A palavra como forma de meditação, buscando por meio do verso não apenas um exercício de cunho restritivamente estético, mas a materialização dos processos introspectivos que tangenciam sobre a própria consciência do artista. É nessa ponte entre vida e obra que se encontra o novo trabalho do poeta e jornalista Ramon Nunes Mello — Há um mar no fundo de cada sonho. Antes, publicou Vinis mofados e Poemas tirados de notícias de jornal.
O novo livro é resultado de uma profunda e difícil experiência do poeta após se descobrir soropositivo. Não é a toa que a espiritualidade, o silêncio e sua íntima relação com a natureza ganham explícita dimensão em seus novos poemas, que também evidenciam a força e a esperança do poeta ante a uma nova realidade em que o caos da forma é modificado pela sublimidade do verso.
Na entrevista a seguir, o poeta fala sobre a sua nova poética, o encontro com o teatro, a paixão pela literatura, a atuação como jornalista literário, a formação política, seu interesse nos últimos anos pela cultura indígena, o trabalho de curadoria da obra de Adalgisa Nery e a percepção da vida hoje.
• Em Há um mar no fundo de cada sonho podemos destacar uma nova fase apresentada no seu trabalho. Como foi chegar ao conjunto de poemas deste livro?
Para responder, preciso voltar aos meus trabalhos anteriores. Comecei com o Vinis mofados e depois com o Poemas tirados de notícias de jornal, que são dois livros bem distintos um do outro. O primeiro é de 2009, foi minha estreia, e mostra minha relação com a música popular brasileira, os cantos e também com a literatura do próprio Caio Fernando Abreu, sobre essa coisa das relações afetivas. O segundo traz a relação da poesia com as notícias de jornal, como o próprio título já diz, e sobre como lidar com essa quantidade de informações. O que é poesia e o que não é poesia. Há uma reflexão, um questionamento em torno disso tudo. Já o terceiro livro se aprofunda na minha relação com o silêncio, com a palavra, que já existia nos meus livros anteriores, mas que se tornou mais fundamental no meu trabalho. Comecei a escrever Há um mar no fundo de cada sonho em 2012. Em 2011, comecei a rabiscar alguns versos, mas foi em 2012 que efetivamente comecei a me dedicar aos poemas. É muito difícil falar sobre o processo de criação na poesia, porque não tenho o hábito de escrever poemas todos os dias. Vou rabiscando os versos e aos poucos guardando para depois serem retrabalhados. Esse livro em específico me coloquei num lugar diferente dos outros, de mais reflexão, de mais silêncio, de tentar ouvir o que essa voz interior tinha a dizer, mesclado com todas as leituras que eu vinha tendo ao longo do processo de escrita, não só desse livro, mas dos anteriores. Fui tentando buscar uma dicção que fosse mais própria do que eu acreditava. E no meio desse processo de escrita fui atravessado por inúmeros acontecimentos fortes na minha vida. Um deles foi o mais forte — o diagnóstico soropositivo. Isso me fez ter uma reflexão mais profunda da vida. Por consequência, não sei se por consequência, uma busca mais espiritual com a existência. Então, é um livro que traz uma poética mais metafísica, mais reflexiva. Fui investigando poetas que traziam isso em sua literatura. Fui ao Murilo Mendes, à Cecília Meireles, ao Fauzi Arap, que é um autor de teatro, falecido recentemente; Néstor Perlongher, um autor argentino que morou em São Paulo; Al Berto, poeta português; Roberto Piva, que tem uma relação xamânica com a poesia, que é uma relação que me interessa profundamente. A relação com a natureza. E essa conexão que encontrei com a natureza também foi importante para eu entender o meu processo de criação, de entendimento dessa poética que estava desenvolvendo.
• Seu primeiro envolvimento com o universo artístico foi no teatro. Como se deu esse encontro do poeta com a dramaturgia e, aliado a isso, de que forma a literatura passou a fazer parte também da sua rotina como artista?
Sim, foi o teatro que chegou primeiro na minha vida. De todas as artes foi a que se fez presente, de maneira bastante intensa. Eu me lembro em Araruama [RJ], com os meus pais, e a vontade que eu tinha de ser ator, de estudar teatro. Cheguei a participar de grupos teatrais na cidade. Quando terminei o ensino médio, vim para o Rio com o propósito de ser ator e fui estudar na Escola Estadual de Teatro Martins Pena, que é uma das escolas mais antigas de teatro da América Latina, uma instituição pública que até hoje existe e forma pessoas fundamentais na cultura brasileira. O teatro foi uma presença muito forte. Sempre gostei de escrever, mas era de uma maneira tímida. Sempre fui muito de ler, adorava literatura. Tive o estímulo não dos meus pais propriamente, mas dos professores da escola. Meus professores de português me davam livros e eu ia lia. Maria vai com as outras, da Sylvia Orthof; ou Pedro Bandeira. Lendo aqueles livros, ia me instigando o interesse de querer escrever, mas ao mesmo tempo sem saber como que se escreve. Era algo que estava ali, mas que, em primeiro lugar, o ator falava mais alto. Quando fui para o teatro, passei a ter acesso a uma biblioteca de literatura dramática da Escola Martins Pena, e comecei a ler muitos textos teatrais: Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Leilah Assunção… E também encontrei textos teatrais do Caio Fernando Abreu. E quando li os textos do Caio, fiquei muito impressionado. E aí fui procurar os romances, os contos. Comecei a me encantar muito por aquele universo. Descobri a Clarice e outros autores. Um autor foi levando a outro. Descobri os poetas. Foi uma cadeia.
• E com relação ao teatro?
Eu fugi do teatro. (risos)
• Mas e o ator, ainda existe? Pergunto isso porque o seu trabalho literário também já esteve ligado ao próprio uso da performance. Quero dizer, a palavra também se contaminando com o visual, com essa coisa do corpo, da encenação.
Na verdade, não fugi do teatro. Acho que fiquei mais apaixonado pela literatura, pela poesia. Eu não seria o que sou como ser humano se o teatro não tivesse aparecido na minha vida, porque a minha formação literária, afetiva, intelectual e política passa pelo teatro. As pessoas que me ensinaram, que me deram aula de teatro, os alunos que estudaram comigo, os meus colegas formaram a minha personalidade. Na troca, na convivência, nos debates, nos encontros e tal. Então, eu tenho uma profunda gratidão ao teatro, porque se estou hoje na literatura, na poesia, é por causa do teatro. Geralmente, não coloco na minha biografia que sou ator. Porque para ser ator se exige uma profunda dedicação, assim como na poesia. Embora tenha formação no teatro, eu não tenho talvez a vocação do ator, de ensaio e dedicação. Então me considero mais um ator bissexto. Se tiver vontade de fazer um determinado projeto, eu vou lá e enceno. Como encenei em 2011 Todos os cachorros são azuis, em que fui para o palco como ator, além de fazer a dramaturgia junto com a Manoela Sawitzki.
• Voltando ao seu recente livro, questões como a espiritualidade, a comunhão com a natureza, o amor e o silêncio, como já foram ressaltadas por ti, tornaram-se essenciais em sua poética. É possível dissociar a vida do poeta com a própria obra quando executada? Em qual momento essa voz que se materializa em poesia se nutre da vida do artista enquanto homem comum?
Acredito que a literatura e a vida estejam profundamente ligadas, embora elas não sejam a mesma coisa. O que me nutre a escrever poemas é a minha própria experiência de vida, as minhas leituras, a minha relação com a existência. Então, não consigo dissociar no momento da criação. Porém, a literatura exige um processo de reflexão, de criação, de busca da palavra, da linguagem, da expressão, que extrapola a biografia. Aí entram a criação, a vontade de querer se expressar através dos versos, da palavra, misturando ficção com realidade e poesia, tudo isso. Acho que tudo é uma grande encenação, até a própria vida. Vamos escrevendo a nossa história com as escolhas que fazemos.
• Nunca entendi essa coisa das pessoas diferenciarem a ficção da realidade. Porque acredito que ficção e realidade sejam quase a mesma coisa. O tempo todo nós ficcionalizamos a vida…
E por vezes a realidade é mais absurda do que a própria ficção. Tudo é uma construção. Mas acho que com a literatura há a consciência dessa construção. A consciência de que estória quer ser contada, de que palavra ou de que verso deve estar naquele poema. Tudo é a intenção, porque na vida você não fica o tempo todo pensando: ah, eu vou fazer isso porque… Não tem como. Senão você não vive. Então as escolhas são mais livres. Na literatura não, é como se você tivesse uma total consciência das escolhas. E também do brincar com essas escolhas. Brincar e dialogar com quem veio anteriormente, que é o lugar das leituras que a gente faz. Tem um verso no Poemas tirados de notícias de jornal que fala: porque está tudo no passado, o futuro se tropeça com ele. Porque realmente está tudo no passado, né? Tudo foi feito, e é refeito. E toda vez que é refeito, é de forma diferente. Nada é novo. Não tem novidade. Tem recriação, apropriação. A gente mastiga e degusta tudo isso para poder fazer uma outra coisa que é diferente. Acho que o meu processo de criação passa muito por esse lugar de contaminação com as coisas, com a vida. De permitir que as relações afetivas, de trabalho, amorosas, com os livros e com a literatura me afetem para que eu possa transformar isso em linguagem, em poesia, de estar aberto e conectado a tentar expressar da maneira que considero mais coerente com o meu processo de vida e criação.
“Eu acredito que a literatura e a vida estejam profundamente ligadas, embora elas não sejam a mesma coisa. O que me nutre a escrever poemas é a minha própria experiência de vida, as minhas leituras, a minha relação com a existência”.
• Além de poeta, você é jornalista, analista de literatura, pesquisador acadêmico e produtor cultural. Como é conciliar essas múltiplas personas com a vida pessoal?
Eu não sei como concilio. Acho que a vida exige. Então a gente acaba tendo que fazer determinadas coisas para sobreviver, pagar as contas. Não que faça isso somente para pagar as contas, mas acho que todas essas atividades que você listou estão relacionadas com a palavra. Então, tento de certa forma direcionar essas minhas atividades profissionais para áreas que me interessam, e que se relacionam à literatura, às artes, à leitura, ao pensamento. Como conciliar, eu não sei, porque a vida própria vai ensinando. Talvez eu tenha aprendido nesse tempo todo tentar manter a serenidade e se manter no presente, no aqui, agora, para fazer uma coisa de cada vez. Cada coisa no seu tempo. E também entendendo que uma atividade não anula a outra. A gente é um ser múltiplo. Não vai anular o fato de eu estar trabalhando como jornalista ou curador ou analista de literatura, o fato de eu ser poeta. Ao contrário, todas essas atividades se complementam e me dão alimento para poder escrever. Não me sinto dividido, entende? Embora sejam muitas coisas, são partes minhas que acolhi e aceito todas elas. Se pudesse escolher, ficaria somente lendo e escrevendo poesia. Mas como essa não é a minha realidade, então que eu possa viver a realidade que existe da melhor forma possível.
• Você chegou a dizer em uma determinada entrevista que não faria o menor sentido publicar Há um mar no fundo de cada sonho sem que o público soubesse de sua atual condição de saúde. Como foi chegar a essa percepção de que as pessoas deveriam saber sobre o poeta ser portador do vírus HIV?
A literatura pra mim é o lugar da liberdade, é o lugar onde posso fazer o que eu quiser, dentro das regras que existem para mim, na minha criação. Não me sentiria honesto comigo, se tivesse que escrever um livro em que sentisse vergonha de um determinado poema que abordasse a temática do vírus HIV. Eu me sentiria um impostor se tivesse que omitir determinado assunto porque vão pensar isso ou aquilo. A minha necessidade de criação, a minha necessidade de expressão falou muito mais alto, e fez, de certa forma, me expor em relação a minha vida pessoal, que é um assunto que não diz respeito a ninguém. Mas que, por outro lado, é um assunto considerado um tabu, mas considero que todas as pessoas que se colocam com a questão da visibilidade em relação ao vírus HIV contribuem para a diminuição do estigma e do preconceito. Então, por outro lado, acho que também esse ato, para além de ser uma necessidade literária, de criação e de liberdade, traz um lugar de um ato político de falar: sim, eu estou soropositivo e podemos conversar sobre isso. Porque são 700 mil pessoas no Brasil que convivem com o vírus HIV. Tem uma frase do Betinho que sempre repito e amo, em que ele fala que a Aids tem que ser tratada de forma política. E tem de ser. Porque estamos falando de saúde pública, de existência e de humanidade. E não há nada mais humano do que a poesia. Então, não poderia omitir algo que para mim é humano. É uma necessidade humana de se falar sobre coisas. A humanidade evolui e a gente tem que evoluir junto com ela.
• E como a sua família e os seus amigos reagiram com essa atitude de vir a tornar pública esta questão?
Antes de me preocupar com a minha família, eu me preocupei comigo. De como eu reagiria em relação ao vírus HIV. Foi um processo dolorido, mas de muito amadurecimento. Porque me trouxe uma visão mais humana da vida, um entendimento do sagrado, da minha espiritualidade, da valorização dos direitos humanos. Então me trouxe um despertar importante. A partir do momento que compreendi isso, aí me preocupei em conversar com os meus pais, porque eu tinha a intenção de abrir isso publicamente. E, além de conversar com os meus pais, conversei também com o meu parceiro na ocasião de que iria abrir publicamente. E graças aos Deuses, e acredito em Deuses, eu sou cercado de pessoas amorosas, muito afetivas. Então, desde o início da descoberta do vírus HIV na minha vida, tive um amparo de pessoas muito amigas e muito solidárias, que me deram um suporte para eu tomar essa decisão que tomei, e para chegar a esse momento aqui de conseguir conversar sem nenhum constrangimento, sem nenhum medo, sem nenhuma necessidade de me sentir inferior por conta disso. Porque o imaginário que existe em torno do vírus HIV é muito profundo e muito cruel. Infelizmente, a sociedade ainda enxerga com uma lente dos anos 80, como se as pessoas que convivem com o vírus HIV tivessem uma cara ou pertencessem a um grupo social, quando isso é uma mentira, uma bobagem. É um vírus que está aí e todo mundo está sujeito a entrar em contato, infelizmente. Tive esse amparo que me trouxe um afeto, um entendimento, uma necessidade de me olhar e de querer entender o que estava acontecendo comigo. E também de solidariedade. Acho que é uma palavra que chegou junto com o diagnóstico. Desde o início, tive o entendimento que eu queria abrir a questão para que eu pudesse de alguma forma, mesmo que pequena, contribuir para uma reflexão. Quando decidi abrir, resolvi conversar com os meus pais. Não é uma notícia que a família espera: pai, sou gay, estou soropositivo. Eles sempre souberam da minha sexualidade, mas nunca se meteram ou julgaram a minha decisão, pelo contrário, sempre foram muito amorosos. Obviamente quando eu trouxe a notícia do diagnóstico eles ficaram tristes e preocupados, mas eu estava fortalecido suficiente para dizer a eles: não se preocupem, estou bem. Não vai acontecer nada. Então, foi um processo de amadurecimento que a minha família tem acompanhado, e acho que será para a vida toda.
“A minha aproximação com a cultura indígena se deu a partir do Xamanismo, do contato com a natureza e do entendimento da sabedoria dos povos indígenas. O que está acontecendo no Brasil é um genocídio”.
• Em trecho do poema silêncio, você diz: “me diga o que é essa estranha serenidade cultivada no desespero da desordem”. E eu te pergunto, o que é essa estranha serenidade cultivada no desespero da desordem?
Essa serenidade se chama fé. Fé na vida, fé na existência, fé na humanidade. Essa serenidade vem desse lugar, dessa conexão com a natureza, com as minhas crenças e mitologias pessoais. A serenidade é isso.
• Você esteve no Xingu e em algumas aldeias indígenas nos últimos anos. Como surgiu o interesse pelos povos indígenas e o envolvimento também com os direitos humanos?
A minha formação política começou muito cedo. Meu pai é uma pessoa muito envolvida com a questão política. Ele me trouxe valores muito importantes em relação à questão política. E depois a minha passagem pela Escola Estadual de Teatro Martins Pena também. A minha formação política se fortaleceu ali. Fui presidente do grêmio da escola durante uns anos. E a gente tinha brigas homéricas com o governo do Estado do Rio de Janeiro, na época com a Rosinha e o Garotinho, por lutas como o passe livre para os estudantes de Artes ou pelo próprio pagamento de salário dos professores. Então, essas questões políticas sempre foram muito pungentes na minha vida. Essa vontade de querer que as coisas fossem mais justas. A minha aproximação com a cultura indígena se deu a partir do Xamanismo, do contato com a natureza e do entendimento da sabedoria dos povos indígenas. O que está acontecendo no Brasil é um genocídio. Estive recentemente no Xingu, na aldeia Afukuri, da etnia Kuikuro, que fica no alto Xingu, que é distante de Belo Monte. Mas você vê o impacto de uma usina hidrelétrica dentro de uma área de preservação ambiental. Fazendeiros esbarrando ou ultrapassando o limite do parque para poder fazer fazendas de soja, aquele deserto de soja. Então, tudo isso é triste e absurdo. Fora todos os desrespeitos com os direitos humanos dos povos indígenas brasileiros, porque são os povos originários desse país. Com o tempo, fui ficando cada vez mais próximo dessa cultura e solidário a esses povos, porque entendo que a sabedoria e o conhecimento deles são muito grandes, está além da cultura letrada, da academia, está na força da energia da floresta, do rio, das montanhas, do entendimento da natureza mesmo. Então é por aí que passa a minha formação política.
• Com a revolução no mundo digital, novas formas de publicação e estratégias de divulgação têm sido adotadas entre os mais diferentes escritores, além de permitir uma troca mais direta entre o autor e o leitor. Como você enxerga essa questão?
A internet é um paradigma na sociedade como um todo. E como a gente lida muito com a imagem e a palavra, mudou profundamente a nossa forma de se relacionar com a literatura, além de ter permitido acesso dos leitores de uma forma mais próxima aos escritores, e dos próprios escritores a expor seus textos, porque antes ficavam muito à espera de um jornal ou de uma editora para publicar. Vejo uma força positiva dentro disso. Talvez o lado não tão positivo seja a enorme quantidade de informação que nos bombardeia o tempo todo. Isso acaba cansando um pouco.
• E o que você tem lido ultimamente?
Tenho lido muito o Roberto Piva, que é um poeta que me instiga muito; o Al Berto; a Sophia de Mello Breyner Andressen; Néstor Perlongher… Gosto muito de poesia portuguesa. Dos brasileiros, sempre releio o Drummond. Aprendo muito com a releitura do Drummond. Fico também atento a ler a poesia contemporânea, os poetas que são os meus pares, do meu tempo. Tenho um apreço muito grande pela poesia da Bruna Beber. Há dois poetas que não têm livro publicado, mas que gosto muito: Tainá Rei e Vinicius Varela. Estou lendo, por conta do mestrado, muito a Adalgisa Nery. Então, estou nessa relação de amor e ódio.
• Inclusive, você faz um trabalho de curadoria da obra da escritora e poeta Adalgisa Nery. Como você chegou à obra da escritora e o que instigou levá-la para a academia?
Acho que não encontrei a Adalgisa, fui encontrado por ela. Uma vez o escritor Bernardo Carneiro Horta escreveu uma biografia da Nise da Silveira, eu estava desempregado, e ele me sugeriu que eu fizesse uma matéria para o jornal sobre três mulheres que ele considerava fortes: a Yolanda Penteado, a Maria Martins e a Adalgisa Nery. Eu li a biografia das três, e iria fazer o perfil de cada uma, mas na época a matéria caiu. Então, sugeri fazer a matéria da poeta Adalgisa Nery, com a qual mais me identifiquei. Fiquei muito impressionado com a poesia dela, a literatura e a sua biografia também, porque era uma mulher que foi escritora, jornalista e deputada durante três mandatos da Guanabara, no Rio de Janeiro. Teve uma vida turbulenta e muita intensa ao mesmo tempo. Isso foi o primeiro momento que me instigou a escrever. Na época, eu fiz um perfil da Adalgisa para o Prosa e Verso [O Globo], levando em conta os 30 anos de sua morte. E, cinco anos depois, consegui finalmente reunir os herdeiros da escritora, que são todos os seus netos, graças a Nathalie Nery, que é a neta que tenho mais proximidade, para gente ter uma autorização e correr atrás da republicação da obra dela. E fui até a José Olympio Editora, responsável por publicar a obra dela a vida inteira. A Adalgisa estava até o ano passado 35 anos fora de catálogo, por conta de questões que eu aponto, como o fato dela ter sido casada com o Lourival Fontes, que foi o diretor da DIP, do Getúlio Vargas. Acho que isso foi uma das coisas que fizeram com que ela caísse no esquecimento no meio intelectual. Mais do que um esquecimento, a deixaram no limbo. Embora a sua obra fosse elogiada por Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Jorge Amado e Gaston Bachelard. Para mim é uma grande honra mesmo resgatar o trabalho da Adalgisa, não só por estar estudando na universidade, mas realmente por poder trazer a obra de um autor que estava fora das estantes. É um motivo de muita alegria, de muita comemoração mesmo. O que me encanta na poesia da Adalgisa em específico é a relação com o cosmos e com a natureza.
• Em termos de literatura brasileira contemporânea, qual a sua opinião sobre o que tem sido produzido?
Sempre li muito a literatura contemporânea. Desde 2004 ou 2005 tenho lido com muita atenção. Gosto muito do que tem sido produzido. E o meu trabalho no Sesc Rio me exige também estar atento a essa produção. Sou um entusiasta dela. Tem poetas incríveis produzindo. Outro dia, fiz uma disciplina sobre Poesia Contemporânea Brasileira, na UFRJ, com o Eduardo Coelho, e a gente leu a Ana Martins Marques, que eu adoro; a Bruna Beber, Victor Heringer, Ismar Tirelli Neto, Angélica Freitas, Sylvio Fraga Neto… Só estou falando de poetas. Que é o que mais eu leio, mais do que a prosa. Eu já li muito prosa, mas hoje em dia leio mais poesia. Paulo Scott, que escreve tanto prosa quanto poesia, gosto muito do que ele escreve; o João Paulo Cuenca… Tem muitos autores que admiro e acompanho. Marilia Garcia, Marcos Siscar.
• Para mim o mais interessante é essa pluralidade de estilos. Os escritores não estão mais presos às escolas. Cada um está seguindo o seu próprio rumo.
Há uma característica na poesia brasileira contemporânea que é uma literatura mais verborrágica, quase prosaica, que não é muito o que eu faço. Meus versos são mais concisos. Mas consigo admirar e reconhecer essa produção, gosto muito. São autores que estão se investigando, estão lendo, dialogando. Leonardo Gandolfi é outro. E até os mais velhos. Eu amo a poesia do Ferreira Gullar, e é poesia brasileira contemporânea. Armando Freitas Filho, que é um grande poeta. Eu estava falando dos mais novos, mas há também os mais velhos: Eucanaã Ferraz, Antonio Cícero, André Vallias, a potência da poesia do André Vallias, que também é um grande tradutor; e o Paulo Henriques Britto. Na prosa, tem o Leonardo Villa-Forte, que é um autor de que gosto bastante; e além dele tem para mim o maior autor de ficção brasileira vivo, que é o João Gilberto Noll. Ele é grande, muito grande.
· E o trabalho do poeta como prosador é algo ainda a ser pensado no futuro? Você já participou de algumas antologias de contos…
Geralmente, escrevo esses contos a partir de encomenda. Tenho sim uma vontade de escrever um romance. Mas hoje venho priorizando mais a poesia e outros trabalhos. E escrever romance exige uma disciplina diferente da escrita da poesia. E talvez eu não esteja preparado, e tenho a maior humildade de responder isso, porque acho que a literatura exige verdade. Mas quando eu sentir que estou preparado para escrever realmente um romance, farei com toda a dedicação.
• No poema a mudança, o poeta diz: “a mudança está na força de prevalecer no ser, ancorar a presença no corpo”. Qual é a sua percepção da vida hoje?
A minha percepção da vida hoje é justamente essa: o presente. De viver mais plenamente o presente, com consciência dos atos, do que falo e de como vivo. A percepção da importância de estar presente, sem pensar ou ficar muito preocupado com o que vai acontecer no futuro, ou ficar preso ao passado. Acho que isso muda tudo. Isso faz com que a gente se coloque e encare a vida de outra forma.
• Uma lembrança emblemática ligada à literatura.
Acho que uma lembrança emblemática ligada à literatura foi quando conheci o escritor Rodrigo de Souza Leão. Foi muito emblemático, muito forte. Primeiro, porque fiquei muito impactado com a literatura dele. É uma literatura que trata do tema da loucura sem pudor e com um trabalho na linguagem de forma dedicada. Depois pelo fato de ele ter falecido e eu estar cuidando da obra dele, uma coisa que eu nunca esperava, e que acabou se tornando importante na minha vida. Conseguir republicar os livros dele, conseguir fazer uma exposição, doar o acervo para a Casa de Rui Barbosa, doar as telas para o Museu da Imagem do Inconsciente. Acho isso um fato importante. Eu tive um único encontro com o Rodrigo, durante uma entrevista, assim como você está me entrevistando. Depois disso, só por telefone. Isso para mim é impactante. Como um encontro pode gerar tantas outras coisas, ocupar lugares em nossa vida.
“A minha percepção da vida hoje é justamente essa: o presente. De viver mais plenamente o presente, com consciência dos atos, do que eu falo e de como eu vivo.”
• Em um dos poemas de seu novo livro, lemos: “aprender a ser grato por tudo que dói”. Pode falar sobre isso?
Escrevi esse verso muito baseado na descoberta do diagnóstico do HIV. Então, na verdade, o que esse verso me traz é de que está tudo certo. Mesmo as coisas que aparentam estar difíceis, elas fazem parte de um grande aprendizado na vida. Por mais dolorido e difícil que seja naquele momento, eu aprendi a agradecer, porque tenho aprendido a lidar de outra maneira com a vida. Então é um pouco isso, de agradecer a essência, de poder estar vivo, de poder estar produzindo, de poder estar conhecendo pessoas interessantes, por estar amando, por tudo isso. Então é esse o lugar.
• Existe alguma rotina durante o seu processo criativo?
Existe uma disciplina de leitura. Quando estou escrevendo um livro de poemas, tenho uma disciplina maior de leitura. Fico lendo determinados livros em algum determinado tempo, para me inspirar, para me instigar. Geralmente, leio mais prosa quando estou escrevendo poesia. Com a escrita da poesia em específico, vou rabiscando os versos aos poucos. Trabalho muito de madrugada. Depois que o livro toma um determinado corpo, aí sim tiro um determinado tempo do dia para me dedicar ao livro e repensar e retrabalhar a linguagem. Mas isso é um longo tempo até chegar. Existe uma indisciplina diária.
• Quais são os seus planos para o futuro?
Estar presente.
• O que é a vida para Ramon Nunes Mello?
A vida é um grito mudo e constante.
• Por que a poesia?
Porque é o lugar da liberdade. A poesia é vida.
• Uma frase para finalizar esta entrevista.
“Agora, enfim, sinto-me livre para fracassar”, do Georges Bataille.