Menos iludido

Entrevista com Paulo Scott
Paulo Scott, autor de “Habitante irreal” Foto: Renato Parada
01/02/2012

Lançado no final do ano passado, Habitante irreal ganhou destaque na mídia, coleciona elogios da crítica e logo entrou em inúmeras listas de livros do ano. Apesar de toda a repercussão alcançada pelo romance, o gaúcho Paulo Scott dispensa a comoção exacerbada, bem como grupinhos e zonas de conforto, preferindo investir no desapego e na compreensão de suas falhas. Sem preocupações com assumir riscos ou provocar, Scott, aos 45 anos, busca escrever sem medo e dar o seu melhor. Na entrevista concedida por e-mail, o autor de três livros de poesia, um de contos e dois romances fala sobre fracasso, crítica literária, seus hábitos como leitor, atividades paralelas à escrita, sua produção e o caos a ser superado a cada dia.

Habitante irreal apresenta uma série de temas atuais: a perda de interesse pela política, desilusão com ideais, a imposição da cultura urbana à indígena, a vida como imigrante ilegal, entre outros. Foi sua intenção, logo no início, tratar dessas questões? É obrigação do artista tratar dos problemas do seu tempo?
Não me sinto obrigado a enfrentar nenhum tema específico, muito menos os de repercussão social. Há, contudo, uma carga de informações, de cenários, que a partir da escolha da história a ser contada ganharam pertinência e por isso mereceram destaque.

• Aliás, qual foi o ponto de partida para o romance?
Dois personagens: Donato, num primeiro momento, e, em seguida, Maína. Elegi as que poderiam ser as suas idiossincrasias, as menos eventuais e alegóricas, e segui em frente da maneira que me pareceu mais acertada.

• O livro foi chamado de romance político. Enxerga-o desta maneira?
Não sei se é o rótulo adequado; entretanto, compreendo o ponto de vista de quem tenha feito tal leitura. A política, as éticas políticas e o engajamento político condicionam a compreensão de um dos personagens principais, sustentando as premissas que o ajudam a realizar suas escolhas — as escolhas de alguém disposto a melhorar parcela do mundo que o cerca. A localização histórica do primeiro capítulo e de parte significativa do segundo vincula um momento único na história do Brasil: a confirmação do processo de abertura política com ênfase na entrada em vigor da constituição federal de 1988, a mais democrática que pudemos produzir, e na eleição direta para presidente da República, combinados com as transformações tecnológicas relacionadas ao acesso à informação, o impacto das mudanças sócio-políticas deflagradas no cenário internacional, como a queda do muro de Berlim, alguns movimentos e rupturas culturais de repercussão inédita. Foi quando se buscou a materialização da dignidade da pessoa humana e da liberdade de expressão como nunca ocorrera antes. Havia muito sonho, muita ambição, tudo isso por conta de um estado de amadurecimento posto (e não apenas pressuposto) ainda não experimentado.

Habitante irreal levou seis anos para ser escrito e teve várias versões antes de chegar à final. Quando soube que tinha alcançado o livro que ambicionava?
O que posso dizer? Nunca se alcança o livro ambicionado. Essa é a verdade. Nesse sentido, a cobrança atenciosa dos editores ajuda bastante. No meu caso, há uma crítica permanente (talvez seja apenas insegurança) que me leva cometer mudanças significativas a cada revisão — cheguei ao ponto de abandonar o livro completo que tinha nas mãos e recomeçar de novo. Entretanto, é bom esclarecer: jamais entregaria um livro que me parecesse inacabado. O livro teve quatro versões; da terceira para a quarta não apliquei o corte brusco cometido da primeira para a segunda, nem o da segunda para a terceira, mas houve a supressão de um capítulo inteiro. Conseguir o desapego necessário para esse tipo de solução é o que eu imagino (ou fantasio) que me dá esperança de ser um escritor melhor. Aprimorar riscos, falhas, verticalizá-los, é uma forma de tentar a tão proclamada voz do escritor; desses riscos e falhas (quando entendidos e assumidos) poderá surgir algo de novo, algo que valha a pena ler e tentar compreender.

• Nesse longo processo, quão importante foi ter outros leitores para o livro em construção e a presença de um editor? De que maneira eles contribuíram (ou atrapalharam) a construção do romance?
Não tenho problema em ouvir críticas. Sei aonde quero ir, sei desconfiar de mim mesmo. Gosto dos diálogos acirrados, desde que honestos (quando a vaidade está em jogo não é fácil ser honesto), quanto mais dura a posição do interlocutor, melhor. Quem te confronta pode estar de fato abrindo novas possibilidades, apontando inconsistências. Gosto, e preciso, da sensação de estar fora da zona de conforto; ninguém progride apenas com elogios, cercado por turminhas, clubinhos, afilhados. Há pareceres, resenhas, opiniões bastante elogiosas e favoráveis que, em seu aval inequívoco, descaminham observações rígidas nada condescendentes, retornos que podem levar o autor a pensar por dias e a rever o caminho que escolheu. De outro lado, há críticas contrárias que confirmam o caminho escolhido; na maioria das vezes, pela incapacidade daquele que critica em avaliar com sobriedade o significado de um trabalho mais complexo, por estar esse trabalho fora da sua rotina de preferências. Nessas situações, a irresignação revela o estado inaugural em que se encontra o auto-intitulado julgador e não há muito que fazer: sua virulência acaba sendo mais consagradora (e causando mais publicidade) do que alguns elogios apressados ou puramente afetivos. Tenho consciência de, em algum momento pretérito, já ter sido apressado e leviano em meus vereditos com relação a determinadas obras — obras que depois, na releitura, confirmaram meu equívoco, minha precariedade, minha pouca bagagem de leitor. Há sempre o momento da exposição (a publicação submete o autor a uma espécie de desnudamento, a uma exposição tremenda, que poderá se desdobrar de muitas maneiras, inclusive na direção do completo ignorar do seu trabalho pela crítica, pela imprensa, pelos leitores). Tenho três leitoras, pessoas que lêem os primeiros tratamentos, pessoas amigas e sempre muito sinceras e cruéis, isso me ajuda muito. Verbalizar — não defendendo o que foi escrito, isso nem seria razoável, mas tentando entender o ponto de vista do outro — sempre me faz avançar. As presenças de uma editora como Isa Pessoa e de um editor como Marcelo Ferroni também me fizeram avançar muito, mesmo quando avançar significa manter a estranheza e os pequenos hermetismos do que foi feito.

• Seu livro de estréia, Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar o sofrimento dos monstros, lançado em 2001, veio quando você já tinha uma carreira na área do Direito. O que o levou a escrever ficção?
Sou de uma família de classe média baixa que nunca deu muita atenção ao universo literário, mas que sempre teve ótimos contadores de história. Meu pai (o primeiro e único de oito irmãos a entrar e se formar numa faculdade) é um ótimo contador de história, meu avô por parte de mãe, meus tios e primos também. Na minha cabeça, há uma tradição lúdica a ser mantida e por isso, mesmo que não intencione e persiga conscientemente, incorporo uma dicção e um entusiasmo que são o resultado evidente das muitas horas que passei perto deles, nas festas de aniversário, na praia, nos churrascos de domingo, escutando, admirando.

• Passaram-se ainda alguns anos até você decidir abandonar o Direito para se dedicar ao ofício de escritor. Conciliar as duas tarefas se tornou impossível? O que mudou na sua produção e no seu processo de escrita a partir do momento em que decidiu viver da literatura?
Havia essa noção (não apenas sensação) de tempo passando, havia muitos projetos e romances rascunhados. Lá pelas tantas — mesmo achando que seria possível conciliar as duas atividades — me veio a certeza de que a única coisa a fazer era largar o Direito e me dedicar à vida de escritor. Por enquanto estou conseguindo me sustentar apenas com o dinheiro que recebo da ficção que escrevi e tenho de escrever à conta de adiantamentos e encomendas, das oficinas, dos roteiros e textos de dramaturgia; isso já ocorre há dois anos, mas não sei se vou mesmo conseguir me manter assim por muito tempo, viver no Rio de Janeiro é muito caro. O que mudou no meu processo de escrita? Posso trabalhar a qualquer hora e pelo tempo que desejar (e conseguir). De resto, o processo de criação literária tende a mudar conforme passam os anos, o autor muda, e suas ações e procedimentos também mudam; não tenho como avaliar isso com exatidão, não agora. As condições de trabalho são melhores, tenho momentos de ócio que antes não havia — a diferença tem a ver com o tempo. Conseguir o tempo de que precisava não foi pouco, o tempo é aliado do escritor, difícil é estabelecer uma disciplina e, em decorrência dela, uma regularidade que impeça a descontinuidade.

• Em entrevistas, você diz se considerar “fundamentalmente um poeta”. O que há na sua relação com a poesia que difere daquela com a prosa?
Os tempos da prosa e da poesia são diferentes.

Paulo Scott Foto: Renato Parada

• Há cerca de quatro anos, você declarou, a respeito do mercado de ficção brasileiro, que “há boa ficção sim, mas que não provoca”. Arriscar-se na literatura — seja no tema ou na forma — é uma preocupação sua? Como busca provocar em sua literatura?
Eu disse ao Miguel do Rosário do Arte & Política que há boa ficção sendo feita no Brasil, mas que não provoca a devida atenção dos consumidores-leitores. Estamos todos tateando no escuro. Não há fórmula para conseguir essa atenção. As editoras selecionam o que há de melhor, segundo seus critérios, fazem suas apostas, gastam dinheiro em edições bem cuidadas, eventualmente os livros ganham prêmios, repercutem bem na crítica, ganham espaço na imprensa, em feiras e festas literárias importantes, e ainda assim não vendem além dos tradicionais três a cinco mil exemplares. Prefiro pensar que isso está mudando, mas sei que a quantidade de autores brasileiros produzindo ótima literatura e tendo bom desempenho no mercado é muito baixa. Quanto às perguntas: não sei se arriscar é o termo correto, não tomo o “assumir riscos” como algo digno de elogio, de aplauso. Provocar? Escrevo da maneira que me parece mais interessante e viável; há muito que dar com os burros n’água nesse processo. Não trato a literatura com romantismo, nem como se fosse algo fácil. Escolho a história, tento contá-la sem medo, todavia sempre desconfiando da qualidade daquilo que produzi. Assisto com prudência à fala dos artistas e escritores cheios de convicções e pré-conceitos — exageros dessa ordem me sugerem afoiteza, uma que não me cabe mais replicar. As escolhas que fiz, ser escritor e viver da literatura, já me parecem aventura e ousadia suficientes.

• Você publicou três livros de poesia, um de contos, dois romances e há pelo menos um outro a caminho, pela série Amores expressos. Como avalia sua produção? Considera Habitante irreal seu trabalho mais maduro?
Às vezes me dou conta de que estou fazendo o caminho inverso, tenho cada vez menos preocupação em impressionar quem quer que seja; um texto que eventualmente resulte mais elaborado é decorrência da minha dificuldade crescente em colocar fim às revisões. Sei é que estou mais lento para escrever prosa. Com a poesia é diferente, escrevo todos os dias, a qualquer hora, de enxurrada; claro, nem todo experimento poético merecerá acabamento. Não sou eu quem está habilitado a avaliar minha produção, também não sei dizer se o Habitante irreal é meu trabalho mais maduro — estou mais velho e menos iludido, mas isso não significa muita coisa.

• Qual sua maior preocupação ao escrever?
Não repetir o que já li e me impressionou e, num grau menor, não me repetir.

• Eventos literários — de palestras a sessões de autógrafos —, entrevistas aos mais diversos veículos e publicações que pedem colaborações somam-se ao trabalho essencial do escritor. Em certos casos, o trabalho como tradutor ou revisor, escrever orelhas de livros, dar oficinas de criação literária, entre várias outras tarefas possíveis, também entram na rotina do escritor. Essas tarefas complementares garantem a sobrevivência do autor ou são um empecilho a seu trabalho?
São atividades que garantem minha sobrevivência, não as vejo como empecilho; gosto das viagens motivadas por compromisso literário. Consigo trabalhar bem em quarto de hotel. Aceitar um trabalho paralelo cuja execução envolve um número baixo de dias me tira da rotina e isso é bom, porque às vezes me obceco, já fiquei três dias sem sair de casa, apenas escrevendo e revisando o que escrevi — isso de começar e não parar, esquecer todo o resto, funciona em determinados momentos, com uma ou outra encomenda, não funciona sempre, não funciona com as narrativas longas.

Habitante irreal teve uma boa recepção, tendo sido apontado por muitos críticos e escritores como o livro do ano de 2011. No que essa resposta é importante para você? A partir de que momento os elogios podem se tornar prejudiciais?
Tenho consciência das minhas limitações, tenho ainda presente o esforço que tive de realizar para chegar à última versão do romance. Escrever não é fácil, persistir não é fácil, minhas pretensões (imagino que seja assim para todo escritor) são sempre maiores do que viabilidade da criação e do resultado, há muita angústia, frustração, ansiedade — ainda assim é o que escolhi fazer. Acompanho a produção literária contemporânea com atenção, sei a quantidade de livros bons e ótimos, nacionais e estrangeiros, que são despejados mensalmente nas prateleiras das livrarias, sei a quantidade de autores estreantes com livros bons que sequer conseguem fazer suas obras chegarem a uma livraria, seus originais chegarem à peneira final das editoras e se tornarem aposta. Receber a aprovação e o entusiasmo de quem você respeita e admira — mesmo não trabalhando em função disso — traz alívio e alegria, não há como negar, mas é preciso lembrar a todo minuto de que você chegou até a data da entrega da quarta prova, onde estavam suas alterações e acréscimos finais, sem a menor certeza de que suas escolhas seriam compreendidas pelos leitores. Você faz o que tem de fazer, pega o caminho que lhe parece o caminho certo; se o livro que você escreveu for ignorado por todos, nisto se confirmará a maturidade, sua escolha já foi tomada, não pode sofrer abalo, você é escritor, precisa produzir, precisa continuar.

• Para o crítico Adriano Schwartz, Habitante irreal é o tipo de livro que, ao término da leitura, produz a sensação quase de “luto inevitável”, o que outros talvez chamariam de “eco” na mente do leitor. Quais as características necessárias a um livro para produzir esse efeito? Com que livros você guarda esse tipo de relação?
O livro precisa ter pegada, como costumam dizer os editores. Não existe uma receita para que isso aconteça; caso houvesse um roteiro, todo aluno habilidoso e empenhado que saísse de uma oficina de criação literária bem estruturada seria um autor de repercussão. Não é assim. Penso que a escolha dos personagens e a linguagem têm algum peso nessa conseqüência. Sendo o tipo de leitor compulsivo que se apega, guardo esse luto com relação a uma boa quantidade de romances, é a tal estratégia furada de diminuir o ritmo para a história durar mais. Em alguns casos, reinicio a leitura para reintegrar (e completar) o panorama oculto nas entrelinhas, o que tomou nova importância com o final, para adensar o que se confirmou para além da mera passagem, para reprisar o que gerou alguma desorientação sem precedente, o tácito, alguma imagem maravilhosa ou o puro assombro.

• Assim como o personagem Paulo, você foi militante político. A política foi uma desilusão para você também? Qual sua relação com ela atualmente?
As relações políticas, sua notícia e suas dissimulações, afetam a todos, mas não revelam a seus destinatários o peso do poder. Nem todos têm aptidão para exercer o poder político (que não é maior do que o poder econômico e, eventualmente, nem maior do que o poder hegemônico das religiões, mas ainda assim é poder relevante) e para disputá-lo. No jogo das prevalências, de modo geral, as condutas pragmáticas têm pertinência maior do que os ideais — em vários momentos da história ocidental, o idealismo foi privilégio dos tolos, mas sobre essa pecha é preciso que se descubra esperança, diálogo, empenho por melhora, daí a dúvida presente quando se contempla, com seriedade ou desespero, as complexidades contemporâneas. Sob a perspectiva do personagem Paulo, o cotidiano político é o lar da desilusão — alguns não admitem isso e, paradoxalmente, também não se alienam (ou pelo menos acham que não se alienam), tentam a invenção de alternativas. Paulo advém desse contexto, desse quadro que foi ainda mais pitoresco nos anos de lenta superação do regime militar inaugurado em 1964. Desilusão não é desculpa. Fui militante, depois acadêmico, hoje minhas ações se resumem ao universo literário. De todas as influências que apercebi, sem qualquer artifício retórico da minha parte, o que chegou por meio da leitura de obra de ficção ou poesia foi o que de fato permaneceu; a arte tem esse poder. Como diz o poeta português Ernesto Manuel de Melo e Castro, ele próprio parafraseando outros, bastam trezentos exemplares de um bom livro de poesia para mudar o mundo. As elites sabem disso, os que educam seus filhos para “mandar no mundo” sabem disso, as nações que laureiam sua dúzia de poetas mais importantes, sob argumento de que é muito difícil preservar sua identidade, sua civilização, sem uma grande voz, sabem disso — há engrenagens do cérebro que só entram em funcionamento e progridem por meio da arte literária —, mesmo os que contam apenas com seu carisma e sua inteligência excepcionais sabem disso.

• Um aspecto que chama atenção no livro são as escolhas feitas pelos personagens. Dar carona a uma índia no meio da estrada, “se deixar” apaixonar por essa garota de apenas 14 anos, incesto, viver como imigrante ilegal em Londres, colocar de lado toda uma educação formal e um futuro talvez brilhante para encontrar suas origens. O que nos leva a seguir tais caminhos?
A história dita seus meandros, as personagens precisam de singularidade e também de coesão. O bom do texto literário, sobretudo quando se trata de narrativa longa, é que o autor pode fundar sua própria coerência. Essa autopoiese é prerrogativa da arquitetura literária. Uma decisão, mesmo que decorra de um mero impulso, pode alterar os rumos de uma vida para sempre, somos títeres, titereiros. Não há ordem, há caos, um caos que precisa ser superado a cada dia — não há dúvida de que ignorar isso torna a vida mais confortável, suportável. O excepcional faz parte do ordinário, o ordinário não se compõe de coisas idênticas (não quando o olhar se aproxima, assume as meticulosidades); o excepcional difere do impossível e difere também do abstrato absoluto. Gosto dessa inclinação e desse tangenciar, gosto de estressar, em suspensão e tensão, a mecânica da narrativa até a fronteira do absurdo, exigir das personagens o seu limite. A existência por si só é absurda, seus fenômenos e seu corriqueiro são absurdos, nisso está a graça de contar ou, como me parece mais adequado dizer, a graça de recontar (o refazer que será sempre imperfeição, falha, aversão, parcialidade).

• À página 157 de Habitante irreal, lê-se: “Decepção é uma palavra que Donato não gosta, mas que apesar disso o ajuda a compreender o mundo, mais até do que outras palavras boas de dizer”. Essa é uma palavra que também lhe ajuda a compreender o mundo?
A temática do livro gira em torno da noção de identidade, do controle dessa identidade. Diferentemente do arrependimento, cuja ocorrência tem ligação com a decisão daquele que se arrepende, com sua inércia, a decepção, ao se vincular a ações externas e que não podem ser controladas pelo que se decepciona, gera, agrava, catalisa para a criança, sobretudo, a percepção do sentimento de impotência. Donato foi jogado num enredo de expectativas, numa circularidade de cobranças (não é à toa que ele gagueja) que o tornou beligerante, mas não contra o mundo, contra si mesmo. Da minha parte, e sem cair em eventual arremedo de sessão de análise, posso dizer que a vida não segue a estética do samba, do blues; não deveria, pelo menos. Não é razoável ficar culpando os outros (coisa triste precisar atacar outros para manter os próprios êxitos, para se promover, para se curar). As inconveniências (a parede de concreto armado fictícia que elas produzem) e o espectro de soluções sob nossa ingerência pessoal (sem perder de vista os próprios erros) conflitam, e desse conflito, quase permanente, sai a consciência que permite distinguir o verdadeiro querer, a partir do qual é necessário compreender a própria identidade, do mero desejo, que se alinha à negação da real identidade. Penso que nós, brasileiros, temos grande dificuldade em assumir a própria identidade, tento romper esse encadeamento dentro da minha cabeça — decepções funcionam dentro de um curso de bagagens que se acumulam em nosso juízo formando critérios; na medida em que percebemos o lado fortuito da vida, tentamos amadurecer. Não sei se, neste espaço curto de entrevista, eu poderia dizer muito mais sem parecer descaradamente um farsante, um charlatão. Ficarei por aqui.

• Em Voláteis e em certos contos de Ainda orangotangos, conquistas materiais e o conseqüente status que elas trazem são o objetivo de inúmeros personagens. Já em Habitante irreal, Paulo e Donato abandonam o que poderíamos chamar de um futuro promissor para buscar algo mais, e as conquistas (cargos importantes, status) das pessoas ao seu redor são vistas com ironia. Para você, qual a maior conquista possível? E como escritor, o que deseja alcançar com sua literatura?
Não tenho certeza se no juízo dessas personagens prevalece o sentimento de ironia (mesmo que a narrativa induza a essa versão), penso que, sobreposto à ironia está, na verdade, o desencanto e sua ambivalência. Como escritor (e fazendo um esforço grande para não fugir correndo da pergunta)? Coerência.

Paulo Scott Foto: Renato Parada

• Seus personagens parecem ser assolados pelo fracasso, sem que haja alternativa a ele. O que é fracasso para você?
Meus personagens lutam para não fracassar. O fracasso é um estigma recoberto pela variação de quem olha: de onde olha e como olha. Pode ser que nem exista.

• A desilusão de Paulo, personagem de Habitante irreal, parece não ser apenas com relação à política. Ele também parece parar de acreditar no nosso modo de vida, nos valores da sociedade e até mesmo no ser humano. Esse “mal do século” te atinge também? Como anda sua fé na humanidade?
Aceito a humanidade, tento colaborar, tento não atrapalhá-la demasiadamente.

• Você já declarou que o tema de seus livros é o amor, enquanto o que normalmente é ressaltado de sua prosa são personagens em situações-limite que envolvem drogas, álcool, paixões violentas, roubos. Sobre que tipo de amor você quer falar?
O amor é um ideal, talvez o maior ideal produzido pela raça humana. E a conjugação entre amor e contrapartidas me interessa; várias das minhas personagens são pessoas que dispensaram (ou perderam) as contrapartidas, o anseio pela correspondência, não enxergam mais a correspondência, mas seguem em frente às cotoveladas. Não há como ignorar os dilemas pessoais, a busca por alguma razão, alguma justificativa; tudo se resume aos próprios conflitos e o inimigo não são os outros.

• As situações extremas que você narra devem boa parte de sua força aos personagens. Cometendo erros, crimes, se autodestruindo ou destruindo os que amam, seus personagens parecem exemplificar bem o aspecto “humano” do ser humano. Mas em alguns momentos eles mostram um outro lado, que parece então justificar determinada crença na humanidade. Como é a construção deles?
Como todo escritor, observo. Gosto das ruas. Gosto de observar. Certamente a leitura que faço das situações não é a correta, nem precisa ser, mas é suficiente para emendá-las e reinventá-las de um modo que me pareça interessante, que possa instigar e eventualmente entreter. Não posso me esquecer de anotar que o personagem Donato veio de um pesadelo: um sujeito usando uma máscara de madeira repulsiva, medonha, e sussurrando para mim coisas inteligíveis e me causando, naquele mau sonho, tristeza.

• Construir uma personagem como Maína, uma índia de 14 anos, e seu filho, Donato, criado por um casal de pesquisadores de classe-média e que teve uma infância padrão, mas então decide reencontrar suas origens, foi um desafio maior do que o trabalho com personagens mais próximos de sua realidade?
Donato não chega a uma decisão clara, ele se precipita conduzido pelo infortúnio (que inicialmente deveria ser fortuna), é uma peça dentro da tragédia de Maína — mesmo sendo em tese o protagonista da segunda parte da história, o oriente do palíndromo. Procurei não falar do que não conheço. Contar a história de uma índia desgraçada (inclusive pela sua ambição em ser feliz) não é tarefa simples — se o romance consegue a cumplicidade do leitor é porque as bases da narrativa são verossímeis e, mesmo no estressar excêntrico das personagens, adequadas ao reflexo do aniquilamento das soluções urbanas.

• Além da identidade dos povos indígenas, o “sistema” e a sociedade não estariam acabando também com a identidade pessoal e individual de cada um de nós? Como lutar pela identidade própria?
A procura pela identidade é uma constante (deveria ser uma constante); não há mapa turístico para como chegar lá. Não sei se consigo dizer algo além do que já disse.

• Você já foi identificado como integrante de uma “nova safra de autores” e de uma geração (ou mais). Em algum momento se sentiu de fato membro de uma safra ou geração? Há algum valor literário nessas caracterizações?
Quando se analisa um objeto, um acontecimento ou o que for, é preciso sistematizar, buscar enquadramentos, categorias, agrupar, distinguir. Os interlocutores podem não concordar. É difícil não reduzir a riqueza do que se estuda; só a filosofia sustenta o olhar absoluto — e por isso sua argumentação é sem moldes, interminável e capaz de atacar tudo e jurar a solidez dos próprios termos. Os que estudam a literatura contemporânea e se arriscam apresentando suas conclusões, principalmente no contexto acadêmico, têm méritos, há mérito em qualquer análise séria. As análises e diagnósticos deveriam ser em maior número. Isso sim. Não me alinho com quem apenas reclama da leitura que se fez do seu trabalho.

• Não há forma ideal de leitura, um livro pode ser lido de várias maneiras. Mas como gostaria que as pessoas lessem sua literatura?
Tento não pensar nisso, porque ler sempre será “refazer” (reinaugurar) a obra lida.

• Um tema marcante em Habitante irreal é o fracasso de uma geração cheia de ideais que ambicionava mudar e melhorar a situação política e social do país, mas que acabou justamente por se acomodar, perdendo suas inquietações e valores. O que as próximas gerações podem fazer para não fracassar?
Fracassar não é o problema, o que considero e faço questão de registrar é que a minha geração garantiu que não fracassaria; isso foi de uma arrogância absurda.

• Quando envelhecemos, perdemos uma parcela da nossa rebeldia. Ficamos mais “calmos”, e isso parece natural. Mas que característica você gostaria de evitar perder para o tempo?
Embora reconheça que depois da rede mundial de computadores escritor algum tenha desculpas para ser ingênuo, eu responderia: a ingenuidade.

• A certa altura de Habitante irreal, lê-se: “Jamais poderei salvar o país ou o mundo, Luisa, as dramaturgias não têm esse poder”. Passando essa questão à literatura, ela tem o poder de salvar algo?
Prefiro imaginar que sim.

LEIA RESENHA DE HABITANTE IRREAL.

Yasmin Taketani

É jornalista.

Rascunho