Instalações literárias

Para Ruffato, seus livros buscam encontrar novos caminhos de expressão para as angústias e os desejos do proletariado
Luiz Ruffato reinventou literariamente sua Cataguases natal, da mesma maneira como Gabriel García Márquez fez de Arataca matéria-prima para Macondo
01/06/2005

A entrevista concedida por Luiz Ruffato ao jornalista Marcio Renato dos Santos teve, como ponto de partida, a realidade brasileira contemporânea — matéria-prima do ficcionista. Mas a conversa, como não poderia deixar de ser, se encaminhou para a produção ficcional de Ruffato e outros temas. O autor trabalha no projeto Inferno provisório, que totaliza cinco livros. Dois deles acabam de ser publicados, pela editora Record: Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo. Em 2005 ele produzirá, com auxílio da Fundação Vitae, Vista parcial da noite, o terceiro volume. Os próximos títulos são O livro das impossibilidades e São São Paulo. “A minha obra tenta uma reflexão sobre a seguinte pergunta: como chegamos onde estamos”, diz Luiz Ruffato. A seguir, a entrevista completa.

• Por que o foco de sua obra é realidade brasileira recente?
Eu ainda acredito na capacidade de a literatura modificar o mundo, modificando cada um dos leitores. Foi assim comigo: eu tive uma epifania ao ler meu primeiro livro e percebi que dali para a frente nada mais seria igual. A realidade brasileira se impõe a mim, porque o que me move é o olhar da indignação. Não sou cúmplice da miséria que se alastra pelo país, não sou cúmplice da violência, filha do desenraizamento, que toma o Brasil. A minha obra tenta uma reflexão sobre a seguinte pergunta: como chegamos onde estamos? Se em Eles eram muito cavalos a urgência em retratar o contemporâneo se impôs naturalmente, em Inferno provisório, o meu novo projeto, volto um pouco na história para tentar entender a realidade de Eles eram muitos cavalos. E chego à conclusão, provisória sempre, de que a origem dos nossos males se funda no projeto de perpetuação no poder da elite econômica brasileira, que tem seu início logo após a Segunda Guerra Mundial, com o processo de industrialização brutal do país, quando milhões de pessoas foram deslocadas de seus estados para São Paulo e Rio de Janeiro.

• A elite econômica brasileira está acomodada no seu posto e parece não querer sair de onde se encontra. Sei que você não está querendo apontar uma solução para os problemas do país, mas substituir a atual elite seria uma solução? Ou uma nova elite faria o mesmo que a atual elite faz?
Não tenho a pretensão de apontar soluções. Sou apenas um cidadão otimista. Acho que, denunciando as mazelas da nossa sociedade, e me solidarizando com os que não têm voz, podemos juntos, todos, tentar melhorar o nosso mundo. Romântico? Talvez. Mas acredito ainda em utopias. Talvez o grande mal da nossa civilização tenha sido a decretação do fim das utopias. Eu não me deixo levar por essa falácia. Para mim, o escritor, o artista que fica preocupado com seu umbigo, que só vê o que está no seu restritíssimo campo de visão, é um pessimista, pois está satisfeito com a sociedade em que vive. O problema não é o país — essa conversa fiada de que somos assim por causa da colonização portuguesa… A Guiana foi colonizada por ingleses e nem por isso é melhor —, o problema é que nossa elite e nossa classe média são predatórias. Querem enriquecer, querem se dar bem a qualquer custo. Aqui dizemos: “Ah, os brasileiros são uns grossos!”; “Ah, os brasileiros são uns irresponsáveis!”; “Ah, os brasileiros são uns folgados”. Nós nunca nos colocamos entre os grossos, os irresponsáveis, os folgados. O problema está sempre no outro…

• O presidente Lula foi eleito, entre tantas coisas, a partir de uma promessa de mudança, de ruptura com o jogo jogado até então. Mais de dois anos se passaram. Qual sua opinião sobre a gestão Lula e sobre a figura do presidente?
É preciso distinguir duas questões, antecipadamente. Que a eleição do Lula, um ex-operário, traz uma mudança de patamar no imaginário, isso é uma verdade indubitável. Foi a primeira vez que alguém que não fazia parte da elite brasileira alcançou um cargo tão alto na política brasileira. Isso demonstra a solidez das conquistas democráticas do Brasil. Agora, o que resulta desse fato é a outra questão. Fico estarrecido com certa mentalidade de intelectuais brasileiros, claramente preconceituosos e reacionários, que argumentam que o relativo fracasso da administração Lula deve-se à sua pouca escolaridade. Ora, presidentes cultos e poliglotas, que o antecederam, jogaram-nos nesse caos que vivenciamos hoje. Para mim, o problema é bem mais complexo. A sensação de frustração com a administração Lula decorre mais do sistema político brasileiro, que é exercido dentro de interesses bem mais amplos, do que à qualificação da máquina burocrática petista. É triste vermos a educação, duramente desmantelada pela ditadura militar, ter sido jogada na lata de lixo pelos sucessivos governos civis e perceber que a administração Lula carrega-a para o cemitério… É triste ver a administração Lula, que teve na imprensa um aliado de primeira hora na tentativa de limpar o país dos corruptos, dizer que não se deixa impressionar pelas denúncias da imprensa… É triste ver a administração Lula fazendo alianças espúrias apenas para se perpetuar no poder…

• Nos últimos anos, religiões pentecostais e neopentecostais cresceram muito no Brasil. Algumas têm canais de tevê e rádio. Outras, alugam horários na mídia eletrônica. Elas elegem vereadores, deputados estaduais e federais e senadores. Essas igrejas dão para as pessoas aquilo que o Estado não dá, da mesma forma que o narcotráfico substitui o Estado omisso. Como você analisa o avanço dessas igrejas no Brasil? E a Igreja Católica?
A meu ver, as igrejas pentecostais e neopentecostais só são bombardeadas pela imprensa porque são malvistas pela elite católica brasileira. A Igreja Católica agiu sempre assim, da mesmíssima maneira, no Brasil. Sempre foi dona de rádios, de votos, de consciências. Mandou e desmandou impunemente sempre. Agora, como está perdendo terreno, a elite brasileira acusa os pentecostais e neopentecostais. Ora, qual a diferença? Ambos querem a alienação e a manutenção da miséria para se aproveitar delas. O que ocorre hoje é que as “igrejas dos crentes” substituíram os católicos no assistencialismo. Os mesmos defensores do Estado mínimo são os incentivadores, por tabela, da existência desse vácuo do Estado, aproveitado, de um lado, pelos pentecostais, por outro, pelo narcotráfico. Vivemos hoje um país onde o Estado só serve aos interesses da elite. A população brasileira não tem acesso à segurança, à saúde, à educação, ao bem-estar mínimo. Então, a crítica não deve ser dirigida aos pentecostais, mas ao Estado, que abdicou de sua responsabilidade. E estou pensando aqui em alguns países europeus, que não abriram mão de um Estado presente em alguns setores cruciais, como saúde, educação, cultura, segurança etc.

• Os livros da série Inferno provisório tratam do proletariado. Você se vale de uma linguagem de certa forma experimental, usando itálicos, negritos, tipos variados. Na realidade, você estabeleceu a linguagem mais adequada para dar voz à classe social sem voz. É isso?
Sou filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira de roupas. Ele, semi-analfabeto; ela, analfabeta. Eu fui preparado para ser, no máximo, um operário qualificado. E para isso fiz o Senai, me formei em tornearia mecânica. Por desígnios outros, acabei rompendo com o universo limitado de Cataguases, minha cidade natal, e me formando em jornalismo na Universidade Federal de Juiz de Fora. Sempre pensei que, se algum dia me tornasse escritor, sonho de criança, queria dar um depoimento da minha classe social. Porque, inacreditavelmente, o trabalhador urbano pouco comparece às páginas da ficção brasileira… Mas, eu pensava, não quero falar do proletariado usando o gênero romance, porque o gênero romance foi concebido para ser a expressão da burguesia… E eu não queria expressar o ponto de vista da burguesia… Pois bem, o Eles eram muitos cavalos, e agora a série Inferno provisório, são tentativas de encontrar um outro caminho para expressar as angústias e os desejos do proletariado. Não estou inaugurando nada, claro, mas estou nadando nas mesmas águas da tradição da literatura experimental, que se ergue sobre nomes como Sterne, Dujardin, Baudelaire, Mallarmé, Machado de Assis, Joyce, Proust, Faulkner, Robbe-Grillet, Butor…

• Realmente, o trabalhador urbano é algo praticamente ausente na malha literária brasileira contemporânea. Sua proposta é contar a história da industrialização do Brasil, do ponto de vista do operário?
Quando pensei em fazer uma reflexão sobre a minha época, tinha consciência de que não poderia usar o gênero romance tal e qual, porque esse foi pensado como um instrumento de expressão do ponto de vista da burguesia nascente. E eu queria dar um depoimento de quem viveu no andar de baixo da sociedade brasileira, filho de proletários que sou. Então, organizei uma “saga” de cinco volumes, que tenta dar conta da história da industrialização do Brasil, não a partir do olhar do patrão, mas do operário. É curioso que a figura do trabalhador urbano esteja praticamente ausente da literatura brasileira. E isso por uma razão que me parece muito simples: o sistema de mobilidade social no Brasil é tão pequeno e perverso que obriga a quem ascende a tentar esconder o seu passado, as raízes. Temos, por exemplo, muito mais representações do camponês — em geral, a partir de membros da aristocracia decadente, que num determinado momento se identificam com o drama dos trabalhadores rurais —, e do malandro e suas variações — por causa do fascínio exercido pelo marginal na mentalidade classe média dos escritores, que romantizam esse personagem — que do trabalhador urbano.
Inferno provisório é uma saga dividida em cinco livros…
Inferno provisório é a história dos últimos 50 anos do Brasil. Começa com Mamma, son tanto felice, que flagra uma pequena comunidade de italianos no interior de Minas Gerais, decadente e iniciando o êxodo rural. No segundo volume, O mundo inimigo, os descendentes dessa comunidade, já totalmente brasileira e abrasileirada, estão numa pequena cidade industrial, Cataguases, tentando sobreviver como mão-de-obra desqualificada em um meio que lhes é extremamente indócil. Essa mesma estrutura temática aparece no terceiro volume, Vista parcial da noite, que poderíamos, grosso modo, identificar como sendo as décadas de 60, 70 e 80. O quarto volume, O livro das impossibilidades, já trata dos netos e de seus impasses frente a um país que começa a esboroar. É a década de 90 e os personagens transitam entre Cataguases, Rio de Janeiro e São Paulo. E finalmente, o último volume, São São Paulo, com licença do Tom Zé, é o nosso tempo…

• Inferno provisório é uma saga dividida em cinco livros…
Inferno provisório é a história dos últimos 50 anos do Brasil. Começa com Mamma, son tanto felice, que flagra uma pequena comunidade de italianos no interior de Minas Gerais, decadente e iniciando o êxodo rural. No segundo volume, O mundo inimigo, os descendentes dessa comunidade, já totalmente brasileira e abrasileirada, estão numa pequena cidade industrial, Cataguases, tentando sobreviver como mão-de-obra desqualificada em um meio que lhes é extremamente indócil. Essa mesma estrutura temática aparece no terceiro volume, Vista parcial da noite, que poderíamos, grosso modo, identificar como sendo as décadas de 60, 70 e 80. O quarto volume, O livro das impossibilidades, já trata dos netos e de seus impasses frente a um país que começa a esboroar. É a década de 90 e os personagens transitam entre Cataguases, Rio de Janeiro e São Paulo. E finalmente, o último volume, São São Paulo, com licença do Tom Zé, é o nosso tempo…

• Você criou uma linguagem própria em sua ficção: há itálicos, há negritos, há variação de tipologia, além da não-linearidade narrativa. Existe, nisso, uma tentativa de dialogar com outras linguagens, como o cinema, o teatro, a internet, as artes plásticas e a oralidade do mundo real?
A arte se utiliza de ferramentas as mais diversas para apreender a realidade. O que tem me inquietado, desde quando comecei a escrever, é a possibilidade de a literatura dialogar com outras linguagens artísticas. Então, passei a tentar trazer para a linguagem da ficção outras linguagens, como a do cinema, não a do roteiro, mas a do filme, a da televisão, a do teatro, a das artes plásticas, principalmente a relacionada às instalações, a da poesia, e das novas tecnologias (internet), redimensionando o próprio gênero ficção, romance, conto, crônica, e recuperando a linguagem da oralidade… A idéia é que essas marcações todas estejam presentes, transformadas numa outra linguagem, ficcional, que chamaria, provisoriamente, de “instalação literária”. A forma do Inferno provisório parte da hipertextualidade: cada história se abre para novas histórias, como se pudéssemos clicar sobre o nome das personagens secundárias numa história e nos deparássemos então com suas histórias próprias. Então, pode-se ler de trás para a frente, pedaços autônomos ou na ordem que se quiser estabelecer. Cada página abre novas possibilidades…

• Por falar em possibilidades, você organizou duas antologias com autoras brasileiras. O que esse trabalha significa?
A idéia das duas antologias, 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira e Mais 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, partiu de uma constatação. A crítica, quando se referia à literatura brasileira contemporânea, citava, entre dez nomes, nove homens, uma mulher. Eu, que acompanho na medida do possível a produção dos meus pares, sabia que essa relação não era correta. Conhecia várias mulheres que estavam escrevendo, e bem, e que não apareciam citadas. Então, propus à Luciana Villas-Bôas, da Record, organizar uma antologia que tivesse como pressuposto um único ponto: reunir mulheres que começaram a publicar a partir de 1990. Comecei a pesquisar e cheguei a um número assustadoramente grande. Em princípio, a antologia, que seria apenas uma, compreenderia 15 mulheres. Quando estava na metade do trabalho, fechamos, eu e a editora, em 25, e no fim do trabalho eu tinha algo em torno de 70 nomes. Então, sugeri um segundo tomo, com mais 30… Mas sobraram várias autoras ainda…

• Você procurou mapear a produção contemporânea?
Tentei, sim, mapear a produção contemporânea. Todas tiveram total liberdade para escrever o que quisessem, utilizando o espaço que quisessem. Eu busquei autoras que morassem também fora de São Paulo, Rio e Porto Alegre, onde se concentra a produção contemporânea, não só feminina, e que abrangesse vários referenciais. Por isso, as antologias não refletem, de forma alguma, meu gosto pessoal, mas sim os vários caminhos que vem tomando a literatura, não só das mulheres, é claro. Agora, duas coisas importantes: primeiro — não há, em lugar algum dos dois volumes, nenhuma referência à “literatura feminina”, pois não acredito em literatura com adjetivo. Toda adjetivação à literatura é uma forma de reduzi-la. Acredito que todos, homens e mulheres, fazem literatura, uns melhor, outros pior…; segundo — não admito hoje um crítico ou resenhista falar de produção contemporânea sem citar de igual para igual homens e mulheres…

LEIA RESENHA DE INFERNO PROVISÓRIO

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho