• Em 1995, em entrevista ao jornal Zero Hora de Porto Alegre, declaraste que não mais escreverias. Como e por que retomaste, com tanto vigor, o ofício da escrita, depois de uma declaração desse porte?
Naquela entrevista, quando eu falava em não escrever mais, referia-me à ficção. Meu último conto fora escrito cinco anos antes, em 90, e eu já não conseguia criar boas histórias. Tinha feito inúmeras tentativas, sempre fracassadas. Nos últimos anos noventa escrevi três contos que, ao menos, eram legíveis. Juntando-os com relatos antigos, inéditos, que eu descartara na organização de livros anteriores, publiquei Rondas de escárnio e loucura. De lá para cá, escrevi apenas um conto, muito ruim e, por isso, impublicável. E então eu te pergunto: onde está essa vigorosa retomada de que me falas? Não existe vigor algum e tampouco uma retomada. Lágrimas na chuva não serve como referência, é o relato de uma estação da minha vida, uma história pronta. Continuo na mesma situação em que me encontrava em 95, isto é, buscando o ouro e encontrando só cascalho e barro. Com uma pequena diferença: agora que reconstituí esse episódio de meu passado — um cravo atravessado em minha garganta —, pode ser que, futuramente, eu retorne ao conto e prove a mim mesmo que não sou um ficcionista decadente.
• Tens fama de perfeccionista, coisa que teus textos comprovam fartamente. Quantas vezes costumas reescrever cada trabalho? Teu nível de exigência é igual para o conto e para a crônica?
Minha exigência é igual para conto, ensaio, crônica, carta, entrevista, e-mail e até cartão de Natal. Isso faz parte do respeito que sinto pelo nosso idioma e responde ao meu anseio de me expressar da melhor maneira possível, no limite de minha circunstância. Na literatura, contudo, o trabalho é mais demorado. Jamais me satisfaço com as primeiras versões. Tento encontrar a forma adequada para que aquilo se transfira ao Outro, isto é, tento escrever de tal modo que o Outro veja o que estou vendo e sinta o que estou sentindo. É a diferença entre matéria e forma, ou, como costumava dizer Quintana, entre o espontâneo e o natural. É preciso que o texto mude de degrau: da expressão sentimental para a expressão literária, que nada mais é do que a ponte para chegar ao leitor. Alguns escritores o conseguem com facilidade, outros precisam mourejar, como é meu caso. Em Lágrimas na chuva reescrevi vinte, trinta vezes cada capítulo, e na revisão final mexi de novo. Hemingway reescreveu quarenta vezes o final de um de seus romances, quem sou eu para me contentar com menos?
• Como te sentes ao finalizar as memórias sobre a Rússia, depois de guardá-las por 37 anos?
Aquilo que está mais presente, por enquanto, é o cansaço. Trabalhei demais no último ano. Traduzi dois livros de Horacio Quiroga, os contos de A galinha degolada e os pequenos ensaios de Heroísmos: biografias exemplares, organizei coletâneas de poemas de Guerra Junqueiro, Antero de Quental, Cesário Verde, Camilo Pessanha e Castro Alves, além de um volume intitulado Cinco séculos de amor, que compreende sonetos amorosos portugueses e brasileiros desde o século 15 até o 20. Ultimamente, traduzi o novo livro de Eduardo Galeano, O teatro do bem e do mal. E no meio disso tudo, essa memória. Falta contar o que me aconteceu aqui, ao retornar, aqueles meses tão insensatos que me levaram a sentir saudade do Kremlovski Bolnitso.
• Isso é curioso. Não chegas a avançar em Lágrimas na chuva na história da volta ao Brasil e da prisão pela Interpol. Contudo, o simples fato de declarares o que aconteceu sem narrá-lo dá um tempero especial ao livro. Mais que tempero, é o grande desfecho. Como pensas tratar disso daqui por diante: novo livro ou deixarás a lacuna alimentando a imaginação do leitor?
Minha intenção, enquanto escrevia, era contar também o que aconteceu aqui, mas teria de me apressar: o editor pediu que lhe entregasse o livro em setembro. Ora, não sei escrever com pressa e continuei trabalhando como sempre trabalhei. Coincidiu que em setembro, na narrativa, eu estava chegando ao Brasil. Terminei ali e penso que terminei mais ou menos bem, aquela parte não faz falta e, incluída no livro, acabaria se constituindo num anticlímax. E agora ainda não sei o que fazer. Acho que tenho a obrigação moral e a obrigação política de escrever a segunda parte da história, mas a questão é que essas obrigações não bastam para que alguém faça um bom livro.
• Lágrimas na chuva é uma obra que se debruça sobre memórias penosas, com requintada precisão de detalhes, como se a memória os tivesse preservado ao longo de quase quatro décadas. Até que ponto foi difícil esse trabalho, já que evocava lembranças assim amargas? A memória funcionou depois de tantos anos?
O leitor pensará que tive maior dificuldade ao escrever capítulos mais dolorosos, mas não é assim. Lembrar significava sofrimento — não foram poucas as ocasiões em que me emocionei —, mas não necessariamente complicações para escrever: a história era aquela, estava pronta e era preciso tão-só buscar a melhor forma de contá-la. Os capítulos mais difíceis foram os corriqueiros, que intermediavam situações de alguma carga dramática: era preciso salvar o conteúdo pela forma, algo como tirar vinho da pedra. A preservação dos pormenores também não foi uma proeza. Eu tinha anotações, capítulos iniciados e não terminados, crônicas que escrevi e nunca publiquei, outras que publiquei, e até cartas que enviei de Moscou e meu pai guardou. De resto, a gente não esquece facilmente aquilo que é marcante. O quase intransponível obstáculo era começar a escrever e levar a história até o fim, sem me acabrunhar com as aflições e sem que o texto se convertesse num desabafo, isto é, numa expressão meramente sentimental. Nesse sentido, a publicação em A Notícia não foi apenas importante, foi fundamental. O jornal permitiu que eu pagasse essa dívida em prestações semanais e a longo prazo. De outro modo, jamais a pagaria.
• Por que escolheste publicar num jornal tão longe de Porto Alegre?
Escolhi A Notícia, de São Luiz Gonzaga, porque é um jornal de circulação restrita à região missioneira, e a publicação da série não esvaziaria o livro que porventura viesse a lançar.
• Afirmaste em recente entrevista que paraste de escrever contos para narrar tua história em Lágrimas na chuva. Isso significa que vais voltar a escrever contos?
Parar de fazer ficção não foi algo que deliberei, para me dedicar a essa memória. O que virá depois, além da pretendida segunda parte das memórias? É uma boa pergunta. Numa das últimas visitas que fiz a Mario Quintana, ele me mostrou um caderno escolar com seus novos poemas manuscritos. As páginas estavam numeradas e eram cento e tantas. Eu disse a ele: “Puxa, estás desovando mais que peixe”. E perguntei como escrevia, se já não saía da cama. Ele estava deitado. Sentou-se, encostou-se à cabeceira e me pediu que lhe alcançasse uma pasta, que pôs sobre as pernas. “Escrevo assim”, disse ele, e eu me comovi ao constatar que aquele homem já tão idoso, tão doente, tão magrinho, teimava em escrever e só deixaria de fazê-lo quando estivesse morto. Eu gostaria de ser como o Quintana: escrever sempre. Mas o que vou escrever de agora em diante eu não sei. E por enquanto não devo pensar nisso, preciso descansar.
• Lágrimas na chuva, além de se constituir numa extraordinária narrativa da descida aos infernos, é também um elogio aos afetos, na amplidão e profundidade que isso implica. Tens vontade de rever os lugares em que viveste, saber onde estão as pessoas citadas nas memórias?
Aquele passado remanesce em minha lembrança, mas não me afeta a vida como algo que estivesse pendurado nela, puxando-a para cá ou para lá: ele é a minha vida, uma substância que ela assimilou. Pessoas com as quais me relacionei intimamente, em Moscou e em outros lugares, continuam comigo para que eu seja o que sou. Ao retornar ao Brasil, experimentei sentimentos novos, que pela intensidade e pela atualidade se antepuseram aos antigos, mas estes permaneceram no lugar que haviam conquistado em mim. Não se sepulta o passado para dar vida ao presente. Seria como arrancar os alicerces de uma casa pronta. Assim tudo vem abaixo. Em Lágrimas na chuva, tive de vestir a pele daquele moço e então me vi na contingência de viver tudo outra vez, com as implicações emocionais que isso representava, mas escrever é assim mesmo. Para ser verdadeiro, o escritor tem de sentir o que sentem seus personagens, sobretudo quando o personagem é ele próprio. Terminado o trabalho, ele custa um pouco a voltar ao normal, mas volta.
• Os acontecimentos posteriores ao lançamento do livro — marcados por retumbante sucesso entre o público leitor do extremo Sul — materializaram as expectativas que tinhas em relação ao livro?
Eu não tinha grandes expectativas, queria apenas contar minha história e a contei. Não de algum jeito especial que, eventualmente, poderia ambicionar, mas do jeito que pude.