• Você considera que exista diferenças entre a literatura feita por homens ou mulheres? Qual seria a especificidade da literatura feminina?
Não. Para mim, a literatura divide-se em boa e má — a má é aquela que não sabe considerar o ser humano na sua totalidade e diversidade, baseando-se antes em estereotipos, clichês já prontos. Aquilo a que se convencionou chamar “feminino” e “masculino” existe, em doses variadas, em homens e mulheres. O grande livro para entender isto é Orlando, de Virginia Woolf. Quando Orlando muda de sexo, Virginia escreve: “a mudança de sexo alterava-lhe o destino, mas não a identidade”. Esses separatismos são artificiais, e têm objetivos puramente políticos: às mulheres a literatura feminina, aos homens a Literatura com L grande. Uma ova.
• Em algumas partes de Fazes-me falta, um dos personagens faz referência à idéia de que a música e a arte estão um tanto acima de questões como esta que acabamos de tratar… Você concorda com seu personagem?
Sim, porque a questão que acabamos de tratar, a bem dizer, nem é uma questão. É só uma armadilha temporal, absolutamente temporária.
• E com o contrário? “Os homens” são mesmo “um truque de ilusionismo que as mulheres inventaram para poder continuar a ser vítimas sem ofender as conquistas da sociedade contemporânea”?
Atenção: a personagem diz: “os homens-que-lá-bem-no-fundo”, ou seja, os homens que, à superfície, são brutos e desrespeitadores, mas que algumas mulheres insistem em achar que “lá bem no fundo” são uns santos. Refiro-me aí à cumplicidade de algumas mulheres na manutenção da prepotência de alguns homens, ou seja, ao fato de o machismo sobreviver hoje em dia, pelo menos nos meios sociais mais desafogados, muito por culpa das mulheres que o apoiam. Jamais diria “os homens” isto ou “as mulheres” aquilo. Sou loura, mas não tão burra, apesar de tudo…
• Fazes-me falta é um livro de que tipo de autor? Em que lugar você acha que está, acompanhada de quem, longe de que outros, dentro do quadro da literatura atual?
Eis uma coisa em que nunca pensei nem espero vir a pensar. Não escrevo para entrar em nenhum clube, escrevo porque é aquilo que melhor sei fazer, é a minha forma de estar no mundo. De modo que guardo essa opinião para os leitores. Todavia, sinto-me muito acompanhada, em Portugal, por escritores que muito admiro. Alguns deles, tenho o privilégio de os contar entre os meus amigos mais próximos — por exemplo, aqueles que me ajudaram a melhorar o Fazes-me falta, e que estão nos agradecimentos do livro. Dentre eles, avulta sempre o poeta Fernando Pinto do Amaral, que me acompanha, dia a dia, pela vida afora.
• Um escritor é 90% aquilo que ele lê? O que você lê, então?
Não. Há quem leia maravilhosamente sem nunca chegar a ser um bom escritor. Um escritor é, antes de mais, uma vocação, um talento em bruto — que pode ser melhoradíssimo, evidentemente, através das leituras, como através de outro tipo de encontros (pessoas, lugares, acontecimentos). Mas não acredito em escritores que não leiam. Eu leio voraz e continuamente. Neste momento, leio o último romance da fabulosa Agustina Bessa-Luís , Os espaços em branco, o impressionante ensaio que Martin Amis escreveu sobre o terror estalinista (Koba, o terrível) e a Verdade tropical de Caetano Veloso, que tem sido um dos grandes autores da banda sonora da minha vida. E releio Ruy Belo, um luminoso poeta português que, 25 anos depois da sua morte, permanece contemporâneo, e influenciou decisivamente toda a mais jovem poesia portuguesa — que tem já autores de grande qualidade.