morte anunciada, ali existe uma vivência dele com um mundo, com o mundo do Caribe, com Cartagena, com aqueles imigrantes árabes, com aquelas famílias migrantes. Aquilo ele vivenciou ou foi contado para ele. Quer dizer, tudo ali, apesar de inverossímil. No fim do livro, quando ele abre a porta da casa com os intestinos, com as vísceras nas mãos empoeiradas… É fatalmente inverossímil, mas você acredita, porque você já leu aquilo tudo e você sabe que contou com tanta convicção que aquilo tudo está acontecendo. É essa verdade que dá impressão para o leitor de que ele está acreditando naquilo que ele está lendo. Porque certamente o autor — e mais do que o autor, o narrador — vivenciou aquilo. Ele vivenciou a tal ponto de expressar para a linguagem esse passado. É essa verdade íntima de uma obra literária. Tem que sentir aquilo. Se você não interiorizar aquilo, eu acho que não resolve a questão. E o leitor percebe isso também. Percebe quando o romance é um romance, quando o romance é uma imitação de um roteiro de cinema ou de televisão. Diz: “Isso não é um romance, está escrito romance, mas poderia ser um roteiro”. Eu acho importante a diversidade, a crítica. É nesse momento que a crítica diz: “Não, isso daí não é um romance, ou pode ser um romance, ou é um texto uma crônica ou…” Nesse momento a crítica é importante, não que ela tenha um juízo de valor superior. Mas ela sabe discernir uma coisa da outra.

• Sobre o rigor para publicar.
Eu respeito muito os escritores que tenham um ritmo e uma exigência pessoal. Isso muda muito de autor para autor. Admiro quem tem coragem de publicar, isso não é um comportamento geral. Na verdade, quando eu não publico é porque está ruim mesmo. Não é nenhuma falsa modéstia, não estou sendo rigoroso demais. Há um livro que é enorme, passei cinco anos trabalhando no livro. Chama-se O rio entre dois mundos, um romance que mistura muita história com política. No Rio, eu percebi que era um grande desastre. Trabalhei neste livro de 1992 a 1997. Quando acabei e não publiquei, aí eu comecei a escrever Dois irmãos. Sabendo já desde o início que era o livro que eu devia escrever. E esse monstro aí (O rio entre…) Ele é tão complicado e ele é tão falho na estrutura dele que o leitor percebe com facilidade. Quando o livro é muito frouxo, aqui, ali… não segura. Pode ser que cortando, escrevendo… Eu o guardei. E quem sabe futuramente volto, mas quando a gente volta também o fogo não é o mesmo. Tem que escrever com fogo. É como paixão, que tem que ser envolvido com gana. Senão fica artificial, volta aquela lengalenga. E Dois irmãos eu só parei no fim.

• Quantas versões chegou a ter Dois irmãos. Que exemplos concretos você poderia dar para se entender melhor como é o esse trabalho?
Acho que entre oito e 11 versões. Mas no fim, quando eu terminei, dei para alguns amigos lerem. Alguns críticos leitores, principalmente uns apaixonados por literatura e umas quatro ou cinco pessoas. Raduan Nassar foi um dos que leram, e deu boas sugestões. Todos deram boas sugestões: que eu não sabia mais o que eu tinha que despertar ou não despertar. Então, teria que ter as cinco leituras e ir cruzando as observações. Para ver o que realmente era comum a todos. Você pode mudar, tem que reelaborar e escrever. Parece uma besteira, mas nesse aspecto eu gosto de dialogar. Porque a literatura é um diálogo. Então houve problemas, eu cortei muitas coisas. Era um romance bem maior, tinha umas 45 páginas a mais e no fim eu fui cortando reescrevendo e isso demorou um ano.

• O trabalho do escritor é se perguntar como sair de um ponto de partida e chegar ao ponto, chegar a dados?
Como ligar os pontos por caminhos totalmente sinuosos. Por caminhos que às vezes não se encontram. É porque a literatura é basicamente esse movimento de encontro e desencontro. É a busca de um desejo não-realizado. É algo que você vai atrás… e não fica certo porque não deu certo. Como nunca dá certo. Não digo na nossa vida. A gente torce para que dê certo, e eu torço para que dê certo. Mas na literatura são sempre a desilusão e o desencanto que estão em jogo. É o romance da desilusão.

• O método de trabalho.
Eu escrevo à mão. Tenho um caderninho que foi feito em Manaus, com meu passado afetivo de manauara. Aí, vou escrevendo, paro e passo para a máquina, o computador — que serve como uma máquina mesmo. Eu passo a limpo e depois eu continuo. Vou e volto. Faço esse movimento, aí no fim quando estiver tudo pronto eu vou inserindo ou cortando coisas. Sou extremamente obsessivo. Para escrever Dois irmãos, fiz um projeto, fiz vários esboços. Em alguns momentos eu aponto o que vai acontecer, mas nunca acontece exatamente o que você ia fazer. Mas eu procuro ter uma lógica, eu vou tentando encadear algumas cenas, situações. Mesmo dentro de uma ordem temporal totalmente diferente, não na ordem linear, mas vou encaixando tempos diferentes… E depois tudo isso muda, pode mudar, são avanços e recuo que vão acontecendo. Acho que cada escritor tem um ritmo de trabalho. Escrevo muito sobre as personagens, o que eu quero dessas personagens, embora depois elas queiram outras coisas. Às vezes uma personagem que é muito secundária pode crescer. O imprevisto acontece muito, porque o imaginário e a coincidência não são amarrados. Mas o mundo do romance e da arquitetura do poema é uma coisa que você tem que ter o ritmo, e depois tem que encontrar esse ritmo do poema se não falta uma palavra, sobra uma palavra. Às vezes no poema você tem muita palavra ou o verso está muito longo tem que cortar, ou a musicalidade… É uma trabalheira. Eu escrevo quando eu posso, com essa tese eu estou escrevendo um ensaio, tem outras coisas que eu estou fazendo ao mesmo tempo: canções, outras leituras… Quando eu estava em Manaus dando aula, eu escrevia pouquíssimas horas por dia, não tinha tempo, era uma loucura. Era tanta aula, faz isso, faz aquilo, que você não tem mais tempo para ler. Uma das críticas que eu faço hoje é que as pessoas não têm mais tempo para pesquisa, o universitário tem que pesquisar, tem que produzir com calma, sem pressa. Tem que ter um tempo de reflexão para escrever… E isso parece que está faltando no nosso mundo. Um pedido de urgência e de pressa abominável na literatura. Mas quando eu estou escrevendo, estou pensando nos temas, na personagem nesse movimento das feições, em tudo que está em volta daquilo. Tem vezes que você não está escrevendo, mas está ali matutando. Mas eu gostaria de passar o dia todo lendo e escrevendo. Eu não quero sofrer para escrever. Quanto mais tempo você tiver para ler e escrever, melhor. E isso é uma das contradições naturais brasileiras… Se você ganha um prêmio na Inglaterra, você vai ser escritor para o resto da vida. Pode abandonar tudo, que você vai poder escrever sem se preocupar com outras coisas…

• Seus romances têm uma tensão literária de se ir lendo e ter sempre dificuldade de identificar quem está falando, de que tema está falando, de que lugar está falando. E você obriga o leitor, de certa forma, a duplicar sua atenção, ser cada vez mais atento…
Aí são jogos de tempo. Tem o Machado, que está o tempo todo com isso. Gostaria que isso fosse um jogo apenas fútil, ou mero malabarismo de jogos do tempo. Eu fiz isso pensando no jogo da memória, a memória não é linear. O que me deu trabalho foi montar isso. Eu nem poderia ter feito ali cronologicamente um romance linear. Eu não organizei assim. Essas vozes que vão falando, vão contando versões de tempos distintos, às vezes de tempos semelhantes, mas sempre com essa preocupação de montar, de dar uma coerência interna. Porque uma das questões do romance é isso, se depois o leitor não encontrar um conjunto, uma coerência interna do próprio conjunto, ele pode ter uma leitura um pouco enviesada. O grande trabalho é o que você falou, essas tensões no fim criam uma coerência. E ganham uma naturalidade que foi construída.

• É como o pianista que estuda, estuda, estuda, mas que na hora de tocar parece que não está saindo do coração dele…
E no entanto há 30 anos ele está tocando aquela sonata… Sonha com isso desde os 12 anos de idade e aos 46 ele a senta e toca. Mas é um pouco isso, porque vem da tua experiência. Porque escrever não é apenas escrever: é sobretudo ler. Então, as leituras vão te influenciando, sugerindo coisas. E, às vezes, a leitura serve como fonte de inspiração — se é que pode usar essa palavra — ou de desbloqueio, destravamento.

• Você fala muito da vontade de mentir. Como um componente fundamental do trabalho. Você foi um menino mentiroso, você gosta de inventar história?
Eu adoro ouvir histórias. Quanto mais inverossímil melhor. As histórias mais absurdas alimentam o corpo. Há um engano aí, as pessoas pensam que são livros autobiográficos. Quantas vezes me perguntaram se eu tinha um irmão gêmeo!!! Se tem gêmeo na família. Não é por aí. Então, a invenção é importante porque você descola. Aí é uma contradição do passado, tem que descolar certo momento daquilo que você é como sujeito empírico, como autor. Você vai inventar, eu acho que nesse momento as coisas surgem mais. Se eu conseguir inventar a ponto de não me reconhecer como escritor e o narrador, então isso é importante. Porque é um salto que você dá da vida para literatura, pela linguagem.

• Projeto de um novo romance.
Eu comecei outro romance antes de publicar Dois irmãos. Era uma história que já tinha pensado havia muitos anos. É a história de um artista. Tem um nome: Mundo e seu pai. E a partir desse título… Se passa em Manaus um pouco no Rio de Janeiro. É o drama de um artista. E eu comecei, terminei, já tenho aqui os dois. Tenho já umas 80 páginas e gostaria de não demorar 11 anos para publicar. Não por pressa, mas porque essa história me toca profundamente. Então aquele romance grande que eu escrevi, começou a se afastar de mim. E esse, se der certo, pretende ser uma novela. Na verdade, tem mais uma estrutura de novela do que de romance, porque tem uma reviravolta na história que se aproxima muito ao gênero da novela. Se pensar na novela como uma morte de uma coisa anunciada, as noites do perdão… Tem um momento que vira tudo do texto. Aí tem que repensar tudo e o leitor vai ter que repensar todo o livro. E vai ter que reler.

• Você escreveu poesia ou escreve poesia?
Eu comecei escrevendo poesias. E com uma certa timidez publiquei dois livros. Amazonas, um livro de poemas que data de 68. Foram publicados 12 poemas, com fotografias. Eles viajaram muito pela Amazônia, e nos anos 70 começaram as grandes queimadas, as devastações. Eu não escrevi poemas de denúncia, foram poemas que dialogavam. Eu não sou poeta. Oxalá seja enquanto for escritor, enquanto romancista. Mas eu sou um leitor de poesias, e acho que todo escritor, todo romancista é leitor de poesia. E de qualquer forma eu queria que num sopro lírico eu participasse disso… Num momento crítico da vida brasileira em que há uma reflexão. É difícil ser poeta, inventar poesia.

• Literatura e arquitetura.
Eu achava, de certa forma ainda acho, que eu não poderia viver da literatura. Hoje, eu acho menos, um pouco menos. A faculdade de arquitetura da USP era um laboratório para tudo. Saiu de tudo, menos arquiteto, talvez uns 10%. Isso é um dado dos anos 70. Tenho vários amigos que são artistas plásticos, cineastas, dramaturgos, atores. Eu fui fazer arquitetura porque jamais faria engenharia. Fiz alguns cursos de letras na USP, aliás foram importantíssimos os cursos que eu fiz naquela época. Mas nunca fui um arquiteto convicto. Trabalhei como arquiteto, fiz alguns projetos, dei aula da história da arquitetura logo que me formei lá em Taubaté. Um de meus projetos foi uma casa que virou um bar e depois um prostíbulo… Em Manaus, só podia ser da minha querida cidade. O cara foi mudando, se acabar aí acabou. Aí virou um bar suspeito, mas era maravilhoso. Hoje, eu acho que nem existe mais, fiz uma outra coisa assim que não deu certo… Mas eu não era fundamentalmente um arquiteto. E depois quis sair do Brasil, trabalhei na revista IstoÉ. Sou jornalista, assinei várias matérias na revista no fim da década de 70. Fazia um pouco de tudo. Depois veio uma bolsa de estudos, daí pulei o muro. Estava saturado do Brasil e fui morar na Europa. E lá eu disse: “Quero ser escritor”. Mas para ser escritor tinha que me formar em uma coisa próxima da literatura. Então fui ser professor de línguas, em literatura francesa na universidade do Amazonas. Foi importantíssimo, foi uma experiência e tanto, está sendo, aliás. Dou curso em São Paulo de romance na USP e em outras instituições. E isso ao mesmo tempo prejudica e ajuda. Prejudica porque você não fica totalmente solto para escrever, para imaginar. Mas eu não ligo muito para isso quando eu escrevo. Eu fico pensando nos textos teóricos que poderia ler criticamente o que eu escrevo. Quando eu escrevo, esqueço do mundo, as torres podem estar caindo, eu estou escrevendo. E, realmente, quando estavam caindo, eu estava escrevendo e só soube no outro dia. Mas são coisas diferentes. Agora a crítica não precisa ser uma crítica acadêmica, porque a forma do ensaio não é uma forma rígida, ela não é um tratado, o ensaio é um gênero um pouco solto, e tem que ser argumentado. O ensaísta tem que ter um contato muito íntimo com o objeto dele. Mas não é um tratado acadêmico, ele não tem a forma de uma tese, o ensaio é uma coisa muito mais solta, que você encontra na imprensa, nos grandes críticos ensaístas. E há, ao mesmo tempo, uma rigidez teórica. Mas ela não chega a construir um texto legível, pesado. O ensaio tem que ser breve, captar um monte de coisas e ter uma intensidade, tem que ser concentrado, e dar espaço para a imaginação, para a idéia. É claro que você pode sair mais tem que voltar ao assunto. Também não é um obstáculo você dar aula, escrever… Às vezes, o trabalho em jornalismo pode ajudar ou atrapalhar, porque você tem que ter um objetivo, tem que reportar uma coisa que aconteceu. E quando se escreve na literatura, não é o que aconteceu, é o que poderia ter acontecido. Não acontece naquele momento que você está escrevendo. É a situação do escritor no Brasil, poucos vivem daquilo que escrevem. Mas as pessoas pensam muito no consumo. Eu já disse: eu não consumo nada, não tenho carro, estou pouco ligando para as aparências. Eu acho que o mundo está enlouquecendo por causa dessa coisa do consumo. Então, eu posso viver com pouco, eu poderia ter uma bolsa, como se fosse uma bolsa por mês. Eu vivo com isso, não preciso de uma fortuna, materialmente eu não quero muito, espiritualmente queria tudo.

• Dois irmãos dialoga muito com o romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Há alguns elementos muito próximos: a relação conflitante entre os irmãos, as personagens mãe e irmã, os irmãos. É intencional?
Totalmente intencional. Uma das leituras motivadas pelo leitor foi Esaú e Jacó. Eu achava que era um romance menos falado… Esaú e Jacó foi um grande clássico do Machado. Mas aí tem questões e conflitos dos irmãos, a disputa pela mulher, uma disputa que o leitor sabe que é fútil, e também aquela coisa de ser republicano, monarquista… é uma discussão fútil. O Machado é terrivelmente irônico. Eles querem o poder, querem saber quem vai ser o deputado, quem vai ser republicano ou monarquista… No fundo, não interessa muito… Terrivelmente atual, era um bruxo, era um homem que já sabia que o ódio da elite brasileira em relação ao país era uma coisa segmentada naquela época. E hoje o Brasil deu um salto… então pouco importa ser de um partido ou daquele há nuances, nem tudo é igual. Mas, a grosso modo, a participação está. Inclusive há uma frase da Flora que eu me apropriei. A frase está no fim do livro em que o narrador sabe que não vai se afastar dela ele diz: essa mulher maliciosa, com ar meio etéreo…

• Em Dois irmãos, os três filhos da casa estão sempre afastados da casa. O narrador que mora no fundo, o outro que nunca viveu na casa voltou ao Líbano, e a irmã, que só volta para casa para dormir, sempre está na farra. O que esses três personagens refletem?
Quando você escreve o romance, você tem uma concepção do personagem, qual o alcance dela, se ela deve ser uma personagem importante, por quê, como? O narrador eu fiz em uma polêmica que criei com um amigo… O narrador de Dois irmãos tinha um problema porque não podia escrever aquele livro, não podia por causa da diferença cultural. Aí eu disse que ele estava falando com um certo preconceito, porque o narrador estudou. O narrador termina o livro como professor, ele adorava o poeta, ele tem uma formação. Ele é meio excluído, mas foi salvo pela formação, precária, mas existente naquele momento. Então, ele poderia escrever, porque só os grandes podem escrever. Foi exatamente o que eu fiz: eu fui dar voz para um filho bastardo de uma família amazonense, imigrantes mas já totalmente abrasileirados. Mas num alcance maior dizer: Essa pessoa aqui hoje é totalmente excluída pelo brasileiro. São excluídos, são impossibilitados de ler. Então, eu quis que esse narrador fosse o primeiro portador dessa memória coletiva ou familiar. Tem que sobreviver para escrever naquele lugar humilde no fundo da casa. E um dos irmãos mergulha cada vez mais no mundo de Manaus, que a paixão dele é aquela cidade, ele vai para tudo quanto é lugar Estados Unidos, São Paulo… Mas ele só consegue viver ali, aquele é o mundo dele. Mas é um mundo assustador, uma pessoa que elegeu para a vida os caminhos da errância, da impossibilidade de amar alguém. Aliás, ele até se apaixona duas vezes, mas ali tem uma força da paixão incestuosa que é maior. Claro que ali tem uma fraqueza moral daquela personagem. E o outro é um ambicioso traumatizado no momento em que ele saiu do Brasil não se sabe exatamente por quê, nem se sabe decifrar o que aconteceu fora do Brasil, mas que carregou dentro de si essa idéia… Aí vem o mito bíblico de Caim e Abel, Esaú e Jacó… E que elege como outra parte o outro lado do país. Significa ou simboliza o projeto brasileiro de progresso. Que era, ou ainda é, São Paulo. Então, foi nesse confronto em parte moral de dois irmãos brasileiros e duas regiões também. Se estão distantes uma da outra, então estão intimamente vinculadas, porque o Brasil não vive sem a Amazônia e vice versa. Faria ligações fortes que passa pela língua, pela economia, pela cultura. Muito mais do que a gente imagina. Então, eu tentei a partir de um drama familiar, trabalhar um pouco com essa noção de destino de personagens, de ideais de vida e como sempre no romance…

• O alcance da literatura.
Tudo que eu escrevi, se não termina, começa nessa vida pregressa. Eu queria que aquelas histórias fossem drama, tivessem um alcance maior e saísse da cidade, da região. Eu estou narrando coisas dessa cidade mas eu quero falar de outras coisas também … O drama está na literatura, o drama humano. Eu acho que dramas humanos podem ter interesse em forma de conhecimento em maneira de imaginar, de conhecer também essas personagens, esses dramas num Brasil relativamente desconhecido. E não pelo pitoresco mas pelos problemas a serem trabalhados. A vida daquelas pessoas pode ser vivida por um curitibano, por um paulista, por um gaúcho, por um baiano. É o alcance da literatura. Se eu conseguir isso… tudo o que você quer é sair da sua aldeia.

• O domínio da linguagem.
É importantíssimo o domínio da língua. Porque nós estamos falando de literatura escrita, não de narrador, só de contar história. Borges dizia que para você saber quem era a personagem basta prestar atenção ao que ela fala e como ela fala. Mas o discurso delas já está separado do narrador que conta história na terceira pessoa. Não existe no Fausto, como existe no Jorge Amado, o que é um problema. Um narrador culto depois uma personagem que fala errado, ou que fala uma outra linguagem diferente do narrador culto. Em Fausto há uma estratégia narrativa. Em cada capítulo é uma voz narrativa, é uma personagem que fala. Então essa personagem que está pensando e falando só naquele capítulo ela está bem resolvida. Porque ela não está misturada com a voz do narrador de fora contando a história. Mas o domínio da linguagem é fundamental. Você não precisa saber o que é um oxímoro, ou umas figuras de linguagem que são verdadeiros palavrões, ou retórica para escrever. Senão você enlouquece. Guimarães Rosa não conhecia essas figuras de linguagem, no entanto era um leitor incrível de romances. Não dá para você ensinar a escrever romance. Mas dá para uma pessoa aprender a escrever romances lendo bons romances. Aí entram os amigos, a crítica… Pessoas que já leram Manoel Bandeira… Mas tem que ter o domínio da língua, porque se você manda um manuscrito para um editor dizendo “fazem oito meses”, aí não dá. Há um limite para isso. Ou não. Não sou um purista da língua. Não gostaria de mitificar a linguagem culta, porque este é um país de analfabetos, miseráveis. É mais uma maneira da gente cultuar o pensamento de elite. A grande questão é levar a literatura para todas as pessoas.

• Qual é a sua definição de arte?
Entre a vida de cada um e aquilo que se escreve existe a mediação da linguagem. A literatura não diz diretamente. Ela pressente a realidade por uma via oblíqua, que é a linguagem. Em vez de dizer as coisas diretamente, como faria um repórter, a arte é uma forma de transfigurar um momento da vida. Eu acho a vida muito mais complexa do que a arte. É por isso que um romance só pode trabalhar com um recorte da vida, com um fragmento da vida. Mas nesse fragmento existem personagens, situações dramas com as quais o leitor se identifique e projete nele suas angústias e preocupações. Nesse momento, o romance pode ser mais importante do que tudo na sua vida. Do que tudo que você deixou de lado naquele momento para ler. A reconstituição artificial da linguagem faz com que você reviva certos momentos, ou certos dramas que você não tenha encontrado na sua vida.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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