Aos 30 anos de literatura, Ricardo Daunt demonstra absoluta consciência do ofício de escrever. Essa carreira literária começou em 1975, com o lançamento do livro de contos Juan. Vieram a seguir vários outros livros de contos, romances, poesia e ensaios, além de livros para crianças. Ricardo Daunt lança agora o volume de contos e novelas Poses, no qual revela um rigor raro de se encontrar na prosa deste país. É o último volume de uma tetralogia iniciada nos anos 70 a que chamou de Ciclo urbano com os livros Homem na prateleira, Grito empalhado e Endereços úteis. Poses reúne contos e novelas escritos nos últimos 15 anos. O autor dá provas, com este livro, que ainda existe literatura séria no país. Longe das festividades reinantes, Daunt construiu, ao longo destes 30 anos, uma obra marcante, por ser um escritor honesto consigo mesmo, honesto com a palavra, honesto enfim com a literatura. O primeiro conto — Na oficina do Sr. Mancuso — merece estar em qualquer antologia de contos brasileiros digna dos melhores textos. Nele, é narrado o trabalho de um artesão para produzir uma jóia com seus dedos ágeis e conhecedores das pedras preciosas. Em certo ponto, a narrativa diz o seguinte:
“…Esta era talvez a grande e discreta vitória do artesão sobre a desarmonia da vida: saber que independentemente de sua sorte, no que se referia à vida social e afetiva; independentemente da precariedade de sua existência, podia habitar um mundo diverso, construído com vigor e perfeição, plenamente dotado de significação e ao mesmo tempo eterno. Tal sentimento, semelhante, decerto, ao que muitos artistas sempre sentiram quando a maturidade batia-lhes à porta, colaborava em muito para que o sr. Mancuso sobrevivesse ao cotidiano”.
A narrativa para situar o ourives também esclarece a produção literária de um autor que, ao longo dos anos e quase sempre vivendo arredio, alcançou um estágio de absoluta consciência — repita-se — no que diz respeito à literatura. Espírito inquieto, Ricardo Daunt é dono de uma literatura exuberante e isso se estende, também, aos ensaios literários marcantes.
Daunt nasceu em São Paulo, em 1950, e já na adolescência começou a escrever poesia. Por longo tempo, viveu nos Estados Unidos e países da Europa, como França e Portugal, participando de intercâmbio cultural e cursando universidades.
Ele considera uma coisa escabrosa a vaidade que muitos têm em relação à literatura. Ele diz: “Como é possível pensar com profundidade quando o efeito parece ser mais importante que o conteúdo? Os escritores brasileiros debandaram de seus postos. Assistem hipnotizados a tudo o que está aí, com ares de altiva senhora ultrajada”.
Lembra do período do regime militar, quando participou de encontros, especialmente no Sindicato de Escritores do Rio de Janeiro, para discutir os temas do momento e também para tomar posição conjunta: “Éramos uma força coletiva, para além de nossos talentos pessoais, para além de nossas preferências estéticas”. Muitos anos depois, tentou reunir em São Paulo uma equipe permanente de trabalho, sem líderes, sem chefes, apenas um conjunto de mulheres e homens escritores que tomasse partido e se manifestasse quando assim fosse necessário, utilizando os próprios contatos na grande e pequena imprensa . O projeto não foi para frente: “A vaidade foi mais forte. Foi um duro golpe. Acho que foi nesse momento que o escritor começou a perder espaço nos meios de comunicação. A jovem desvairada e ignorante imprensa brasileira jogou a última pá de cal, mas o defunto já estava enterrado. Devo entretanto sempre advertir que há casos muitos honrosos, há exceções. Mas é inegável que essa tem sido a tônica geral. Por quanto tempo ainda o escritor brasileiro irá continuar contemplando embevecido seu próprio umbigo?”
• O que significa para você completar 30 anos de poesia num país onde a leviandade e a absoluta inversão de valores são as normas vigentes, inclusive na área cultural?
Quando comecei a escrever, havia uma imprensa nacional interessada em noticiar e discutir literatura, e havia algumas editoras que possuíam massa crítica suficiente para não se contentar com editar o que a silenciosa ignorância geral dava a entender que gostaria de consumir. De lá para cá muita coisa mudou, e para pior: a vida literária e a produção intelectual do Brasil saíram das manchetes e do debate cotidiano para se tornarem marginais. As editoras hoje em dia carecem de coragem para acolher o que ainda não foi canonizado, aquilo a que posso denominar de nova seiva, e que atrevidamente pode alimentar nosso espírito e nossa sensibilidade. Hoje, edita-se mais, mas edita-se muita porcaria. Grandes nomes da nossa literatura estão com seus originais na gaveta. Em grande medida essa condição crescentemente desfavorável deu-me uma força suplementar para persistir em busca da originalidade e da qualidade, quer na esfera da pesquisa de caráter acadêmico, quer como poeta e ficcionista. Entendo que escrever é uma tarefa que não pode ser delegada a outrem, ou recusada; é uma tarefa que nos é imposta pelo destino e dessa tarefa não podemos fugir. Acostumei-me a ser guerrilheiro, já não consigo arrancar as vestes sujas de lama, impregnadas da tintura da relva úmida. 30 anos de literatura é quase tudo o que sou, sem querer ser utópico ou dramático. Freqüentemente me canso, freqüentemente deploro esse estado de coisas, mas deixar de escrever e de editar seria jogar o jogo da bestialidade geral.
• Por que você costuma se afastar por tanto tempo da literatura, como tem sido nos últimos anos?
Afastei-me do mercado editorial, esperando que o setor amadurecesse e corrigisse seus erros estruturais. Procurei poupar energias e canalizá-las para a criação literária. Teria sido ilusório permanecer contemplando um estado de coisas que a todo momento me convocava para deixar de fazer o que sabia fazer. Em um primeiro momento, virei as costas para o mercado editorial para evitar o desalento, e para não me corromper. Se corrompesse a literatura que pratico, onde mais encontraria o território da liberdade? Em um segundo momento, voltei novamente minhas vistas para a indústria cultural e busquei entender o que se passava. Investiguei detidamente seus vícios; passei a perscrutar algumas soluções e possibilidades, e acabei dando um novo rumo ao meu projeto pessoal no que diz respeito à edição de meus livros. Entretanto, posso lhe garantir que jamais deixei de escrever nesse período. E sempre com projetos cada vez mais ambiciosos. Como meu livro sobre o Orpheu em 2 volumes, a sair agora; ou como um longo romance que se passa inteiramente na Europa, Migração dos cisnes, que consumiu vários anos de trabalho, na verdade quase uma década, com interrupções causadas por outros projetos de feitura menos lenta (estou implicitamente me referindo aos ensaios sobre Eliot e Fernando Pessoa, que a Landy editou em 2004). Esses trabalhos forçaram-me a me ausentar do país por diversas vezes; residi em Portugal em várias oportunidades, e nos Estados Unidos, onde vivi e onde, como professor visitante da Yale University, realizei pesquisas. Minhas constantes ausências do país também colaboraram para que diversos livros meus permanecessem inéditos por mais tempo.
• Como Poses ele deve ser analisado dentro de sua obra?
Poses dá fecho a uma tetralogia, denominada Ciclo Urbano, que começou com a publicação de Homem na prateleira, editado pela Ática em 1979, Grito empalhado, que saiu nesse mesmo ano pela Civilização Brasileira, e Endereços úteis, editado pela Codecri, em 1984. Nesse sentido, Poses marca um regresso à ficção curta e sintetiza, penso eu, alguns elementos da minha poética, sobretudo aqueles que são responsáveis pelo eventual caráter inovador do meu trabalho. Ademais, creio que esse livro deixa patente de modo nítido minha maneira de ver o mundo, meu sistema de olhar, como tenho dito freqüentemente — evidenciando com muita clareza a diversidade de interesses e formas de narrar. Se algum leitor paciente se dispuser a ler esses quatro livros da tetralogia, um após o outro, descobrirá sem dificuldade que o conto é meu primordial laboratório de inventor e um dos repositórios do meu método. O conto ensinou-me a escrever, em suma. E a pensar a coisa literária. Poses, por ser o trabalho mais longamente gestado (15 anos, com grandes interrupções), e por fixar os contornos da minha contística de maneira muito evidente, diria que é sem exagero o trabalho mais significativo da tetralogia; aquele que expressa melhor a pluralidade de interesses do autor.
• Vamos falar dos dois livros seus publicados recentemente: o conjunto de ensaios T.S. Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven e o romance Anacrusa.
Os autores mencionados no título dos ensaios nasceram na mesma época, no mesmo ano, 1888, mas em países distintos, o primeiro americano do norte, o segundo português. Ambos vivenciaram, não obstante, a cultura inglesa tradicional; o primeiro por opção, o segundo porque viveu em sua idade escolar em Durban, na África do Sul, país que era uma colônia do Reino Unido A escolha do objeto de trabalho e a opção por esses nomes derivaram da incontestável evidência de que Pessoa e Eliot são os dois grandes representantes das culturas inglesa e portuguesa, respectivamente, no século 20, quando se trata de poesia. Admira-me que até hoje ninguém tenha tido a idéia de colocar Eliot e Pessoa lado a lado. Sobretudo quando é sabido que ambos partiram das mesmas fontes e tiveram a mesma formação literária, salvo pelo fato de que Pessoa também examinou a fundo a literatura portuguesa — e, ademais, ambos tiveram forte influência da poesia metafísica inglesa e leram Crashaw, Marvell, Cowley, Townshend, os sermões e poemas de Donne e outros.
• A partir dessa formação, o que ocorreu?
A partir dessa formação adotaram rumos distintos, mas não inteiramente diversos. Da experiência adolescente com a poesia metafísica, partiram para a leitura de outros poetas, também metafísicos, como Baudelaire, Laforgue. Eliot se declara um poeta da família de metafísicos não porque imite os pares de Donne, mas porque entende que sua poesia assinala um novo estágio evolutivo dessa estirpe poética. Pessoa escamoteou tanto quanto foi possível a fortíssima influência da tradição metafísica em sua obra mais original, aquela ligada ao movimento do Orpheu, mas o leitor verá, lendo este livro, que o biombo de aço foi arrancado. Não é curiosa a teia da tradição? Aliás, é desse embate com a tradição que nasce a poesia de hoje, como a de sempre. Acho que a leitura desses ensaios e o exame de temas como originalidade e individualidade artística, entre outros, devem possibilitar ao leitor talvez uma maior compreensão da poesia em geral e, em particular, fornecer subsídios para um maior entendimento das poéticas contemporâneas.
• E no que diz respeito ao romance Anacrusa?
Anacrusa é um romance que brota de outro. Manuário de Vidal foi seu antepassado imediato. Ambos filiam-se às grandes correntes neoexistencialistas. Um e outro buscam capturar o espaço intermediário da fabricação de uma narrativa; o espaço entre a concepção imaginativa do projeto ficcional e o texto final (em cujo estágio o leitor normalmente irá encontrar um enredo estruturado, fixado, com personagens delineadas com meridiana clareza — ou nem tanto). No âmbito desse pequeno território, a que me refiro, pululam hipóteses, contradições, esboços dispersos, e, ao lado disso, a força germinativa da poesia, exercitando sua energia e buscando domar a prosa romanesca. O que surge disso tudo é uma narrativa que explora meandros da realidade (porque explora meandros da arte de narrar) raramente visitados, colocando o leitor em uma situação de linguagem inesperada; poética, por certo, mas ao mesmo tempo prosaica, uma vez que descortina novos sentidos e possibilidades para o material narrado, conferindo-lhes novo tratamento.
• Você tem três novos livros a sair ainda este ano: Obra poética de Cesário Verde, Cesário Verde: um poeta no meio-fio do Paraíso e Audácia do tédio. Panorama estético do Orpheu em Portugal, este em dois volumes. São quase 1.500 páginas. O que você pode falar sobre isso?
A Obra poética de Cesário Verde (1855-86) é uma compilação de toda a obra do autor português, e busca traçar um panorama dos fatos mais conhecidos de sua vida. Traz algumas cartas que jamais foram impressas em outra antologia cesarina. Meu interesse pelo poeta foi despertado em meus tempos de pós-graduando. Acabei escolhendo Cesário Verde para tema de minha tese de doutoramento na USP. Aliás, o outro livro que você aponta é uma revisão da tese, defendida em 1992. Esses dois trabalhos em certo sentido são um tributo e um acerto de contas com Cesário, cujo legado poético me propiciou grande fruição e prazer, que não se esgotaram depois da defesa de tese. Por último, o trabalho sobre o modernismo português, Audácia do tédio é um estudo literário e histórico acerca do movimento pluridisciplinar e pluriprogramático do Orpheu. Analisa detidamente a diversidade da produção órfica, definindo o sistema de programas de arte do movimento do Orpheu, seu corpus, participantes e seguidores em Portugal — bem como sua relação com a arte moderna européia e suas raízes (que remontam ao século 13). O segundo volume da mesma obra traz o corpus do Orpheu, exceto a produção plástica, que comparece no primeiro. Os livros serão editados pela Landy.
• Você escreve ficção, ensaio, estudo literário, trabalho acadêmico… Como é isso?
Como você sabe, tive formação acadêmica: doutorado, dois pós-doutorados, etc. Defendi tese, dei aulas em pós-graduação e antes disso escrevi artigos e produzi resenhas para os principais jornais do país, por vários anos. Mas comecei escrevendo versos e contos. O criador nasceu antes do crítico. Hoje, sinto que a atividade crítica complementa a atividade criativa, ambas entreolham-se em constante vigilância. Sinto que contemplo meu trabalho de poeta e ficcionista com mais vigor à medida que alimento com humildade e perseverança o crítico que tenho dentro de mim. Mas igualmente me sinto mais próximo do objeto que critico (e adoto posturas mais respeitosas e cautelosas) já que tenho intimidade com o fazer literário enquanto fabricação. Agrada-me muito saltar de um galho para outro, ora praticando o ensaio, a reflexão crítica, ora criando. Como é fazer tudo isso? É um desafio e um prazer dos quais não abro mão.
• Você também escreve poesia. Como está sua produção nessa área?
Talvez em função da forte presença da poesia em diversos momentos da minha prosa, sobretudo naquela que o leitor encontrará nos romances Manuário de Vidal e Anacrusa, o fato é que tenho escrito pouca poesia. Tenho um livro inédito, chamado Corpo, que já se encontra na trigésima versão, e outro em preparo: Poesia sem pátria e sem verdade. Este último, gostaria de terminar ainda este ano. O primeiro é muito diverso do segundo. Corpo é a sensibilidade poética acomodada sobre a cabeça de um alfinete; coisa concisa, com minúsculas peças de relojoaria. Poesia sem pátria homenageia o andarilho que tenho dentro de mim, e deixa emergir versos em outras línguas, com as quais convivo em espírito e que aportam outras vivências. A voz poética desse último é mundana, disponível, por vezes prosaica. Um e outro se complementam.
• Existe crítica literária no Brasil?
Em certo e restrito sentido existe sim. Ela está aquartelada na universidade, trocando figurinhas e engessada nas teorias de moda passageira. Nesse mundo à parte escrevem apressadamente, para contabilizar trabalhos e satisfazer as estatísticas universitárias. Fora desse reduto universitário há muito pouco. Nenhum caderno literário de grande circulação, nenhuma revista de expressão nacional. O pouco que existe abre espaço para o resenhador, mas não concede o suficiente para reflexões mais bem fundamentadas. Os veículos caçam patrocínio. Os patrocinadores impõem pautas. Em meio a tudo isso, assinam matérias jornalistas de plantão com formação insuficiente. Querem logo mostrar serviço; criam caricatos exemplares de recensão literária em que pervagam uma acidez e uma sem-cerimônia com o trabalho alheio que chega a embrulhar o estômago. Não há mais evidente sinal de decadência do que esse quadro que acabo de esboçar em toscas pinceladas. Nomes experientes do jornalismo literário foram obrigados a depor sua pena, por falta de espaço. Cadernos literários foram extintos. Livro é uma ignomínia, um crime. Não se pode pronunciar seu nome na grande imprensa. Há honrosas exceções, mas as exceções confirmam a regra, não é assim?