Laerte sem manual

A genial Laerte Coutinho apresenta o extraordinário mundo de sua criação, suas ideias, suas dúvidas e suas inquietações
Laerte Coutinho, autora de “Manual do Minotauro” Foto: Raquel Matsushita
01/04/2024

Em comemoração aos 24 anos deste Rascunho, ganhei o presente de entrevistar Laerte Coutinho, autora de Manual do Minotauro, lançado em 2021 pela Quadrinhos na Cia., no qual reúne mais de 1.500 tiras publicadas entre 2004 — data do rompimento com o seu modus operandi — e 2015. Laerte nasceu em 1951, em São Paulo. Em sua vasta experiência profissional colaborou com várias revistas, jornais, cinema e TV. Participou de publicações como Pasquim, Balão, O Bicho, Chiclete com banana, Geraldão, Piratas do Tietê, Striptiras, entre outras. Para os canais Globo, foi roteirista da TV Pirata, Sai de baixo e o infantil TV Colosso e criou a série Transando com Laerte, para o Canal Brasil, na qual entrevista personalidades como João Silvério Trevisan, Fernanda Takai, Ferréz, entre tantos outros. No cinema participou do curta Vestido de Laerte, dirigido por Cláudia Priscilla e Pedro Marques, e do longa Laerte-se, com direção de Eliane Brum e Lygia Barbosa. Em 2010, revelou publicamente sua identificação como transgênero. Dois anos depois, tornou-se cofundadora da Abrat (Associação Brasileira de Transgêneros). Desde 1991, publica tiras diárias na Folha de S. Paulo.

• Em uma entrevista, você comenta que profissionalizar é jaulinha, construção de limites. Como equilibrar a liberdade com a jaula? A jaula existe, mesmo para uma artista consagrada como você?
Existem muitos tipos de jaula. Não me lembro em que contexto falei isso. Em geral, falo coisas de uma forma irresponsável, não penso muito para dizer. Quando você fala em jaulas, por exemplo, transpondo para a minha experiência profissional, penso nas armadilhas em que caí durante a vida. Procedi de determinadas formas que acabaram virando uma fórmula fechada. Na verdade, um clichê narrativo. Até que comecei a perceber que trabalhar com personagens e construir piadas do jeito que eu fazia era uma limitação. Estava me sentindo limitada. De alguma forma, queria outra coisa e aí, sim, em 2004, eu rompi. Ao romper, percebi que a estrutura diante da qual estava me dispondo era uma espécie de prisão, a jaulinha, vamos dizer. Passei a produzir um material mais livre, solto, sem noção, experimental.

• Entre 2004 e 2005, quando mudou o modo de fazer suas tiras, você ganhou também uma liberdade gráfica e de conteúdo, não? Essas coisas caminham juntas?
É, me lembrei de uma fase da minha vida em que desenhava de uma forma muito livre. Não tentei exatamente recuperar a minha juventude, mas esses procedimentos… sabe? Lembrei como era trabalhar nessa época. Que tipo de busca? Que tipo de interesse? Que tipo de norte eu tinha? Me interessei em recuperar isso como uma forma geral de trabalhar. Foi o que fiz. Alguns jornais ficaram revoltados e cancelaram a minha tira.

• Ainda assim, você continuou com uma grande área de trabalho?
Continuei basicamente porque a Folha de S. Paulo bancou. Acho que uma das boas características desse jornal é ser um veículo que apoia inovações. Eles bancaram não só em relação a mim, mas também em relação ao Glauco e ao Angeli. O trabalho de ilustradores e cartunistas na Folha tem um campo bastante largo para atuar.

• Desenhar é mais fácil do que falar?
Não, acho que são dificuldades diferentes. Falar, às vezes, é menos cansativo. E desenhar envolve menos necessidade de rigor analítico ou coisas que o valham.

• Quando a gente fala, sempre tem o outro. Mas quando se desenha, precisa do outro?
Para mim, precisa ter o outro quando desenho também. Evidente que o meu olhar é o primeiro, mas estou sempre me colocando na posição de quem não viu ainda, de quem não sabe do que se trata.

• Já fez desenhos que são só para você? Que não mostra para ninguém?
Não. Dificilmente. Tenho um caderno de anotações, mas não um caderno de artista. Às vezes, até me desafio a fazer isso, sabe? Vai, faça alguma coisa. Tenta. De certa forma, explorar os sonhos, esse espaço em que a cabeça e a sensibilidade voam de maneira menos controlada, acho interessante. Tem fornecido algum material. Anoto os sonhos e, muitas vezes, sonho com imagens também.

• Desenha solta as imagens dos sonhos?
Nunca fico tão solta assim. E desconfio que a maior parte dos artistas também não tem tanta soltura. Muita gente escreve diário, em princípio, algo muito íntimo e pessoal, mas a pessoa está sempre pensando em publicar aquilo de alguma forma. Estou sendo injusta. Gosto de ver cadernos de rascunho. Tenho um caderno do Debret e são justamente os desenhos mais rascunhados com anotações rápidas que acho os mais encantadores.

• Quanto ao formato, você desenha tanto em superfícies pequenas, como um A4, quanto grandes, em painéis?
Tenho só desenhado em superfícies pequenas. Já desenhei em espaço grande, fiz pôsteres, mas não faço mais. Há muitos anos, prefiro o pequeno.

• Por quê?
Porque estou velha. [Ela ri] Se desenhar em escala grande, me perco. No filme Laerte-se tem umas cenas em que desenho na parede. Como experiência foi interessante, mas é difícil. Um desafio que não é muito sopa, não.

• E o seu gesto, vem do pulso ou do ombro?
Para desenhar, acho que do pulso. Nunca me perguntei isso. Em geral, estou travadinha aqui em cima. O pulso é que vai.

• Dá para desenhar achando que vai melhorar com o tempo? O desenho pode ficar completo? A técnica ajuda ou atrapalha na sua forma de expressão?
Não sei dizer. Quando fiz minha autorrevolução e parei de desenhar personagens, também parei de desenhar de um jeito standard, que era minha maneira de fazer caricaturas, com olhão, narigão e tal. Nesse sentido, perdi a noção do que era melhorar o desenho porque estava tentando, a cada hora, um caminho diferente. Desenhar melhor passou a ser uma espécie de desafio de cada desenho, de cada unidade de trabalho. O que eu quero desenhar aqui? Como vou conseguir isso? Muitas vezes, não conseguia. Outras vezes, partia para soluções mais historicamente resolvidas. Foda-se, vou fazer desse jeito porque é o que sei fazer. Agora, quanto à evolução, acho que acontecem duas coisas. Por um lado, você fica mais destra no que faz, mais conhecedora do seu próprio jeito. Por outro, você vai envelhecendo, como eu estou. A mão vai ficando frágil, insegura. Há muitos anos, morreu o René Goscinny, do Asterix. Quem sobrou? Uderzo. Ele continuou desenhando o Asterix, mas tinha um time de pessoas que desenhava para ele. E tem que ter mesmo porque é uma coisa estúpida desenhar não sei quantas páginas com a regularidade com que as pessoas pediam as aventuras do Asterix. Ele fazia o lápis, dava as indicações e passava para a equipe desenhar. No que fez muito bem. Não tenho como passar para uma equipe porque nem tenho uma. Às vezes, me dava vontade de ter, mas não sei. A gente vai ficando frágil mesmo, vai cansando.

• Sente isso na sua mão?
Sinto. Fazer grandes histórias, por exemplo, é uma coisa que está praticamente fora dos meus planos. Uma vez, pensei nisso e levei quase dez anos pensando numa história. Construí uma espécie de pré-roteiro, deu um volume absurdo de páginas. Parei. Deletei tudo. Desisti.

• E os seus personagens, como pensa a construção? Eles são batedores da sua história ou eles têm vida própria?
O conceito de personagem em história em quadrinhos se baseia na repetição, na reapresentação diária, às vezes, semanal. Tem que ter coerência. Asterix, Mafalda, Calvin, todas essas coisas. Como parei de fazer personagens em 2004/2005, não tenho mais essas preocupações. Hoje, os meus personagens são basicamente de uma história só. A não ser alguns que são recorrentes, como a mulher elefante, por exemplo. Ela aparece de vez em quando nas tiras, mas nem esquento. De onde tirei a mulher elefante? Deixo que ela construa o seu próprio universo de situações. Quem faz muito bem a construção de personagens é o Angeli, eu acho. Os personagens dele têm uma estrutura clara e muito forte. De onde eles vêm? Dessa realidade que o Angeli entende e traz para o universo do trabalho dele. Não consigo fazer isso. O meu modo de entender e mergulhar na realidade é muito mais superficial, mais bobo. [Ri] Por isso, não consigo extrair personagens que sejam muito frutíferos. Vivo me comparando com todo mundo. Acho que todos conseguem e eu não. Veja o Pablito, esse menino. Olha o que ele faz. [Laerte se levanta e pega o livro Conversas em Porto Alegre, de Pablito Aguiar, publicação independente]. Ele, literalmente, sai na rua e faz reportagens. Extrai uma história e desenha. Não são personagens que ele inventa, mas que ele apresenta. São pessoas reais de Porto Alegre. Na verdade, ele é de Pelotas, mas acho que mora em Porto Alegre.

• Ele faz reportagem em quadrinhos…
Isso. O Pablito conversa com as pessoas e depois faz uma entrevista em quadrinhos. No final de cada história, ele põe uma foto da pessoa. É super legal. Seria absolutamente incapaz de fazer isso. Já a Alison Bechdel, cartunista americana, fez o livro Perigosa sapata. [Laerte se levanta novamente e traz o livro.] Ela criou um universo de personagens absolutamente maravilhoso. Tocou esse trabalho durante 25 anos, fazendo páginas de história em quadrinhos que são uma das coisas mais ricas, mais absurdamente representativas de uma época, de um contexto, de um segmento importantíssimo da história americana, que é a revolução sexual. O grupo das lésbicas se articula com o feminismo, com a política, com as artes e tudo. Não sei fazer isso. Acabo partindo para ficções. Assim, monstros, alienígenas, seres mitológicos, sabe?

• Um mundo mais fantástico?
Não sei o que é que vem. Como isso soa? Alguém com uma imaginação fértil? Pode ser. Mas também soa para mim alguém com uma incapacidade crônica de se vincular com a realidade, de se interessar por ela ou coisa assim. Não? Vão perceber que sou uma fraude. [Rimos] Esse é um sentimento permanente. Uma das coisas que me fizeram desistir do projeto da história longa foi porque estava caminhando para ser uma espécie de registro autobiográfico. Percebi que não tinha firmeza nenhuma para dizer o que estava dizendo. Aliás, não sabia nem o que estava dizendo.

• Certa vez, você me chocou dizendo que achava que seu desenho era imaturo. Ainda acha isso?
[Rindo] Ah, sim. Não só o desenho, mas a história também. Acho que, às vezes, faço histórias meio tolas. Mas não é uma tolice tola. É uma bobagem que me interessa. No campo de histórias mais ideológicas, da charge, quando preciso construir uma mensagem que é uma leitura política da realidade, nessas horas, muitas vezes, acho que falo bobagem. Por quê? Porque não sou jornalista, assim como você. A minha excelência dentro do que faço passa longe de fazer pesquisas ou estudar, sabe? A sacada, a intuição e esse tipo de coisa frequentemente cai num lugar chato, de falar algo irresponsável ou imaturo. Eu faço isso.

• Outra coisa que me chocou foi ouvir que você não se acha ousada. Como ousa falar isso?
Ousada? Não sou ousada, não. Ouso falar isso porque sei o que é um autor ou uma autora ousada. Demoro muito a tomar determinadas atitudes. Fiquei muito tempo num emprego que não me falava nada, nem ao coração, nem ao estômago. Não, ao estômago falava sim porque pagava bem. Tudo era muito bom. Suportei esse lugar durante muito tempo em nome de quê? Estabilidade econômica? Pode ser. Mas tem também um componente de covardia, sabe? De uma coisa que é o contrário da ousadia. Não tenho muita coragem de mudar determinadas estruturas que precisam ser encaradas. É o que acho de mim. [Pausa] Ousadia. Não é uma palavra que eu pense em usar para me descrever. Teve esse negócio de me travestir, por exemplo, que as pessoas falam: “Ah, isso é uma atitude corajosa da sua parte”. Demorei 60 anos para isso. Ou melhor, fiz a chamada transição aos 60 anos. Quanto tempo demorei entre o início da minha vida sexual, da minha percepção de gênero lá pela infância e adolescência, até os 60 anos? Foi um bom tempo que fiquei empurrando tudo para debaixo do tapete. Estava adiando as coisas, postergando.

• Isso tem a ver com o fato de você se achar uma fraude? De onde nasce essa ideia, ela mesma uma fraude? Será que é pura síndrome de uma impostora?
[Ela ri] Esse negócio de “eu sou uma fraude” é um dos apanágios da síndrome do impostor, que virou uma coisa superconhecida, assim como o burnout. As pessoas têm síndrome do impostor. Acho que faz parte da minha autopercepção esse negócio de achar que não sou legitimamente o que as pessoas acham que sou. Tenho essa convicção. Muitas vezes, acham que sou outra coisa. Já tive provas de que as pessoas estavam enganadas em relação a mim. Uma vez, me convidaram para apresentar uma determinada faceta ou fazer um determinado show. Não sabia fazer aquilo, não tinha o que dizer, foi uma coisa constrangedora. Fiquei em silêncio. Foram momentos horríveis para todo mundo, principalmente para mim.

• Mas ninguém tem sempre o que dizer o tempo todo.
É muito comum que as pessoas tenham expectativas em relação às outras, que recolhem essa atenção. Se você é alguém que atrai atenções de um determinado tipo, como a Ivete Sangalo, o pessoal do BBB, por exemplo, acaba sendo portador de expectativas das pessoas em geral e nem sempre está pronto para responder por isso ou corresponder a essas expectativas. Acho que grande parte do meu sentimento de inadequação vem quando sinto que estão esperando demais de mim. Daí para “eu sou uma fraude” já é um salto meio patológico.

• Talvez seja também uma forma de piada, de rir de si mesma?
Não, achava mesmo que eu era uma fraude. Atualmente, já não acho tanto porque isso se diluiu numa ideia geral de síndrome do impostor e tal. Falar “as pessoas vão descobrir que sou uma fraude” perdeu a densidade.

• Você tem vontade de escrever ficção só com palavras, seja literatura para infância, para jovens ou para adultos?
Não. Nem saberia fazer. O Mutarelli fez e muito bem.

• Goethe dizia que as cores são ações e paixões da luz. E você, como se relaciona com elas?
Não gosto de colorir. Em geral, procuro soluções mais cômodas. O resultado do meu trabalho colorido não me satisfaz. Prefiro o preto e branco ou em tons únicos. Gosto de trabalhos com várias gradações de um mesmo tom. Me dou melhor assim. O Photoshop foi muito bem-vindo porque resolvo de forma tranquila uma coisa que sempre foi um estorvo para mim. Desenho no papel, escaneio e procuro resolver as cores da forma mais simples possível. Não busco fazer uma grande pintura, não sei fazer isso. Não sei fazer muita coisa. [Ela Ri]

• E modelo vivo?
Rafael Coutinho, meu filho, e eu convocamos para uma atividade de modelo vivo. As pessoas vão na expectativa de que aquilo é uma aula, de que vão ter orientações. Da parte do Rafael, isso é bem possível porque ele é uma pessoa muito capacitada a fazer isso. Agora, eu não dou aula. Aquele é um espaço de fazer, me comporto como qualquer pessoa que está ali desenhando. Os encontros não são para ensinar técnicas, mas para promover discussões e avaliações em que as pessoas percebem coisas que não teriam percebido de outra forma. Tem sido uma experiência importante. Tenho gostado de fazer. Gosto muito desse momento de desenhar um corpo humano.

• Você já deu aula de desenho alguma vez?
Não sei dar aulas, já tentei e foi horrível. Oficinas sobre humor… uma experiência traumática. Fiz algumas atividades com crianças também, foi mais legal. Mas não sou uma boa professora, não sei abrir portas importantes. Acho que a capacidade de bons orientadores é perceber o que as pessoas estão buscando e abrir portas. Em suma: não sei fazer nada, sou uma fraude em diversos setores. [Rimos]

• Voltando ao corpo humano: como você se sentiu do outro lado, quando posou nua para um ensaio fotográfico?
Eu?

• Sim, vi um ensaio seu com o fotógrafo Rafael Roncato. Ficou tão bonito.
Nua só fiz um. Não fiquei com vergonha. Algumas fotos ficaram legais. Gosto do Rafael Roncato como fotógrafo. Mas não sei se curti como algo meu, sabe? Foi uma experiência. Agora, sem ser nua, não me sinto bem. Não me sinto à vontade em frente às câmeras. Fico torcendo para acabar logo, não sei qual cara faço. Parece que estou jogando alguma coisa, mas não sei as regras do jogo.

• No seu processo criativo, o que te faz eleger uma ideia e seguir adiante com ela?
Fico pensando que as ideias não devem ser uma coisa tão aleatória, deve haver um propósito em ter uma ideia. Às vezes, é algum tipo de inquietação localizada que me faz pensar e me movimentar. Acabo produzindo alguma coisa. Tendo a fazer resumos, a sintetizar coisas e não abrir muito. O tipo de preocupação como “O que é o liberalismo?”, por exemplo… fico lendo uma colunista da Folha que prega o liberalismo com grande veemência. Ela apoiou a eleição do Milei e disse que esse é o cara que a Argentina precisa. E que o Brasil deveria procurar um Milei também. Ela não associa o presidente argentino ao rancor e à selvageria da extrema direita. Acha que o Milei é a melhor expressão do liberalismo como uma saída para tudo. Isso me incomoda. Fico pensando: essa mulher estudou muito para falar essas bobagens todas. Vai ver que não é bobagem. Eu é que não sei discutir com ela. Mas parece tanto bobagem… então, penso em ideias que, de alguma forma, possam argumentar com isso. Nem sempre respondo dentro da perspectiva de um debate convencional. Às vezes, aquele incômodo me leva para outro tipo de formulação, que não é exatamente uma contestação ao que está proposto.

• Dá um exemplo?
O negócio do arrebatamento da Baby Consuelo, que agora se chama Baby das Nações. Acabei fazendo uma historinha que saiu no domingo (25/02) na Folha. O tema do arrebatamento está presente, mas não me preocupei em contestar a Baby. A ideia do fim do mundo é perturbadora o suficiente para gerar um tipo de loucura em cabeças fanáticas, como a da Baby. Ela prega que Deus vai levar todo mundo e entraremos num período de sete anos de tribulação onde o anticristo… está tudo escrito já. Fico besta de ver. Mas por outro lado, muito provavelmente o mundo vai acabar mesmo. Em quanto tempo? Não sei. A Rita Von Hunty ficou também em evidência por uma entrevista na qual comenta que alguém falou que eram três anos. Três anos e o mundo acaba, minha filha. Não dá para bater o martelo dessa maneira, mas tem gente que está batendo. Tudo isso entra no meu campo de visão de forma meio desorganizada, são inquietações, perturbações. Muitas vezes, essas ideias estranhas e incômodas geram uma produção, uma resposta em criação. De que outros modos vêm as ideias? Sei lá, de qualquer lugar. Muitas vezes de leituras, algumas antigas. Gosto muito de reler coisas, como a Alison Bechdel, que releio milhares de vezes. [Nesse momento, recebemos a visita de uma borboleta, que mais parece um sabiá.] Quando minha gata levou um tiro na coluna e ficou paraplégica, me comovi muito. [Celina e Muriel, dois de seus gatos, foram vítimas de tiros de espingarda dados por algum vizinho. Celina ficou paraplégica e passou a andar em cadeira de rodas.] Entre ela levar o tiro, ficar paraplégica e morrer, se passaram quase dez anos. Foi quando fiz uma série, uma historinha que se passa em 16 ou 17 tiras. Não fiz o retrato da experiência que aconteceu com ela, mas uma releitura do que é a vida com um animal. Na minha história, a personagem tinha cabeça de animal e corpo de humano, com perna e tudo. Gostei muito, fiquei bem satisfeita com aquilo.

• Ainda sobre as suas ideias, o fato de elas influenciarem pessoas ainda é aterrorizante para você?
É um pouco incompreensível. Não sei como minhas ideias Influenciam outras pessoas. É uma coisa meio nebulosa, não consigo entender como, mas sei que acontece. Isso me interessa também.

• E duas cabeças pensantes trabalhando juntas? Como foi o processo de fazer o livro Storynhas (Companhia das Letras), com a Rita Lee?
Ela me convidou e achei ótimo. Tive uma conversa com ela antes de começar a fazer. Ou foi depois? Lembro daquela história do peitinho. Ela falou que havia feito mastectomia porque tinha câncer. Desenhei a Rita na história como uma fadinha, com uns band aids nos peitos. Ela me autorizou a isso, pois falou que era legal e engraçado, achou uma boa ideia. Não lembro bem se o encontro que tive com ela foi antes ou depois de desenhar o livro. Acho que foi depois.

• Durante o processo você mostrava sua produção para a Rita?
Sim. Tentei fazer um retrato realista da Rita para a capa e foi um desastre. Fui na casa dela e fiquei tentando desenhar, mas ficou uma merda. Assim que mostrei, a Rita falou: “é… você está com dificuldade porque sou eu? Eu não sou eu.” [Ela ri.] Fiquei tensa, travei total. Acabei fazendo a capa com ela de costas com aquele cabelo laranja. Ficou legal.

• O que você gosta de ler e o que está lendo agora?
Estou relendo Mafalda. Também estou tentando enfrentar o livro de uma autora americana chamada Maggie Nelson, que escreveu Sobre a liberdade (Companhia das Letras). É muito interessante, ela discorre sobre o tema da liberdade e a prática de cuidados em quatro campos: a arte, o sexo, as drogas e o clima. Ela coteja tudo isso com as ideias e os conceitos de liberdade e de cuidados. É difícil para mim porque ando cada vez mais sequelada. Acho que tem a ver com a covid-19 que tive. Fiquei mais burra — já era meio burra — para ler textos acadêmicos. Embora a Maggie Nelson não seja exatamente uma acadêmica, ela tem uma construção de frases mais elaborada do que as minhas sinapses aguentam. Às vezes, desisto no meio ou pego no dia seguinte. Ultimamente, li bastante porque depois da cirurgia, fiquei um bom tempo de molho.

• Que cirurgia? Faz tempo?
Tirei a próstata. Prostatectomia radical. Vou ficar esse ano inteiro em recuperação. A cirurgia foi no final de 2023, fiquei um tempo de molho na casa do meu filho. Li várias coisas: John Steinbeck, As vinhas da ira. Li também um livro do Victor Hugo, O último dia de um condenado. Li uns contos de um autor americano, Henry James, e reli umas Margaret Atwood. Também li Onde pastam os minotauros, do Joca Terron. Enfim, ler foi legal.

• O humor tem limites ou é justamente um instrumento que afrouxa os limites? Dá pra falar tudo por meio do humor?
O humor não é uma língua, mas uma linguagem, um modo de pensar, ver e se expressar. Se isso tem limite ou não? Essa discussão tomou um rumo muito estranho para mim depois do atentado terrorista à Charlie Hebdo (2015), quando se falou de limites do humor. Mas a experiência que tinha marcado esse tema no Brasil partiu da direita, do campo conservador. De humoristas que também são conservadores e mais tarde se revelaram até bolsonaristas, como Danilo Gentili e Rafinha Bastos. Rafinha não foi para o bolsonarismo, mas passou a ser alguém identificado com pontos de vista conservadores. Achei uma discussão tão interessante quanto confusa. Não sabia pensar se o humor tinha limites ou não. O modo como a Charlie Hebdo produzia o trabalho deles, os cartoons e o jornalismo era bem mais ousado e audacioso do que a gente no Brasil. Pensando, inclusive, na experiência do Pasquim, a gente vive com o pé no freio. Por quê? Excesso de prudência? Difícil dizer. Tentei fazer também uma reflexão sobre o que tinha acontecido na Charlie Hebdo numa historinha de duas páginas para a revista Piauí. Nesta história, ficcionalmente eu era chamada, antes do atentado, para participar de um concurso mundial, quando foi feito um sorteio para uma pessoa ficar um mês dirigindo a Charlie Hebdo. Abriram esse prêmio para categoria de humoristas do mundo inteiro e eu fui escolhida. Chego lá e começo a ver as matérias que eles querem fazer. Me vejo na situação de falar: “Peraí, gente, calma, vamos perguntar opiniões de outras pessoas”. Eles falam: “Como assim, perguntar? Que merda de humorista! Você quer pedir permissão?”. A personagem, que sou eu, vai consultar uma estudante árabe, que mora em Paris. A estudante diz: “Bom, o pessoal da liberdade de expressão adora esse tipo de provocação. Eles vão até onde dá”. Evidentemente que é ofensivo. Eles colocam o profeta Maomé virado com um não sei o que no cu. Isso não é provocação? Claro que é. Mas vai falar para eles que não pode. Puta que o pariu! Vem a revolução francesa, vem a Mariane, vem tudo. Tentei esse tipo de coisa, mas ficou uma história confusa, não ficou muito bem resolvida. Em geral, o que me preocupa no humor não é o limite, mas o horizonte. O que gostaria de saber: como o humor pode expandir o olhar? Porque muitas vezes a pessoa que está reivindicando liberdade total para dizer algo com humor está falando coisas tacanhas, francamente retrógradas. É muito comum acontecer.

• E quando os outros é que fazem humor com você? Um dia desses, vários memes sobre suas tirinhas viralizaram no Twitter: “Laerte, não entendi sua tirinha”. Ou “Acho que entendi”. Ou “Entendi”… Como você lida com as redes sociais?
[Risos] Eu não entendo. A princípio, me espantou um pouco, fiquei meio assustada. Depois, achei que era uma reação meio da moda. O sinal mais evidente que vejo nesse fenômeno é positivo. As pessoas estão lendo para dizerem que não entenderam, que entenderam ou o que sentiram. Também fizeram as interpretações mais doidas. Isso acho legal, ué, a pessoa que cria quer que os outros vejam, né?

• Sim. Também me parece uma amostra da expansão do olhar por meio do humor. E, na maioria das vezes, é o olhar dos jovens que criam esses memes.
Isso me dá também uma chave de tentar entender qual a expectativa dos jovens que estão lendo coisas na internet hoje. Não sou mais jovem, mas também leio coisas na internet: a Ivete, a Baby, o Daniel Alves. O modo como a gente, pessoas de 70 e tantos anos, interpreta é diferente de como alguém com 17, 18 ou 20 poucos anos. As construções de explicações e interpretações são interessantes. Muitas vezes, a pessoa acha que tem que ter chaves e códigos escondidos em uma mensagem, que estão ali para serem interpretados e decodificados. De certa forma, lembra um pouco a linguagem que a gente usava na época da ditadura. Como driblar a censura? Mandando recados cifrados, por exemplo, “O dia que virá”. Ou “A volta do Cipó de aroeira no lombo de quem mandou”(cantarola). Não é muito sutil. É a vingança da revolução, que vai pegar os caras e botar pra foder. Não gosto disso, mas houve uma época em que era a linguagem mais comum, tudo em código para passar despercebido pela censura. Hoje não tem nenhuma censura, ou melhor, até tem. A censura das conveniências está forte.

• E a censura das redes sociais?
Ah, bom, e aí todo mundo escreve usando algarismos. Nunca consigo entender essas coisas direito, mas tem um sentido. Eles escrevem uma palavra que você identifica, mas tem algarismo lá dentro, que é para o algoritmo não cortar ou não usar aquilo para fazer sei lá o que. Para pedir um pix para você [Risos]. Vivo com medo de levar um golpe. A coisa mais comum de acontecer é alguém escrever assim: olha, tem um acesso que foi feito com o seu CPF.

• Você já caiu em golpe?
Já. Caí no golpe de alguém que clonou o celular de uma pessoa muito próxima. Meu irmão e eu caímos. Porque a gente nem pensou que aquilo podia ser um golpe. Depois da coisa passar… gente, que imbecilidade.

• O que você pensa sobre o uso da inteligência artificial principalmente para a criação de imagens? Já usou?
Não, nunca usei. Mas é um fenômeno que ainda está em processo. Acho que vai assumir proporções que a gente nem faz ideia. Já li coisas que dá vontade de desler, de sair correndo. Por quê? Porque a inteligência artificial é um recurso que faz tudo. Ela junta um campo com o que você alimentar e constrói outro negócio. Então, em princípio, ela está fazendo um mega plágio, produzindo algo que não é original. A discussão sobre direitos autorais e inteligência artificial faz todo o sentido. Mas faz ainda mais sentido, para mim, a discussão entre os campos e garantias de trabalho com a inteligência artificial. Isso é sério em qualquer campo da produção de áudio visual, da dublagem, de qualquer área. Por outro lado, não dá para desinventar. Como fazer? Matar essa charada de alguma forma, organizar uma regulamentação. Não dá para liberar tudo. Por enquanto, estamos nessa área de discussão. Não tenho uma posição muito firme, não.

• E a IA na política?
A gente vai ter que descobrir como lidar com isso. As implicações são muito sérias. Vamos ter agora pela frente uma campanha eleitoral, onde esse tipo de coisa está sendo usada. Outro dia, um imbecil, bolsonarista de raiz, falou: “Ah, todo mundo sabe que o Lula morreu e o que a gente está vendo são atores. Existem técnicas hollywoodianas muito conhecidas e perfeitas. Você fica junto da pessoa e não percebe que é um ator usando uma máscara”. Para mim, a diferença entre esse tipo de loucura idiota e o uso de inteligência artificial não está muito longe. A inteligência artificial consegue gerar a imagem de uma pessoa falando coisas. Participei de uma experiência que foi produzida e patrocinada pela Close up. Era para criar uma personagem virtual que dialogasse em caixas de texto com qualquer cliente. A construção desse robô foi feita na base de elaboração de frases e possíveis saídas e respostas. Não sei os termos disso direito, mas foi construído um bot com o trabalho exaustivo de uma amiga minha. Participei do projeto com alguns desenhos, construí um pouco da imagem gráfica da personagem. Não se escondia que era um bot. Depois, os jornalistas que conversaram com ela demoraram a entender que era um robô, ficaram espantados. Difícil matar a charada.

• Você entrou nos cursos de jornalismo e de música. Ouve música enquanto desenha? Você toca algum instrumento? Estou vendo um piano na sua sala.
Entrei nos cursos, mas não me formei nem em música, nem em jornalismo. Não gosto de música. Nunca ouço. Bloqueei.

• Por que não gosta de música?
Não sei, parei de ouvir música. Foi um processo depressivo que aconteceu e a música foi ficando uma coisa penosa, chata. Antes eu gostava. Na época da universidade, queria fazer música para cinema ou teatro. Era meu objetivo estratégico: a música com essas duas conexões. Mas desisti da música para desenhar. Passei a desenhar e entrei de novo na ECA para fazer jornalismo, porque queria um diploma. Não fiz nem dois anos e caí fora. Não cheguei a tocar piano de um jeito aproveitável, mas de vez em quando, faço umas buscas. Atualmente, não tenho nem curiosidade por músicas. O Mano Brown, por exemplo, gosto da fala dele, das ideias, mas não sei como a música dele soa. Já escutei um pedacinho em algum lugar, mas não tenho paciência para ouvir nada, nem a Baby das Nações.

• Em qual terreno prefere habitar: poesia ou filosofia?
[Ela ri] Acho que poesia. Mas não me considero uma poeta. Gosto do assunto, me sinto como alguém diletando. Agora, filosofia não consigo, não manjo nada mesmo. Tenho dificuldade para ler.

• A morte é uma retirada de véus? Qual sua relação com ela?
O quê? Nossa, não faço nem ideia do que é a morte. Retirada de véu? Quem falou isso, o Goethe?

• Não, foi você quem falou.
Eu falei? Que horror. Não sei o que quis dizer, especialmente nessa altura do campeonato. Tive notícias da morte de formas diferentes e cada vez mais frequentes. Incluindo a minha própria morte. Deixou de ser uma das possibilidades no futuro, é uma coisa bem próxima. O arrebatamento. Incluindo a morte geral de todo mundo. Não tenho ideias muito claras a respeito disso, não me lembro de ter falado essa história de tirar véu… [Pausa] Ah, já sei que véu foi esse! Foi quando meu filho morreu. [Em 2005, num acidente de carro, morreu Diogo, aos 22 anos.] Foi um fato que transformou tudo, né? Foi tanto que transformou o meu trabalho também. Mas não tirei uma coisa muito permanente disso.

• Na orelha de Manual do Minotauro, você diz que a comicidade é um subdistrito do humor. E que o humor é um país. Como é esse país-humor?
Estava num humor muito ruim no dia em que escrevi isso. Essa ideia é meio tranquila, que o humor pode se expressar através da comicidade, que busca a gargalhada. Mas também pode vir de formas mais sutis, mais poéticas ou mais sei lá que nome dar. É isso, o humor. Se você pensa em Machado de Assis, não imagina dar gargalhadas, ainda que ele tenha uma visão humorística da realidade. É uma coisa que me interessa. Gosto do momento da risada, de dar gargalhadas. É um trabalho difícil. [Ri]

• E o país-amor como seria?
Não faço ideia. Nem que língua fala. Uma vez, estava numa entrevista que ia calçar uma exposição no Itaú Cultural, na Paulista. Foi feito um vídeo como parte do arsenal de coisas acessáveis. Estava o Guazzelli, a Ivana Arruda Leite e a Maria Rita Kehl. A Maria Rita, lá pelas tantas, perguntou “o que é o amor?”. Fiquei completamente sem saber o que responder. Comecei a falar de relacionamentos, quando percebi que não era isso. Me dei por vencida e falei qualquer coisa, mas fiquei com aquilo na cabeça. Anos mais tarde, falei sobre isso com ela: “Você me deixou numa situação tensa, não sabia o que dizer”. Nem agora, eu sei. A tentação é responder dentro do chavão, do clichê: o amor tem um lugar na nossa vida que é especial pipipi pópópó. A gente começa a categorizar os amores, né? Não sei o que dizer. Mais fácil falar de humor do que de amor.

Raquel Matsushita

É escritora, ilustradora e designer gráfico. Autora do livro de contos Mínimo múltiplo comum, entre outros.

Rascunho