Considerado um dos principais nomes da literatura latino-americana contemporânea, o cubano Leonardo Padura, 69 anos, esteve novamente no Brasil em setembro, cinco anos após a sua última visita ao país, por conta da divulgação de Pessoas decentes, seu mais recente romance.
A obra traz de volta o célebre detetive Mario Conde e tem como plano de fundo alguns acontecimentos marcantes para a história recente de Cuba, como a visita de Barack Obama e o show dos Rolling Stones.
Tudo isso vem acompanhado do clima de suspense característico dos romances policiais, gênero em que Padura tem como referência um autor brasileiro. “A experiência que me marcou foi descobrir os relatos e romances de Rubem Fonseca, sobretudo Agosto e A grande arte. Foi uma revelação, quase uma epifania, pois sem eu saber, estavam me mostrando por onde eu poderia me mover como escritor”, disse nesta entrevista ao Rascunho, concedida por e-mail e traduzida por Graziela Bassi Pinheiro.
Autor de livros como O homem que amava os cachorros, Paisagem de outono e Febre de cavalos — todos publicados pela Boitempo —, o cubano tem uma carreira consolidada, com obras traduzidas para mais de 15 países e importantes premiações internacionais.
Ainda assim, o medo diante da página em branco é inevitável. “Sinto pavor. Principalmente quando eu termino um romance e não sei se poderei escrever outro. É que, de modo geral, eu somente penso e me concentro no que estou escrevendo e, quando termino, é que eu penso no que poderia escrever e muitas vezes não o sei. Isso me provoca angústia”, destacou.
Ao longo da conversa, Leonardo Padura também falou sobre literatura brasileira, utopias, política, romance policial e tecnologia.
• Em setembro, você esteve novamente no Brasil, com uma agenda que incluiu a participação em eventos como a Bienal. Como foi a passagem pelo país?
Foi muito benéfico e intenso, como sempre. Os autores brasileiros me acolheram com grande paixão e carinho, e em cada visita, não só encontro esta reação, mas também vejo que cresce esta aproximação. O leitor brasileiro é, antes de tudo, brasileiro e se comporta como tal. E este trato, para um cubano, é como se sentir em casa. Somos muito parecidos!
• Qual se deu o primeiro contato com a literatura brasileira? Como foi a experiência?
Deve ter sido lendo Machado de Assis na Universidade, ou talvez com Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, ou com Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Mas a experiência que me marcou foi descobrir os relatos e romances de Rubem Fonseca, sobretudo Agosto e A grande arte. Foi uma revelação, quase uma epifania, pois sem eu saber, estavam me mostrando por onde poderia me mover como escritor.
• Durante a sua visita ao Brasil, chegou a ter contato com o trabalho de escritores que ainda não conhecia?
Foi uma viagem muito focada na promoção dos meus livros e com pouco tempo para poder fazer vida social e literária. O Brasil me exige muito este trabalho e os meus editores são impiedosos comigo… no melhor dos sentidos, claro. Me transbordam de trabalho, mas também de carinho.
• O homem que amava os cachorros, um dos seus livros mais festejados, acaba de completar 15 anos. A obra aborda, entre outros temas, as utopias. Qual é a sua maior utopia enquanto escritor?
A utopia é o lugar, o estado, que não existe. Acredito que, como qualquer escritor, minha utopia deve ser a perfeição. Esta utopia me obriga a me desafiar em cada ocasião em que escrevo e sempre ando atrás dela. Acho que cada romance que escrevi é o melhor que fui capaz de escrever no momento de redigi-lo. E se não é o melhor, não foi por falta de esforço, mas sim de talento.
• Por conta de sua origem cubana e dos temas abordados em sua ficção, há uma insistência de jornalistas em fazer mais perguntas sobre política do que sobre literatura propriamente dita. Isso o incomoda?
Não me incomoda, mas me parece uma saída fácil de muitos jornalistas que sempre perguntam o mesmo, e o fazem porque não têm a capacidade, a cultura, a inteligência para ir mais além dos tópicos da censura, da ditadura, da pobreza. De tudo isso, eu falo nos meus livros, mas é necessário os ler e os assimilar, para, desde a literatura, entrar nos terrenos da política sem o buscar do modo mais trilhado. Faz pouco tempo, em um festival literário, eu fui o encarregado de abrir as atividades, tendo um encontro público com o grande panamenho Rubén Blades. Falamos durante uma hora e meia, sem que decaísse o interesse do público, e falamos de tudo, inclusive de política, sem fazermos perguntas sobre política. Ou seja, é possível fazê-lo se há vontade e inteligência. Nesse diálogo, claro, a inteligência era colocada por meu amigo Rubén Blades.
• Você é apontado pela imprensa e pela crítica especializada como o escritor cubano de maior sucesso internacional na atualidade. Quais alegrias e armadilhas acompanham isso?
A alegria de poder ir pelo mundo falando de livros (e, você já sabe, também de política, e raramente de beisebol, que eu gosto mais), conhecendo gentes diversas, lugares aos que não sei se teria chegado a não ser pela literatura: Kyoto, no Japão, Jerusalém, a Patagônia chilena… E o contraditório é que, apesar do conquistado, não tenho a satisfação de que no meu país meus livros circulem normalmente e de maneira abundante. Umas vezes por falta de papel, outras por falta de vontade ou por decisões dos que ainda querem nos dizer o que devemos ler e o que não devemos.
• Você já recebeu grandes honrarias da literatura, como o Prêmio Nacional de Literatura de Cuba, o Princesa de Astúrias e o Barcino de Novela Histórica. As premiações aumentam a pressão para o trabalho seguinte?
Não, nada. Os prêmios reconhecem o que já fizemos. Mas não resolvem o problema do que deve seguir fazendo e o problema é sempre o mesmo: escrever o melhor livro que seja capaz de escrever no momento em que estou escrevendo. Esta é a verdadeira e única, e, além disso, é uma pressão muito necessária: a de não se conformar com o que já conquistou, a de tentar se superar sempre. E isso é o que te permite avançar sem se debruçar sobre a glória dos prêmios.
• Acredita que a série de romances policiais Estações Havana, protagonizada pelo investigador Mario Conde, mudou a concepção de leitores que ainda enxergavam o romance policial como um gênero menor?
Acredito que sim, mas não sou o único responsável. Muitos escritores, como o já citado Rubem Fonseca, foram fazendo, foram dando dignidade e qualidade literária e sentido cívico, inclusive ao relato policial. Também foi feito pelo italiano Leonardo Sciascia, o espanhol Manuel Vázquez Montalbán, o sueco Henning Mankell e outros vários autores. Graças a todo esse trabalho, hoje em dia o gênero policial pertence e se move no mainstream da literatura contemporânea… ainda que haja de tudo, como também muita literatura policial ruim, claro.
• Alguns de seus trabalhos, como é o caso de Como poeira ao vento, têm uma atmosfera de suspense e dão a sensação de que algo ruim pode acontecer a qualquer momento. Questões atuais, como o avanço da extrema direita e as catástrofes ambientais, são capazes de lhe causar essa mesma sensação?
Acredito que estamos vivendo um tempo de grandes incertezas e nos aflorando em um futuro cada vez menos amável, pelo simples fato de dizer algo leve. Na política e na economia, os presságios não são bons. A tecnologia, que tanto nos ajuda, pode ser utilizada (é utilizada), com fins, às vezes, muito perversos, como o controle e a vigilância dos cidadãos, tanto pelos policiais como pelos comerciantes. E todos nós sabemos que algo vai acontecer, porque também acontece que cada vez mais o mundo é mais desigual, mas os modelos que se impuseram, como é o caso do sistema comunista chinês, são mais perversos que os progressistas.
• Após premiações e tantos anos de experiência como escritor, você ainda sente medo diante da página em branco?
Sinto pavor. Principalmente quando eu termino um romance e não sei se poderei escrever outro. É que, de modo geral, eu somente penso e me concentro no que estou escrevendo e, quando termino, é que penso no que poderia escrever e muitas vezes não o sei. Isso me provoca angústia. Mas, felizmente, sempre aparece uma ideia, não qualquer ideia, mas sim uma ideia com potencial literário. E isso já me aconteceu quatorze vezes e por isso tenho quatorze romances escritos. Pensar nisso me dá um grande alívio.