Por Rogério Pereira e Luís Henrique Pellanda
No verão de 1974 para 1975, o jornalista argentino Orlando Barone, então com 35 anos, deu início a um projeto que certamente já lhe nascia com feições de imortalidade. Tratava-se do registro, em livro, de várias conversas entre os escritores Jorge Luis Borges, na época com 75 anos, e Ernesto Sabato, com 63. Quando Barone propôs que se reunissem para compor os Diálogos — recentemente editados no Brasil pela Globo —, havia duas décadas que não se falavam. Os motivos seriam suas convicções políticas, fortíssimas e antagônicas. Para evitar maiores transtornos, combinou-se que, naqueles encontros, ninguém tocaria em tais assuntos, muito embora Sabato tenha comentado que, quando menos se espera, é costume da política “entrar pela janela ou por uma fenda”. Que corressem o risco, no entanto. E transcorreram os colóquios em clima de cordialidade respeitosa, embalados por grandes demonstrações de erudição e elegância de ambas as partes, quebradas, às vezes, por uma ou outra provocação.
Deu-se, assim, o espetáculo. Ao conceber tal obra, Barone conta que o inspirara “a idéia de provocar” os conversadores. Nisso, teve sucesso absoluto. No embate promovido por ele, muita coisa de relevante foi dita e repensada por seus convidados; investigaram-se, ali, profunda mas ternamente, dezenas de questões, novas ou velhas, sobre literatura, filosofia, cultura erudita e popular, sonho, amor, morte e processos criativos. O livro resultante é carinhosamente resumido por Barone como “um milagre da eternidade”. “É um livro teatral e, por isso, ameno”, diz. “Nada foi pensado e isso se percebe. Essa espontaneidade é sua riqueza e também sua desvantagem.”
Hoje Orlando Barone é colunista do jornal argentino La Nación. Na entrevista que concedeu ao Rascunho, falou sobre jornalismo e literatura, sobre a falta de vínculo entre as culturas brasileira e argentina, a crise em seu país e a experiência ímpar de mediar, ainda jovem, as inteligências de Borges e de Sabato.
• Hoje, que outros escritores você colocaria frente a frente? Na Argentina e fora dela. Voltar a um Sabato envelhecido, com opiniões revistas e conhecimentos ampliados, nunca lhe tentou?
Não tenho expectativas, ainda que possa ter fantasias. García Márquez e Mario Vargas Llosa, por exemplo. Ou Francisco (Paco) Umbral e Manuel Vicent, na Espanha. Atraem-me os opostos. Teria que pensar em possíveis escritores para um diálogo e um livro. O de Borges e Sabato estava rodeado de um clima de época, de um longo desencontro entre ambos, da já definida consagração de cada um, para além do campo da literatura. Há escritores de gueto, de tribo, de especialidades; e há outros que transcendem essas fronteiras e alcançam a popularidade extraliterária. Estes são mais atraentes do ponto de vista da curiosidade do grande público, deixam em segundo plano os interesses puramente acadêmicos ou de gênero. Hoje, na Argentina, não acredito que exista essa promessa latente em ninguém. É que aconteceu um fenômeno midiático: os escritores quase já não têm mistérios, aparecem em toda parte, concedem entrevistas. O exemplo que dei, de García Márquez e Vargas Llosa — óbvio, claro — se incluiria nessa categoria maior. Seria possível que um diálogo entre ambos nos trouxesse novidades em relação a suas posições já conhecidas? Não sei. Quando se é tão famoso, também se é prisioneiro da imagem já instalada, das respectivas cronologias do pensamento. Em relação a Sabato hoje, ele está numa fase da vida e num tempo em que, mais que entrevistá-lo — algo bastante inacessível se considerarmos a amplitude que um livro exige —, é preciso retratá-lo em livre composição.
• Se os pampas sempre foram mais propensos ao silêncio e à introspecção, as literaturas argentina e gauchesca não negariam a idéia de que, entre autor e leitor, se deve estabelecer uma espécie muito intimista de diálogo, ou mesmo de comunicação?
Não tenho afeto pelo gauchesco (gênero literário cujo maior representante é o Martin Fierro de José Hernandez). Creio que foi uma literatura algo forçada, a visão intelectual e urbana do gaucho mitológico. Esse silêncio, essa suposta sobriedade étnica ficou num remoto pampa do passado. Hoje, o argentino urbano tem a sua cultura de imigrante. O tango menospreza o folclore gauchesco. O intelectual da cidade prevalece sobre o pensamento autóctone. Nossa revolução literária começa com Domingo Faustino Sarmiento, em seu famoso Facundo (clássico da literatura argentina e hispano-americana, de 1845): é a condenação do bárbaro pelo homem civilizado.
• Nos Diálogos, você diz que Borges e Sabato, apesar de se conhecerem e admirarem havia décadas, eram também rivais, “adversários de universos”. O que isso significava? Em que plano se dava a contenda entre eles e de que forma era percebida pelos outros?
Suas obras falam por eles. Mas também suas respectivas visões de mundo, sem levar em consideração que Borges era cego, e isso já é uma diferença abismal. Sabato é terreno, humano, comprometido com a razão, lutando contra ela para revelar seu inconsciente. Borges era, por si só, fantástico. Ele todo era literário. Sabato acreditava no homem, apesar de retratar suas maldades: era, no fundo, um homem entusiasmado. Borges acreditava que a vida era uma mentira; cego e vulnerável, ele se vingava mentindo para ela.
• Politicamente, em que Borges diferia de Sabato? No caso de se discutir política nos Diálogos, havia o perigo de se ver instaurar entre eles alguma diferença maior?
Sim. Sabato acreditava nos movimentos populares. Borges era cético. Não acreditava no resultado da democracia. Também não cria nas ditaduras. Preferia um estado distante. Como se não necessitasse dele.
• Ao fim das conversas, Sabato disse: “Paremos de falar, para que este não se torne um livro eterno”. No fim das contas, foi o que aconteceu?
O livro já é um milagre da eternidade por, ainda hoje, subsistir em certos setores interessados. É um livro algo teatral e, por isso, ameno. Nada foi pensado e isso se percebe. Essa espontaneidade é sua riqueza e também sua desvantagem. Creio que não é um livro previsível. Desperta surpresa. E, em alguns leitores, certo fundamentalismo por um ou por outro escritor. Em disputas verbais, nunca há empates. Mas a subjetividade de cada leitor é o fator que decide quem as ganha e quem as perde.
• Você já afirmou que optaria, hoje, por uma crônica jornalística forte no lugar daquela, emocional, que caracteriza o seu texto nos Diálogos. A juventude do mediador do livro também não seria parte dele, inseparável, crucial ao seu desenvolvimento? Seguir ali uma cartilha jornalística, mais profissional, teria possivelmente acarretado em outra obra. De que forma sua experiência atual a mudaria?
Mudaria para pior, eu acho. Assim como o amor, na juventude, é mais natural e surpreendente que na fase adulta, assim como há paixões que, com os anos, adquirem o pateticismo do déjà vu, da mesma forma, se hoje eu voltasse a compartilhar destes diálogos, seria um intrometido, um orgulhoso sabe-tudo, um profissional mais cínico e mais previsível. Naquele tempo, eu os considerava como lendas. Entreguei-me como um discípulo diante de seus mestres. Não os contestava: eu os amava. Quase não me intrometo no livro. Hoje aspiraria a brilhar como protagonista. E esse seria um erro: o excesso.
• Ao longo do livro, ressaltam-se hábitos ou gestos de cada um dos conversadores. Você rubrica o texto rapidamente, como numa peça teatral, pincelando observações ligeiras, rabiscadas apenas. Borges bebe água, Sabato, uísque; Sabato é sarcástico, Borges, melancólico; Sabato ri, Borges se intimida. Sabato também parece mais desafiador, provocador de Borges. Havia esse tipo de relação entre eles?
Sim. Fisicamente delatavam duas posturas. Borges se mostrava mais velho e vulnerável do que os outros homens de sua idade. Sabato sempre foi enérgico, forte, inquietante. Os doze anos de idade que os diferenciavam pareciam mais notáveis no aspecto físico. Borges, no entanto, emergia de sua velhice com o frescor de sua genialidade oral e com sua propensão a transgredir as convenções medianas. Sua ironia e sua descrença o rejuvenesciam. Não era um bom gourmet: sua alimentação era simples e cômoda, devido à sua cegueira. Sabato, por sua vez, é muito mediterrâneo.
• Em muitos momentos, Borges e Sabato parecem se exibir, não só um para o outro, como também para uma eventual audiência. O quanto de vaidade se percebia entre eles? Apesar das cenas, Borges e Sabato pareciam sinceros? A fama de um e outro se fazia notar naquele relacionamento?
Sim, eles pareciam sinceros. E ao leitor creio que também pareçam. Compartilhávamos um clima cordial, nos entregávamos àquele prazer sem especulações. É provável que se observe em Sabato uma propensão a se mostrar erudito diante de seu interlocutor, uma vontade de exibir-lhe conhecimentos literários. Além de tudo, ele tinha Borges diante de si: o totem que começava a converter-se em imortal. Borges, ainda que não concordasse com o estilo filosófico que atraía Sabato, o acompanhava com sua ironia, com sua própria maneira de conversar, modesta e orgulhosa ao mesmo tempo. Mas nenhum dos dois se apresentava como um pavão real diante do outro: comportavam-se como iguais. Tudo aquilo que foi dito deve ser sentido, percebido, ao lerem-se os Diálogos. Essa atmosfera não foi uma casualidade do destino: foi fruto de nossos desejos mútuos.
• Um exercício divinatório. Borges e Sabato discutiam muito sobre filosofia e literatura. Esse tipo de preocupação parece ter perdido espaço na sociedade atual, mesmo entre os escritores de ponta. Em que mundo Borges e Sabato dialogariam hoje? Sob que influências?
Talvez fossem mais céticos em relação ao mundo. Teriam que incorporar outros pensadores, mais atuais, a suas discussões. Ambos se veriam obrigados a tratar de assuntos ligados à televisão e a outros meios de comunicação. A crise argentina desta década os empurraria a fazer comparações com outras, do passado. Enfim: eu perguntaria a eles se o mercado atual da literatura forma um outro tipo de escritor, uma outra classe de literatura.
• Os autores são os melhores críticos de si mesmos?
O grande escritor é um bom crítico, e o resultado de sua obra é uma prova disso. Ele sabe como e onde se corrigir; onde falha e onde tem seu melhor desempenho. Não obstante, essa crítica é feita para si próprio. Para o leitor, a crítica é a que surge de fora: é a crítica de vários leitores e é toda uma sucessão de críticas ao longo do tempo. Homero, Platão, Dante, Shakespeare, Cervantes, Whitman, Proust, Kafka, Joyce têm sua sustentação crítica na opinião de toda a humanidade através das gerações. Diante do espelho, costumamos compor um rosto que nos convém e nos convence. No espelho dos outros, somos tão distintos como são distintas as visões deles. O grande escritor é sua obra, não sua própria visão crítica.
• Como jornalista, você concorda com a afirmação de Borges sobre serem os jornais escritos tão-somente para o esquecimento? E de que forma jornalismo e literatura podem encontrar-se, colaborar um com o outro, fundir-se até, de maneira produtiva e eficiente?
Esta última possibilidade — a do encontro entre ambos os gêneros — luta para se instalar. Mas é por meio de casos excepcionais que o escritor adquire o ofício de se comunicar, já não mais e apenas por meio dos sonhos. Digamos que se trata de um amálgama entre o poético e o prosaico, entre o pensamento e a imaginação. Ambos, o jornalista e o escritor, devem obedecer a uma condição básica: a curiosidade. Um investiga o território e os homens que o habitam; o outro sente curiosidade pelo mistério desse território e pelo interior do indivíduo.
• O jornalismo cultural e o literário mudaram muito dos anos 70 para cá?
Antes o jornalismo recebia um tratamento elitista. Hoje recebe um tratamento de best seller. Cada sociedade, em seu momento, adere à sua tendência.
• Em certo momento do livro, você deduz, do que dizem Borges e Sabato, que “o romance toleraria páginas imperfeitas, enquanto que o conto e a poesia exigiriam a perfeição”. Você estava certo?
Não tenho certezas científicas. Deduz-se que num soneto a perfeição é uma necessidade, um requisito para que seja duradouro. Há romances extensos que se justificam por uma porção de páginas sublimes. Há poemas populares que se sustentam por apenas alguns versos imortais. O que é menos perfeito: Walt Whitman ou Faulkner?
• Em nenhum momento do livro, apesar de nele se falar muito da América Latina, o Brasil é citado. Por aqui, considera-se que nossos vizinhos se mantêm muito distantes ou mesmo indiferentes à língua portuguesa. Na Argentina, fala-se em literatura ou em cultura brasileira? Ou o Brasil é compreendido como uma grande lacuna intelectual?
Sinto vergonha dessa falta, dessa ausência. É verdadeira. O Brasil literário — do ponto de vista da mídia e do público, e não dos acadêmicos e estudiosos — significa Jorge Amado e Vinicius de Moraes. Houve um tempo de consagração para Monteiro Lobato e outro para José Mauro de Vasconcelos, com Meu pé de laranja lima. Em nossos meios culturais não se fala da cultura literária do Brasil. É uma lacuna que talvez tenha sua contrapartida aí. Não sei.
• Sabe-se que o brasileiro não possui o hábito da leitura em tão alta conta quanto o argentino. O argentino é mesmo um grande leitor? Por quê?
É uma herança da nossa cultura. Mas as estatísticas atuais costumam ser desanimadoras: produzem-se mais livros, mas não aumenta a média de livros lidos por habitante. É como se, na maior biblioteca, a leitura se concentrasse numa porção minoritária. É igual ao que acontece na macroeconomia: concentração das riquezas e empobrecimento da maioria. Não sei. Sobre isso, costumam-se fazer afirmações bem-intencionadas, mas carentes de fundamentação empírica. É que hoje a cultura do livro deve dividir sua a importância com a da mídia, a da internet, a do cinema e a dos grandes shows. O leitor puro — unicamente leitor de páginas de papel — passa a ser entendido como um homem que só faz exercícios físicos que envolvem o seu corpo e a natureza, prescindindo de recursos e sistemas mais atuais, de aparatos e acessórios, de métodos adequados de nutrição. O leitor, assim, é visto como um homem anacrônico. Limitado, inclusive. Ler exige tempo. Posterga todas as outras coisas.
• Uma edição brasileira de A ocasião, de Juan José Saer, foi lançada recentemente. Beatriz Sarlo acaba de participar Festa Literária Internacional de Parati. E a 9.ª Feira Pan-amazônica do Livro, marcada para setembro, em Belém, homenageará a Argentina. O que essas iniciativas lhe sugerem? Que tipo de experiências Brasil e Argentina podem trocar?
É uma maneira de começar. Estamos perto e longe ao mesmo tempo. Creio que o Brasil é para nós mais exótico do que a Bélgica.
• Não apenas popularmente, mas também culturalmente, em nossos países, o futebol é mais forte que a literatura?
Sim, claro. Mas acredito — e vou ser herege — que os grandes artistas e o samba, e o tango, serão mais perduráveis que Pelé e Maradona, que Ayrton Senna e que Juan Manuel Fangio. Ninguém se recorda dos que ganharam a maratona nos tempos de Sófocles.
• O que a literatura argentina aprendeu com o novo momento econômico do país?
Aprendeu a aprender a ser pobre. Antes os grandes escritores argentinos eram aristocratas. Ofendia-os falar sobre venda de livros. Já os escritores atuais são pobres: com extrema inocência, sonham enriquecer com a literatura.