La denser

Entrevista com Márcia Denser
Márcia Denser, autora de “Toda prosa”
01/03/2002

Márcia Denser é um caso à parte na literatura brasileira. Sua trajetória vai muito além do mundinho literário que habita algumas cabeças desavisadas. Márcia Denser — La Denser — é uma das mais importantes escritoras deste país, mulher de seu tempo, desbravadora, essa que vê a vida com desconfiança e dá gargalhadas diante de situações consideradas delicadas.

Este Toda prosa mostra uma literatura que não faz concessões a nada, especialmente agora em que o que de fato reina é a leviandade e os acertos espúrios, tudo amparado por uma mídia cultural indecente. Uma literatura de elaboração consciente, mesmo quando de caos aparente. O caos faz parte da literatura de Márcia Denser. Tudo faz parte.

Num livro a sair ainda neste ano pela mesma Nova Alexandria, e ainda sem título, no qual eu entrevisto as mais importantes e significativas escritoras e poetas brasileiras — entrevistas/perfis publicadas pela revista Caros Amigos, de São Paulo — Márcia Denser confessa que seu ídolo cultural é Peter Pan e que sua santa de devoção é Terezinha de Lisieux. E nessa entrevista ela comentou seu drama iniciado em 1983, quando o jornalista Paulo Francis começou a se derreter por ela. Por várias vezes, Francis escreveu na Folha de S. Paulo que Márcia Denser era a única escritora brasileira que sabia escrever. Paulo Francis vivia em Nova York e lera o livro O animal dos motéis, obra memorável de Márcia Denser.

A primeira nota de Paulo Francis causou um furor. O telefone de Márcia não parou de tocar. O primeiro a ligar foi Raduan Nassar:

— Você leu o Paulo Francis hoje na Folha?

— Como li, Raduan? Ainda não são sete horas da manhã!

— Leia o que ele escreveu sobre você.

O problema é que essa admiração de Paulo Francis deixou muita gente incomodada. E a cada nova nota e novo elogio, o incômodo crescia e perturbava mais.

— Muitos puxaram o meu tapete descaradamente. Por causa dos elogios de Francis passei a ser perseguida. Uma coisa inacreditável. E isso dói até hoje, por seu absurdo. Isso também revela bem o meio em que vivemos.

Toda prosa é um livro absolutamente belo em todos os sentidos, porque as palavras que contém trazem os olhos enormes de Márcia Denser, mulher que abomina a inveja da qual foi vítima:

— A inveja é letal, corrosiva, a inveja mata! Ninguém foi mais invejada do que eu. Ninguém. Uma coisa acintosa, terrível!

Ítalo Moriconi incluiu dois contos de Márcia Denser na antologia que preparou para a Editora Objetiva Os cem melhores contos brasileiros do século. Ele assina a apresentação de Toda prosa. Diz: “Antes de ser ficção, ou para além da ficção, o texto de Márcia Denser é pura escrita. Prática de escrita, obsessão da escrita, sobretudo erótica da escrita. Deriva pelo corpo da escrita, recolhendo a memória de uma escrita do corpo. Erótica da letra. Para os aficionados a esse jogo, é um júbilo reencontrar a prosa de Márcia Denser, assim tão em forma, assim tão fiel a seu gesto estético e erótico original”.

Ítalo Moriconi observa ainda:

— Não há culpa no gozo de Márcia narradora, pois ele está enquadrado pelo sonho hedonista típico das culturas jovens e joviais que emergiram nos anos 60 e 70 e que alimenta as utopias tanto clandestinas como midiáticas das culturas da maturidade e da terceira idade nos anos 80 e 90. Nesse universo cultural, gozar é um direito. No caso das mulheres, isso representa uma conquista histórica, antropológica, uma revolução total.

Este livro de Márcia Denser é uma afirmação concreta da belíssima literatura de uma escritora séria e honesta consigo mesma, com a palavra, com sua própria postura diante dos equívocos reinantes na literatura brasileira. Antes de tudo, uma palavra de quem conhece profundamente esse ofício de escrever. Uma literatura digna, distante das badalações fáceis tão comuns na paisagem atual de tantas misérias e falta de idéias. Diante desse quadro muitas vezes constrangedor, Márcia Denser é um alento. Dá até para dizer que nem tudo se perdeu.

• O que significa este novo livro para você e sua literatura?
Para mim é uma espécie de retorno, de reconciliação com o mercado editorial. Certa vez eu disse que minhas angústias não eram individuais, mas coletivas, donde que a literatura brasileira amargou bem uns dez anos de quase total ocultamento, de 87 a 97, por razões que todos sabem, e a globalização é uma delas, sem contar nossa moratória decretada em 87, começou aí.

• Como foi sua elaboração?
Neste Toda prosa trabalho com obra recolhida — contos e duas novelas. Os contos Branca de Neve, Irresistível Vivien O’Hara, O Último Tango em Jacobina, que saíram em antologias, O Último Tango, já traduzido em duas línguas, inglês e alemão, ainda não constava de minha obra solo, o Nevermore, uma homenagem a Edgar Allan Poe e Truman Capote, obras com que muito me diverti e/ou sofri ao escrever, logo espero que aconteça o mesmo com meu leitor, até porque leitor privilegiado sou. Já imaginou que eu preciso vender esses textos primeiro para mim? E eu posso ser um bocado chata quando quero, você nem imagina quanto. E também há inéditos em livro como o Memorial de Álvaro Gardel, Cometa Austin, Trade Lights, onde considero que minha linguagem atingiu aquele nível em que se integra criação e técnica, razão pela qual escrevo agora de ‘primeira’, quase sem corrigir.

• Como é que você se situa na literatura brasileira atual, se é que você se situa nisso?
Se algum dia já fui Ruptura, hoje estou incorporada à Tradição, contudo sempre à esquerda, sem bola dividida, em jogadas individuais. Enfim, acho que estou conquistando meu lugar, acrescentando meu fragmento ao padrão do Projeto Poético Brasileiro e como gosto de pensar nele — no meu trabalho — como uma pedra angular em progresso (se isto não fosse totalmente absurdo!). Pedra e trabalho literário que espero concluir antes da morte, não é?

• Você acredita que a literatura brasileira vive um bom momento?
Sim, a julgar por aqueles dez anos atrás de 97 quando então era só Paulo Coelho e auto-ajuda, está havendo uma retomada, surgindo editorialmente novos escritores excelentes como Bernardo Ajzenberg, Nelson de Oliveira, Fernanda Young, Fernando Bonassi, Luiz Ruffato, Marcelino Freire, Marcelo Mirisola, Bernardo Carvalho, João Carrascoza, Marçal Aquino e outros, o que já caracteriza uma geração — a do computador, pós-90. Sem contar a retomada da turma de 70/80, aliás intemporal, com Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva, Álvaro Alves de Faria, Ivan Ângelo, Silvio Fiorani, Roniwalter Jatobá, Sonia Coutinho, Rogério Menezes, Esdras do Nascimento, Antonio Torres, Rubem Fonseca, Roberto Drummond, Duílio Gomes, Moacyr Scliar e muitos outros.

• E isso pára por aí?
Na realidade, há quatro gerações de escritores VIVOS em conexão, de Raquel de Queiroz a Rodrigo Penteado. Se eles ainda não perceberam, então eu lhes chamo a atenção — vivemos um momento privilegiado de intercâmbio de livros e idéias — deveríamos nos ver mais pessoalmente e não só pela internet.

• Você não acha que as mulheres estão sumindo da literatura nacional?
É o que parece. Na minha lista, só me ocorreram duas. Sem contar as poetas, então lembro de Eunice Arruda e de Olga Savary (naturalmente sem mencionar os casos óbvios como Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinõn, Adélia Prado, Hilda Hilst). Acho que as mulheres devem estar todas no cinema, acho…

• É possível fazer planos e projetos literários no Brasil?
Bom, Álvaro, uma vez NÓS fizemos (lembra?) os tais projetos e nos decepcionamos — eu, você, Caio Fernando Abreu — ninguém nos tinha avisado que o futuro não seria possível, que a conta do falso milagre chegaria tão rápido e que nos atingiria tão fundo e de frente, cara, que, doravante, seria a homogeneização, a banalização, a popularização, a americanização, a ideologia do pensamento único: o lucro. Até porque o Capitalismo não tem projeto social, nós sabemos disso e SENTIMOS isso na pele, botamos tudo isso em nossos livros, prospectamos o futuro e somos bastante eficientes ao fazê-lo. E é tudo o que podemos fazer: alargar o campo da consciência, acender a luz.

• Existe literatura feminina e masculina?
Definitivamente, não. Diante de temas como amor e morte há o Escriba, de sexo indecifrável e indefinível, o Escriba que escreve atrás seja do homem ou da mulher que lhe servem de veículos. Até porque se pensarmos num livro como Memórias de Adriano e sua autora, Marguerite Yourcenar, veremos que ela é Adriano, assim como Gustave Flaubert é Madame Bovary, Machado de Assis é Capitu, e por aí vai. O resto são pruridos vitorianos, provincianos, sem contar que a divisão de trabalho castiga igualmente homem e mulher, condena ao mesmo desemprego, à mesma exclusão. O buraco continua sendo mais embaixo, uma questão de dominador e dominado, e esta é outra história.

• Por que o erotismo continua sendo uma marca em sua literatura?
Se não escrevemos sobre a morte, há que ser sobre o amor, já que estamos em pleno domínio de Eros, um poderoso demônio, segundo Sócrates. E em matéria de amor, na realidade, sou mais um intelectual claudicando, implorando por desvelar este demônio execrado, traiçoeiro, adorável. Até porque a chave do paraíso também serve para o inferno.

• Por que poetas e escritores ainda insistem existir num mundo como o de hoje?
Ora, seremos os últimos dragões a povoar a imaginação dos jovens com sua última geração de heróis e anti-heróis. Você não acha isso glorioso?

• Por que você gosta de ser chamada de La Denser? Como surgiu isso?
Olhe, nunca tive apelidos, desde pequena. Era uma garota muito tímida e calada, que escrevia para se comunicar e não ter apelidos era um puta grilo para mim, significava que ninguém tinha intimidade comigo, ninguém conseguia chegar perto. E de repente, meados de 80, a turma da Folha da Tarde, onde eu trabalhava, como o Wladir Dupont, o Wladir Nader, Rogério Menezes, além de amigos escritores, como Caio Fernando Abreu, Silvio Fiorani, Roniwalter Jatobá, começaram a me chamar La Denser. Pegou e eu gostei. Faz com que eu me sinta amada, percebe?

Toda prosa
Márcia Denser
Nova Alexandria
158 págs.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho