Limites estreitos

Entrevista com a uruguaia Cristina Peri Rossi
Cristina Peri Rossi, autora de “Espaços íntimos’
25/02/2018

Na entrevista de Cristina Peri Rossi sobre Espaços íntimos, questões humanas e sociais da atualidade — e de todos os tempos — dialogam com o conteúdo de seu trabalho ficcional e provocam o leitor.

• Relações conjugais produzem insatisfação e fantasias de liberdade. Enquanto isso, a fantasia de alguns solitários em estabelecer um enlace romântico-erótico parece não encontrar limites. Qual o gozo possível nas relações atuais?
A insatisfação é o sintoma do ser humano, dado que a felicidade é descontínua e, em contraste, “o inferno são os outros”, como disse Sartre. “O ser humano feliz não fantasia”, escreveu Freud. A arte é muitas vezes a expressão de todo o reprimido, de todo o inibido, daí que resulte escandalosa para o pensamento ou sensibilidade comuns. Se os outros ou as outras respondessem à arquitetura dos nossos sonhos, essas pessoas seriam meros objetos. Você pode querer ter uma casa no Rio de Janeiro, por exemplo, e talvez com sorte ou uma herança alcance isso. Mas se quisermos que um amante, homem ou mulher, cumpra todos os nossos desejos ou fantasias, o melhor será comprar um robô, uma boneca inflável — ou sublimar (o mais saudável) e escrever um livro de poemas, uma música ou uma novela. Todos somos seres desejantes parcialmente insatisfeitos, porque o limite é definido quer pelo corpo quer pela sociedade. À exceção de quando, como nos laços típicos da filosofia oriental, renunciamos ao desejo para evitar a frustração.

• A lição de zoologia, da coletânea Espaços íntimos, é um conto que remete à vaidade e ao narcisismo e aponta para o quanto estamos cada vez mais desajeitados para lidar com o corpo e a presença física do outro. As tecnologias atuam como paredes de vidro nas relações — essa reserva pode produzir algo de bom?
A lição da zoologia é um conto que representa o conflito mais antigo e universal de todos: aquele entre o instinto e a cultura, entre o indivíduo e a sociedade, fonte de todas as neuroses. De fato, vivemos um momento muito narcisista nas sociedades ocidentais, e o narcisismo é uma manifestação muito masculina em quase todas as espécies animais (incluindo primatas e humanos) não apenas em suas expressões mais óbvias (o culto ao corpo, por exemplo), mas também no amor ao poder. O amor ao poder é narcisista quando não é exercido em benefício dos outros. Quem apenas ama a si mesmo é incapaz de sentir compaixão ou empatia; os dois sentimentos mais humanos. Como qualquer invenção, as redes sociais podem ser bem utilizadas ou mal utilizadas, e o mais frequente é o seu mau uso. Elas se converteram em uma vitrine banal, uma ferramenta de assédio e uma maneira de espalhar enganos e fofocas das mais falsas ou manipuladoras. Converteram-se também em um espelho similar ao da madrasta da Branca de Neve, o qual apenas serve a responder se somos o mais belo ou a mais bela. O narcisista busca sua extensão, sua imagem multiplicada em milhares de reflexos — e por isso não ama realmente: só quer ser admirado.

• Você reconhece nos personagens de Espaços íntimos alguma arrogância, como se cada um deles atribuísse importância desproporcional a seus conflitos? As redes sociais incrementam ou banalizam a relevância das experiências individuais? Qual lugar podem ocupar as experiências coletivas?
As redes sociais são espelhos de distorção: aumentam a imagem que queremos dar e apagam, como de uma fotografia antiga, o que pode nos desfavorecer. As experiências coletivas mais importantes dos últimos 25 anos foram as conquistas lentas e difíceis do feminismo e os direitos dos homossexuais e transexuais, direitos reconhecidos após uma luta muito longa em diversos países. Há outras lutas coletivas que também precisam continuar: eliminar a desigualdade econômica, garantir os direitos dos animais e outras causas não universalmente reconhecidas.

“Se os outros ou as outras respondessem à arquitetura dos nossos sonhos, essas pessoas seriam meros objetos.”

• Para criar uma opinião, os fatos objetivos têm cada vez menos influência que o apelo às emoções. Os contos de Espaços íntimos — pela ironia e por vezes pelo absurdo — parecem também não estabelecer fatos, mas versões. Qual status a verdade ocupa no livro?
A arte apela sempre às emoções e aos sentimentos. Sempre será assim. Quando um jornalista perguntou a Jorge Luis Borges como ele reconhecia um bom poema, ele respondeu que diante de um bom poema suas mãos suavam. Um mundo sem emoções ou sentimentos seria o pior dos infernos. Mas é bom que se diga: nem todas as emoções e sentimentos falam da verdade universal ou objetiva, senão de uma verdade íntima. Não sei que verdade pode haver na emoção de um gol do Neymar para além de que muitas pessoas se emocionem com isso e de que com ele o placar aumente. Essas, por exemplo, são duas verdades diferentes: uma é a verdade sentimental que muitas pessoas sentem diante de um gol, a outra verdade é que esse gol muda o placar.

• No conto Como da cartola de um mágico, a possibilidade de bancar um desejo coloca o sujeito em risco. O excesso de lucidez ou a coragem de fazer escolhas cobram sempre um preço alto?
A lucidez é sempre um risco, mas também pode proporcionar o prazer do conhecimento. A escolha é individual: desistir de saber para não sofrer ou procurar saber a despeito da dor que isso causará. Este dilema pertence tanto a um paciente com câncer quanto a um explorador da Amazônia. No caso do conto Como da cartola de um mágico, que é um dos meus favoritos, um ato aparentemente ordinário, como roubar um banco e lançar notas ao ar para agradar uma multidão, desencadeia uma série de represálias e riscos para o protagonista que decide assumir algum, não apenas para cumprir seu desejo, mas para cumprir um desejo que tenha alguma singularidade.

>>> Leia Resenha de Espaços íntimos

Andressa Barichello
Rascunho