Intriga mítico-filosófica na família Medici

A Florença do século XVI é o palco para Mistério em Florença, romance de estréia de Simone Ostrowski, e um colírio para a nova literatura nacional
A escritora Simone Ostrowski: “Os clássicos são mais que preciosos, são poderosos”
01/09/2000

Fazemos uma imagem sempre benevolente do passado. Não importa o quão cruel tenha ele sido, a distância apenas aumenta nosso desejo de perdoar, esquecer, sublimar. Omitimos os horrores de Roma lembrando-nos de Virgílio e Horácio. A Grécia Antiga é sempre o “berço da democracia” ou a “mais bela das civilizações da Antigüidade”. Os escravos do Egito são para nós somente belos personagens de um filme de Cecil B. de Mille. Resta-nos, de memória, apenas o passado recente: Hitler, Vietnã, quando muito Napoleão. Assim também é com o Renascimento Italiano.

A família Medici é conhecida por sua contribuição às artes e à ciência na Florença do século XVI. Esta família, porém — e apesar de sua inclinação à contemplação das artes —, tinha também suas intrigas e seus muitos dissabores, como qualquer família poderosa de nossa época — tomando as devidas proporções de um poder quase que absoluto, claro. É, pois, no entra-e-sai da arte florentina, que Ferdinando di Medici, patrono das artes e cardeal, sai de sua clausura de séculos para contar, em Mistério em Florença (Editora Revan, 109 págs.), da estreante Simone Ostrowski, a história de um crime que o tempo encobriu: o assassinato de seu irmão, Francesco di Medici.

Escrito com muita elegância e recheado da mais tenra erudição, Mistério em Florença surpreende quem espera de uma autora estreante, de vívidos 28 anos, nada mais do que a repetição de clichês consolidados pelo cânone do thriller histórico. Simone Ostrowski escreve com conhecimento de causa e não desaponta os mais céticos quanto ao futuro da literatura neste livro. Pelo contrário, diria que é um colírio para olhos que se fecham de sono à anunciação de mais um escritor no nosso superlotado rol de pseudoliteratos.

Mistério em Florença é mais do que um romance histórico. Escrito como se fosse uma carta de Ferdinando ao filho, o livro traz elucubrações filosóficas de tirar o fôlego do leitor acostumado ao revisionismo irresponsável de certos autores contemporâneos. Nada há que lembre um escritor do século XX (quase XXI!) escrevendo sobre o longínquo século XVI, quando a babação é regra nestes casos. Lúcida, Simone Ostrowski mostra um homem que, mesmo em contato com artistas de “espírito elevado”, se vê numa encruzilhada por deparar as coisas mundanas falando mais alto que as questões de eternidade.

Essa dicotomia do real versus a fantasia encarapuçada de arte é retratada no livro pela bela briga de idéias entre Laura, pupila de Ferdinando, assim uma espécie de pitonisa envolta em questões que satisfazem o espírito de qualquer poeta de fim de semana, e Guido, homem sisudo, pragmático e adepto das idéias de Maquiavel, sempre preocupado com o poder e, por que não?, com a filosofia deste poder, que ele quer porque quer ocupado por seu mentor, Ferdinando. Esta trindade (o Bem, o Mal e o Humano por eles sendo influenciado) são os reais personagens de Mistério em Florença. Escorados por um sem-número de citações clássicas, os personagens se desenvolvem numa dialética de força e beleza, que nos faz lembrar, em muitos bons momentos, Clarice Lispector. A ambientação histórica, por sua vez, aliada à semiologia explícita do texto, nos recorda Umberto Eco.

Simone Ostrowski anda na contracorrente das tendências pós-modernas, que pregam uma maior liberdade de estilos, o que, por fim, acabou por gerar uma infinidade de textos ilegíveis, cuja pretensa “qualidade estética” só faz ocultar o vazio de conteúdo. Mostrando que, ainda hoje, juntando b mais a, sem malabarismos estéticos, é possível fazer boa literatura, Simone Ostrowski sobressai-se no oceano de novos escritores. Para o bem da literatura nacional, cujos maiores nomes andam pela casa dos sessenta.

Uma escritora na contracorrente

Simone Ostrowski, 28 anos, é procuradora da Fazenda no Rio de Janeiro. Nas férias, resolveu dar vazão a sua vocação narrativa e compôs, em surpreendente um mês, Mistério em Florença (Revan, xxx págs.). A respeito do livro e do mercado editorial onde ela entra com o pé direito, tendo sido contatada poucos dias após enviar o livro à editora, Simone Ostrowski concede esta entrevista exclusiva ao Rascunho, na qual destila alguma erudição com um, como direi, raro senso artístico.

Ler Mistério em Florença é perceber uma escritora que está na contracorrente das tendências literárias, desculpe-me o termo, “pós-modernas”. Seu romance é um thriller epistolar escrito em primeira pessoa num estilo limpo, coerente e cheio de erudição. Ou seja, não há nada de pós-modernismo. Isso contrasta um pouco com o que se espera de uma escritora tão jovem. Dentro dessa perspectiva, a da sua mocidade e de seu estilo, digamos, ancestral, o que você espera da literatura neste confuso fien-de-sècle?
No meio de tanto reducionismo, de tantos ataques ao cânone, é bom relembrar o essencial: que a literatura é “dulce et utile”, como dizia Horácio, prazerosa e útil; e é útil porque expande o imaginário e a capacidade de reflexão e percepção do leitor, o ensina a estruturar melhor a experiência, e mais: todo grande texto ficcional, como a Recherche proustiana, possui elementos iniciáticos, reflete uma via de autogeração e transformação que se reflete no leitor. Os textos mais recentes vêm perdendo a força, a influência poderosa sobre o leitor. Por isso, eu vou tentar encontrar meu caminho fora dessas tendências. Prefiro estar só, sem me adequar a nada, com um trabalho estranho e fora das expectativas. Meu próximo romance não é histórico, mas certamente também está fora do previsível.

• Seu livro revela um dote particularmente especial para uma autora estreante: o da pesquisa. Como ela se deu no processo de formação de Mistério em Florença?
Levei mais de um ano pesquisando, e não foi fácil, há pouco material sobre o meu personagem. A morte de Francesco di Medici era um quebra-cabeças, com várias versões conflitantes, inclusive uma de Alexandre Dumas, inspirada nos boatos da época, particularmente romanesca. Mas valeu a pena, pois quando eu avistei esse personagem soube de imediato que poderia ser o veículo de várias idéias que me acompanhavam. Por exemplo, há uma idéia de perfectibilidade, de alguém que faz de uma visão da perfeição a fonte da razão prática, como dizia Auerbach a respeito de Dante.

• Pode-se perceber ecos de uma literatura “feminina” em seu livro, o que nos remete a Clarice Lispector; ao mesmo tempo, o estilo pseudo-acadêmico e a ambientação histórica nos faz lembrar de Umberto Eco.
Minhas bases, os autores que mais releio, são Proust, Dostoiévski, Stendhal, Machado de Assis e Guimarães Rosa. O início de tudo está em Shakespeare; li A Tempestade aos oito anos, me apaixonei pelo personagem Ariel, o espírito aéreo, e resolvi que também seria escritora. Não que eu aprecie muito Bloom, mas Shakespeare e Dante são efetivamente as bases do cânone, os dois pilares. Costumo reler ambos, mas, de Shakespeare, hoje prefiro Hamlet… Também gosto de Clarice Lispector e Fernando Pessoa, de Borges e Calvino, Le Clézio e Cees Nooteboom.

• Em uma entrevista recente você disse que fez concessões para poder escrever este livro, que seu projeto era muito maior. Surpreendeu-me, também, a afirmação de que o livro foi escrito em apenas um mês. Como era o projeto original e, mais importante, por que uma escritora de inegável talento tem de fazer concessões logo na primeira obra?
Eu sou terrivelmente crítica comigo mesma, resolvi começar sem muita pretensão. Só mandei o livro para algumas editoras porque um amigo, em cuja opinião confio, gostou muito. Caso contrário, certamente eu estaria detestando tudo e modificando até hoje. Mas o fato é que o livro está tendo sucesso de crítica. Foi escrito no mês das minhas férias, sou Procuradora da Fazenda; então, acabou ficando menor do que planejava, o que foi ótimo, pois para um iniciante é mais fácil começar com um livro menor e portanto mais barato. O próximo, que estou escrevendo aos poucos, é maior e mais complexo.

• Por que, afinal, ainda fazer literatura?
Realmente a literatura anda em situação complicada, como você bem observa, mas acho que ela continuará nos revelando para nós mesmos. Esse é o seu primeiro papel, e eu o considero insuperável. A literatura nos conta quem somos. Vou utilizar duas definições: Finkielkraut recentemente definiu a literatura como jurisprudência da condição humana. É mais ou menos isso, mas ainda acho jurisprudência um termo vetusto, que mais evoca uma catalogação. A literatura se arrisca mais do que isso, ela é mais reveladora e exploradora do que isso. Ela nos torna mais capazes de estruturar a experiência porque, e aqui vai a segunda definição, de Simone de Beauvoir (meu livro de cabeceira é Memórias de uma Moça bem Comportada), “O romance deve fabricar a plenitude da experiência que nos escapa sempre.” A literatura possui um papel formador que não pode ser substituído ou dispensado. Ela nos revela, nos influencia, expande nossos limites, no imaginário e no senso crítico. Ela nos conta quem somos e mais, nos transforma. Os clássicos são mais do que preciosos, são poderosos. Eles nos atraem, serão redescobertos sempre. Por isso eu espero que a literatura supere tudo, o sistema perverso e consumista em que estamos mergulhados, e permaneça em sua eterna sedução. A história da literatura é implacável, o que não tem valor não permanece.

• Mistério em Florença parece ter sido um caso raro em que a imprensa, sempre desleixada com novos autores, descobriu um trabalho competente no meio de tantos autores novos de poucas palavras. Logo em seguida ao sucesso crítico do  Mistério…, você foi convidada a ser crítica também. Como é “estar do outro lado”?
O primeiro crítico a descobrir meu trabalho foi o Luiz Horácio, do site Baguete, que fez uma resenha muito boa. As pessoas simplesmente foram descobrindo meu trabalho. O Globo, o Jornal do Brasil e a Folha de S. Paulo publicaram ótimas matérias, muito bem feitas, de um modo geral fui realmente bem recebida. Também nas rádios e na televisão tudo está dando certo, a entrevista no Programa do Jô está obtendo uma repercussão excelente. O trabalho para o Jornal das Letras (da Academia Brasileira Livros) surgiu a convite do acadêmico Antônio Olinto, que é um grande escritor e crítico, e fez uma crítica maravilhosa do Mistério… na Tribuna da Imprensa. O convite do Jorna do Brasil veio do Wilson Figueiredo, que gostou do livro e logo em seguida me convidou. O que quero frisar é que eu não conhecia ninguém, nenhum jornalista, nenhum escritor, antes de publicar o livro. Eu vim do limbo mesmo, ninguém me conhecia. Há muitos jovens talentosos por aí, é bom que saibam que sim, é possível abrir caminho desse modo, saindo do nada.

• Muitos autores estreantes questionam o “filtro” das editoras, qualquer que seja o critério. No Brasil, o processo de seleção de novos autores é falho mesmo e, se sim, que implicações isto tem numa literatura que, ao que me parece, vive hoje de autores velhos? Se, por outro lado, o processo seletivo é justo, como se explicam tantas ausências…
Eu mandei o livro para editoras que, segundo fui informada, seriam propícias ao iniciante, como a Relume Dumará, a L&PM, a Revan… Um amigo meu não teve uma boa experiência com uma grande editora. Também eu pouco sabia sobre editoras brasileiras: sempre vivi muito mergulhada nos clássicos, em outro mundo. Agora é que fiquei mais “terrena”. Outro dia eu comentava com a Elaine Pauvolid, uma jovem poeta muito talentosa que eu conheci por causa de uma resenha do Globo: não temos quase coetâneas. Existem com certeza muitos talentos por aí, mas estamos quase sem pares! A literatura sempre foi um ofício raro, mas estamos em uma situação meio inquietante. Agora, que um poeta da estirpe do Bruno Tolentino esteja sem editora, como você me informa, acho inconcebível. Perguntei isso para amigos mais velhos, e acho que preciosidades como Vialatte, René Belletto, os Trois Contes de Flaubert, Le Hussard sur le Toit de Giono, Sylvie de Gérard de Nerval nunca foram publicadas no Brasil. E filósofos que eu tanto aprecio, como Jankélévitch, acho que também ficaram de lado. Quer um exemplo de uma editora brasileira que está nas minhas estantes? A Martins Fontes. Tenho muita coisa de lá. Com certeza as editoras preferem investir no que acham que vende mais, apostando que o leitor médio é medíocre e inculto. Só que as coisas não são tão simples: a oferta também cria a demanda, e atravancar as livrarias e a mídia com best sellers tediosos acaba prejudicando o contato dos leitores com a verdadeira literatura. Essa oferta degradada também cria a mediocridade do leitor, somando-se a todas as circunstâncias adversas que, como brasileiros, conhecemos tão bem. E o leitor é muito mais curioso e sensível do que essa oferta pressupõe, apesar de tudo. Disso eu sabia, e cada vez mais comprovo na prática.

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho