Se o pragmatismo impera sobre uma grossa camada da sociedade, passando pela indústria de consumo, na qual está incluída a fatia destinada à cultura, é de se imaginar o sufoco por que passa um jornalista, aquele profissional que dispõe das palavras como instrumento de trabalho, mas que, submetido a inúmeras regras que não cabe aqui enumerar, termina muitas vezes acostumado ao simples cumprimento de relatar os fatos. No entanto, para quem souber se aproveitar dessa relação, o jornalismo fornece uma visão privilegiada sobre a realidade, que pode vir a se transformar em matéria-prima para a literatura.
Desse modo, infiltrar-se nas redações dos grandes jornais diários é um caminho tomado por diversos autores para se manterem no exercício da escrita. Uma vez ali, o contato entre duas vertentes: a primeira, aquela que exige o compromisso com a realidade, com a veracidade dos fatos; a segunda, com o apoio da leitura nas horas vagas, que aguça o imaginário do escritor e confunde a fronteira entre o real e a ficção — esta pode aparecer sob o título de crônica ou em reportagens mais elaboradas, já sobre o terreno da literatura, sem deixar, porém, de estar impregnada pela visão jornalística, como acontece na obra do escritor e jornalista José Castello.
Castello passou vinte anos de sua vida trabalhando em redações de jornais impressos, entre eles o semanário Opinião, na época em que o País estava sob o jugo militar, revista Veja, como repórter policial, e esteve até mesmo envolvido no universo do esporte, escrevendo para a revista IstoÉ, o que o levou a cobrir a Olimpíada de Los Angeles e a fatídica Copa do Mundo da Itália. Fora das páginas badaladas, o jornalista trabalhou como subeditor do Caderno B do Jornal do Brasil, e, por quatro anos, foi editor do suplemento de idéias do jornal referido. Em 91, porém, decidiu colocar em pauta aquilo que era sua meta desde a adolescência: dedicar-se à literatura.
Dessa leva nasceram O Poeta da Paixão, biografia de Vinícius de Moraes (Companhia das Letras, 1993); O Homem Sem Alma, ensaio sobre João Cabral de Mello Neto (Rocco, 1996); Na Cobertura de Rubem Braga (José Olympio, 1996), um retrato do repórter e cronista; Uma Geografia Poética (Relume Dumará/Rioarte, 1996), ensaio sobre as relações de Vinícius com o Rio de Janeiro; e, destoando do estilo das biografias e ensaios anteriores, Inventário das Sombras (Record, 99), livro em que o autor relata seu contato pessoal ou com a obra de quinze autores, em alguns momentos livre da abordagem jornalística e beirando a ficção, antecipando, portanto, sua intenção de trabalhar com ela, que agora se afirma ao chegar no romance Fantasma (Record, 2001, 386 págs.).
O narrador de Fantasma é um arquiteto aposentado, que vive há sete anos em Curitiba e, ressentido com a profissão, mas sobretudo com a paisagem modernosa que toma conta da cidade, apenas colabora com artigos para a revista Lâmpada Azul, do editor Benedito Zammenhoff. Já no começo do livro, o arquiteto expõe seu dilema e fala do livro que fez, mas que já não existe. A proposta desse livro surgiu de um encontro entre o arquiteto e seu editor, que, com um cheque gordo nas mãos, pede para que ele escreva um ensaio sobre Curitiba, utilizando como referência a figura de um escritor da cidade. Depois de relutar, o nome do poeta Paulo Leminski parece ser a melhor escolha, já que o narrador tem o distanciamento — ele não gosta de Leminski — necessário para falar sobre o bardo. Em pouco tempo, o ensaio, ou o “livro”, está pronto, porém, ao passear pelo Jardim Botânico, o arquiteto é surpreendido por uma cigana que, com apenas uma frase, o desloca. “Paulo Leminski não morreu” são as palavras ditas por ela, fazendo com que ele ache seu livro odioso, guarde-o na gaveta e decida averiguar até que ponto a frase da cigana é verdadeira.
É a partir daí que se desencadeia toda a história de Fantasma. O que seria um ensaio, vira um questionamento sobre as fronteiras entre realidade e ficção, um embate entre aquilo que mesmo os ensaios, as investigações, contém de imaginário. Personagens como o que acreditava ser Dalton Trevisan, ou o crítico uruguaio M. Estenssoro, dão a idéia de uma realidade em que o homem está sozinho com seus próprios fantasmas. Além, é claro, da análise sobre como a figura de Paulo Leminski está inserida no imaginário da cidade. É sobre essas relações e outros conflitos presentes em Fantasma que José Castello fala, em entrevista exclusiva ao Rascunho.
• A fronteira existente entre realidade e ficção, ou ainda a abolição dessa fronteira, é um dos principais pólos de Fantasma, e algo utilizado em suas obras anteriores. Como você analisa esta relação?
O que mais me interessa na ficção é justamente esta zona de névoa que a separa, mas também a aproxima, da realidade. O escritor argentino Ricardo Piglia tem excelentes idéias a respeito. Ele diz que o escritor é aquele que vacila entre a realidade e a fantasia, e jamais se decide por nenhuma das duas. São os escritores que se colocam nessa posição, como o próprio Piglia, os que mais me interessam. Escritores como João Gilberto Noll, como Paul Auster, como Clarice Lispector, Saramago, ou indo mais para trás, como Kafka, Pessoa e Checov. Quando falo em entrar nessa zona cinzenta, porém, não estou pensando na costura fácil entre realidade e imaginação feita, por exemplo, nas tais “biografias romanceadas”. Uma “biografia romanceada” tenta resolver esse conflito entre real e fantasia; quando a questão, me parece, não é resolvê-lo, mas aprofundá-lo, radicalizá-lo, ver até onde ele vai.
• O “fluxo de idéias” ao qual você se refere durante a obra, e que é também um fluxo de linguagem, foi uma das características das narrativas do último século. Na sua opinião, continuará sendo neste?
Acho muito perigoso falar nas características de um escritor individual (como se elas fossem determinadas por motivos genéticos, ou por algum tipo de pedigree), quanto mais falar nas características de um século. A literatura, como tudo, está cada vez mais fragmentada e instável. É, em conseqüência, cada vez mais difícil responder à pergunta “o que é a literatura?” e os melhores escritores de hoje escrevem para tentar encontrar uma resposta — e, quando encontram, chegam a respostas sempre muito divergentes. Prefiro, contudo, as coisas assim, mergulhadas na diversidade, prefiro essa paisagem assimétrica, intrigante, enigmática às grandes tendências rígidas das “escolas”, das “eras”, das “gerações”, recursos que podem ter sua funcionalidade didática mas que, no fim das contas, só simplificam as coisas, só as aprisionam em clichês e nada mais fazem que anular as diferenças. No caso de meu Fantasma, o fluxo de idéias de meu narrador, é preciso dizer, não tem nenhuma pretensão de genialidade, ou mesmo de originalidade. É, ao contrário, a ruminação interior de um personagem basicamente paranóico. Meu arquiteto é um sujeito que guarda boa parte das características atribuídas habitualmente à paranóia: é minucioso, pensa em círculos, vive atolado em dúvidas e em suspeitas, jamais está satisfeito com as respostas que encontra. Se você pensar mais um pouco, verá que esta estrutura de ruminação não caracteriza só o pensamento do narrador, mas todo o romance — os personagens (os “Leminskis”) que ele encontra ao longo da narração parecem intercambiáveis; a narrativa está cheia de duplos, de cópias, de sujeitos sem face, de vultos enigmáticos — de fantasmas, enfim. Ele vive numa espécie de mundo virtual, um mundo que tem só superfície, em que as palavras, afinal, nada valem. As palavras, em vez de o acalmar, de lhe clarear as idéias, o atordoam. Meu arquiteto é um homem que “sofre” das palavras, como sofremos do estômago, ou dos dentes.
• O narrador-arquiteto busca ao longo do romance uma razão, por meio de um detetive ou do centro neopitagórico, para dar fim ou ao menos guiá-lo em sua busca. Entretanto, o que prevalece e o força a continuar é a angústia desse personagem. Os impulsos e o desconhecido ainda são mais fortes do que a razão?
A epígrafe de Fantasma, tomada do francês Joseph Joubert, diz: “Fecha os olhos e verás”. Está quase tudo sintetizado nesta frase de Joubert. Ao menos, o método, não só o método com que meu arquiteto partiu para sua investigação (dando crédito a uma frase insensata), mas também o método que usei para escrever Fantasma. Eu tentei escrever o ensaio sobre Curitiba, mas a coisa não andava — e, quando eu me entregava à voz do arquiteto, sem saber bem o que era aquilo, ao contrário, a escrita fluía. Sou agnóstico, se fosse religioso pensaria em um livro “ditado” ou coisas assim. Mas, como não sou religioso, só posso pensar em forças que vêm não de fora, mas de dentro de mim. E é com essas forças secretas que todo escritor se vê quando parte para escrever um livro. Não é possível dedicar-se à literatura, a nenhuma arte, eu creio, sem ceder a um certo “instinto”, sem se deixar guiar pela sensibilidade, que é cega, muda e nos carrega para lados que não esperamos. Não acredito nesses mitos românticos do artista como antena da raça, ou como um ser especial, um iluminado. Mas não há dúvida de que, para escrever, é preciso trilhar uma certa zona de trevas, sem o que o trabalho sai, ou mecanizado (e aí vêm os clichês), ou intelectualizado (e então resultará frio e impessoal). Dou um enorme valor à razão, mas acho que a razão só funciona se ela vem temperada por um pouco de cegueira, de espírito desarmado, de susto. A matéria da literatura, Pessoa já dizia, é a intranqüilidade.
• Mergulhar em busca do personagem Leminski pode corresponder a uma análise da própria poesia, que, para muitos, é o gênero em crise do final do último século.
Embora tenha escrito uma biografia de Vinicius de Moraes e um ensaio sobre João Cabral, não me considero um especialista em poesia. Gosto muito de alguns poetas — Pessoa e Cabral sobretudo, Yeats, Marianne Moore, Vinícius, Bandeira, Manoel de Barros, Herberto Helder, para citar os que mais me apaixonam — mas nem sempre acompanho o trabalho dos novos poetas que, para dizer a verdade, em geral me desagradam. Compartilho, de certa forma, a opinião de meu arquiteto a respeito de Leminski, talvez com menos acidez. Sei que Leminski é, no entanto, uma figura chave na vida intelectual do Paraná. Eu o vejo, na verdade, como uma espécie de enigma, um enigma que perdura, que muitos já tentaram “amansar”, domesticar, mas que continua a inquietar e a intrigar. É verdade, seu fantasma ainda ronda por Curitiba, com os atributos próprios dos fantasmas: aquela falta de direção, aquela imprecisão, o espírito perdido e o susto que carrega consigo. Leminski, hoje, é uma espécie de grande recalcado na vida dos curitibanos — é aquilo que, em geral, não se consegue ver. E, como não se suporta ver, se coloca sempre outra coisa em seu lugar, ora ele é visto como um santo, ora como um maldito — duas maneiras de recusá-lo. Para vê-lo (e aqui meu arquiteto parece ter razão) é preciso, então, fechar os olhos. Parece-me que ele não deixou herdeiros, ao menos nesse conjunto de atitudes, recusas e destempero com as palavras que caracterizam os grandes poetas. Para ser poeta, é preciso viver como poeta, Vinícius dizia, e nesse sentido Leminski foi um discípulo inconsciente de Vinicius.
• Inclusive a visão de mundo do arquiteto é marcada também por alguns pensamentos presentes na obra de Leminski, como aqueles que falam do fracasso, do erro, das “trevas”. Fechar os olhos, nesse caso, também significa deixar-se influenciar por ele?
Não tive a intenção de trabalhar com este laço entre o arquiteto e Leminski. Mas, é claro, andei lendo Leminski enquanto escrevia e isso deve ter me influenciado. Leminski, para mim, era só isso: um fantasma. Um espectro, difuso, de várias caras, escorregadio, enigmático, a circular por Curitiba. É verdade que, ao longo do relato, e não sei em que medida os leitores perceberão isso, meu arquiteto vai sentindo tiques estranhos, a orelha a repuxar, o queixo a se alongar, coisas assim, sinais (que nem ele chega a entender direito) de que está passando por um início de metamorfose, de que começa a se transformar, ele também, em Leminski, a “ser” ele também Paulo Leminski. A idéia que me moveu é a de que hoje, em Curitiba, somos todos um pouco Paulo Leminski. Trabalhei com uma foto do poeta a meu lado e, de vez em quando, eu me dedicava a observá-la, lentamente, sem nenhuma intenção prévia, e fui chegando a detalhes que, depois, eu transpus para o rosto do arquiteto. Quanto ao fracasso, bem, não sei se Leminski fracassou, creio que não. Não é à toa que ele nos ficou como um enigma, que está sempre a incomodar e a nos propor questões, que nem sempre conseguimos responder. Não dá para produzir clichês de Leminski, embora o pensamento oficial se esforce todo o tempo para isso. O interessante está aí: ninguém o alcança, ninguém o fisga. Isso é próprio dos fantasmas, o escapar sempre, e também o ser meio onipresente, espalhar-se por todos os lados, rondar sempre à espreita, sem jamais ser visto. O que vemos, de um fantasma, são sombras, espectros, duplos — como os que meu arquiteto encontra pela cidade.
• Em um trecho do livro, o arquiteto fica consternado ao saber que torcedores destruíram um terminal de ônibus mesmo após a vitória de seu time. É difícil para o ser humano lidar com o sucesso, ou, pensando em outros momentos do romance, é difícil lidar com aquilo que criamos como prolongamento da vida?
A cena dos rapazes que acabam de chegar de um quebra-quebra, com o qual comemoraram a vitória de seu time, foi, é claro, tirada da leitura dos jornais. Isso acontece em Curitiba, com certa freqüência: comemorar destruindo. É mesmo uma atitude muito intrigante, além de odiosa. Penso que a cidade, no geral, é complacente com ela, talvez porque, no fim das contas, ela sirva para emoldurar algo do machismo envergonhado que existe aqui. É uma cena muito emblemática, eu penso, da Curitiba contemporânea. A propaganda oficial fala da cidade-modelo, mas é preciso pensar o quanto se destrói também, e sobretudo o que esse “crescimento” inclui de anulação e até de ruína. Tudo isso fica reprimido e às vezes explode onde menos se espera — por exemplo, na alegria de uma vitória. Quanto ao sucesso, bem, é claro que é difícil lidar com ele, até porque a atitude mais saudável diante do sucesso é, sempre, a desconfiança. Outro dia assisti na TV a uma velha entrevista do De Chiricco, o artista plástico. Ele disse: quando me elogiam, eu não acredito. Já quando me criticam, disse ainda, tendo sempre a acreditar. Pode parecer uma atitude masoquista, de baixa auto-estima, mas é também uma atitude prudente, sobretudo num mundo de elogios tão vazios, de embalagens falsas, de marketing e narcisismo. Além disso, o artista está sempre insatisfeito com o que faz. Eu mesmo, tenho lá minhas insatisfações com o Fantasma. Poderia falar, longamente, de suas imperfeições e dos momentos em que, eu acho, fracassei. O fracasso não só faz parte do humano, como é ele que nos impulsiona. Parece um clichê de Lair Ribeiro mas, mesmo que seja, é a pura verdade. Poucas coisas são mais nefastas, além de mentirosas e desvitalizantes, que a perfeição.
• Por falar em marketing e embalagens vazias, em uma sociedade de consumo de massas, de padronização, ainda há espaço para a individualidade, não aquela egoísta, da competição de mercado, mas a que permite ao homem ser ele mesmo?
Hoje, quando se fala em individualidade, em geral se pensa em individualismo, em narcisismo — marcas, lastimáveis, de nosso tempo. Mas individualidade e individualismo são coisas absolutamente diferentes. Creio que estamos condenados hoje a um impasse: ou nos “normalizamos”, nos deixamos dissolver na grande mesmice das embalagens, da moda, das griffes etc., ou, se tentamos um caminho diferente, somos logo taxados de narcisistas. Na verdade, vivemos um tempo em que sobra pouco espaço para a liberdade interior, para a liberdade individual — apesar de todas as garantias democráticas que, ainda bem, se consolidaram no continente. Uma coisa é a liberdade formal, garantida pela lei, outra bem diferente é a liberdade interior, que cada sujeito conquista ou não e que depende apenas de cada um, que é um território de luta absolutamente particular.
• Qual a sua relação com as outras formas de arte? Em conversa recente você comentou o quanto a interpretação da obra de um pintor como Francis Bacon auxilia na análise da literatura.
Tenho uma relação intensa, embora informal, com a pintura, o cinema e a música. Francis Bacon, de fato, é um de meus pintores favoritos, pela radicalidade com que construiu seu caminho, livre das opressões da pintura oficial, da decoração (embora tenha sido decorador na juventude), mas livre também dos cânones da vanguarda — tanto que construiu, de um modo absolutamente surpreendente, numa época de abstratos e conceituais, um novo figurativismo. É um sujeito que pintava com os nervos e isso está em seus quadros, basta ter a coragem de olhar para eles com atenção. Poderia falar de outros artistas que me marcam muito, mas são tantos os nomes…. Bem, posso citar uma fotógrafa, a italiana Francesca Woodman, outra artista que distorceu completamente nossa noção não só de real, mas também de arte, de imaginação. Gosto de artistas que, como Bacon e Francesca, pegam as coisas por dentro, mergulham sem medo naquilo que nos apavora, retorcem nossas mentes pelo avesso, artistas para quem a arte não é um jogo intelectual, mas uma aposta vital.
• “E ela estava certa: Leminski estava bem mais nos poemas” (pág.175). Como se dá o seu conhecimento de um escritor, por meio somente da sua obra, ou a biografia também tem presença importante?
É bom lembrar. primeiro, que você está citando uma frase do arquiteto, meu personagem, e não minha. Eu sou muito diferente do arquiteto, é preciso deixar bem claro. Sei que, como Fantasma é meu primeiro romance, e antes só publiquei biografias, ensaios e retratos, em grande parte escritos na primeira pessoa, muitos leitores tenderão a fazer essa confusão, a julgar que estou falando por meio do arquiteto, que ele fala por mim, ou mesmo que eu “sou” o arquiteto — o que será um grande erro. Eu sei, Flaubert já dizia que “madame Bovary c’ est moi”, mas isso que Flaubert diz não é tão simples quanto parece ser. Feita essa ressalva, posso dizer o seguinte: eu acredito que qualquer um pode, perfeitamente, ter acesso pleno à obra de um escritor sem saber coisa alguma a respeito de sua vida real. Não é preciso conhecer a biografia do artista para entender uma obra de arte. No entanto, o conhecimento da biografia de um artista pode enriquecer muito o contato com as obras. Claro, se ao ler a biografia, você fizer uma leitura mecânica (do tipo, ele se tornou um artista abstrato porque aos quatro anos levou uma surra do pai, ou coisas assim), será melhor, mesmo, ficar só com a obra — porque tomada dessa maneira mecânica, a biografia servirá mais como um véu, como um obstáculo para a obra, do que como uma possibilidade de acesso a ela. As relações entre obra e biografia são muito complexas (e por isso mesmo muito ricas). Esta fronteira exige, por isso mesmo, e para vir a ser útil, uma grande cautela. Felizmente, importantes artistas brasileiros, e também importantes críticos, vêm trabalhando essa relação obra/vida de modo sutil e sem preconceitos.
• Adolfo Bioy Casares e José Saramago podem ser referências suas no que se refere ao uso da memória, que requer recriação, não só em Fantasma, mas também no seu penúltimo livro, Inventário das Sombras?
Penso mais em Saramago, nesse caso, que em Bioy. Muita gente ainda toma o Saramago como um autor de romances históricos o que, nessa altura, é muito engraçado! É um erro quase elementar. Saramago mexe com a história, sim, mas não na esperança de reproduzi-la e sim de recriá-la. Ela lhe serve como matéria-prima, instrumento bruto que ele usa para retorcer, distorcer, recriar e, desse modo, chegar ao que busca. Mas, como ninguém chega exatamente ao que busca, Saramago fica com essa fama que não combina com o que ele é. Sim, ele trabalha a memória de um modo muito peculiar e criativo, mas isso não quer dizer, também, que se deva imitá-lo. Cada escritor deve encontrar seu caminho pessoal. Só isso importa. Se esse caminho encontrado é “bom”, ou é “ruim”, isso é problema dos outros, mas não deve ser um problema do escritor. Quanto a Bioy Casares, um escritor que admiro muito também, ele parece ser um escritor, nesse aspecto, bem menos torturado que Saramago — Bioy fez uma opção direta pela imaginação e não abria mão dela em troca de nada. A liberdade era sua única medida.
• Em Inventário das Sombras você faz diversas críticas à Indústria Cultural, àquilo que as grandes editoras impõem ao escritor. Agora, em Fantasma, um dos personagens é um editor, e o narrador-arquiteto recebe a proposta de escrever um livro sobre encomenda. Como você analisa este meio, onde estão os principais problemas?
A indústria cultural vive da fabricação de padrões, moldes, clichês, formas fechadas. Mas ela existe, não podemos negá-la, ou ignorá-la. A questão é como nos colocamos diante dela. O que fazemos, afinal, com ela. E até que ponto podemos usá-la a nosso favor. As editoras, na medida em que se profissionalizam, se expandem como negócio, em conseqüência tendem a evitar os grandes riscos, a desejar o seguro. Então, puxam tudo para a média, quando não para baixo. Aumentam seu volume de lançamentos, de negócios, e passam a não discriminar com tanto rigor os produtos que lançam. Perdem, em geral, seu perfil editorial — o que, eu penso, é um erro. No exterior, algumas das editoras mais bem sucedidas são justamente aquelas que radicalizam seu perfil, que se tornam inconfundíveis. O editor Benedito Zammenhoff, o personagem de Fantasma, é um sujeito que não seguiu os ventos da vida contemporânea, que espera que o real se dobre a seus desejos e, então, se tornou anacrônico. Ele deseja o presente, mas o presente o assusta, Zamenhoff não sabe lidar com ele. Os personagens de Fantasma são, em geral, sujeitos antigos, que se apegaram ao passado não porque o amem ou porque desejem preservá-lo, mas porque têm graves problemas com o presente. São homens imóveis, um pouco fantasmagóricos, por isso mesmo.
• Os problemas com o presente, essa dualidade entre o novo e o antigo, é um conflito também de Curitiba?
Curitiba é conhecida nacionalmente, mundialmente até, como uma cidade modelo. Uma cidade planejada, com um projeto urbano definitivo, uma concepção moderna de espaço etc. Tudo isso é verdade, mas só metade da verdade. Existe uma outra Curitiba, submersa, oculta, excluída da propaganda oficial, desprezada pelo marketing, tão importante quanto a primeira: a Curitiba dos miseráveis (que vão comendo a Curitiba moderna pelas bordas, pois se amontoam na periferia), dos excluídos, dos sujeitos deprimidos ou meio doidos, sem projetos, sem sentido, do vazio existencial. Não é à toa que um dos esportes preferidos da garotada aqui é quebrar ônibus e estações de ônibus. Este quebrar para nada, por puro desafogo, é um sinal, instalado na juventude das classes mais altas, do vazio que a embalagem oficial esconde. Não se trata bem de um conflito entre o novo e o antigo, mas entre a superfície maquiada, recauchutada, e os intestinos moles e doentes. É claro, o velho choque entre o novo e o antigo também está presente na cidade. Mas, aqui, não se trata bem de “um contra o outro”, mas de “um dentro do outro”. A velha Curitiba, a cidade miúda e provinciana, dos polacos, das casas de madeira, das mentes conservadoras e pequenas, dos migrantes cheios de preconceitos contra a diferença, tudo isso sobrevive não contra a cidade moderna, mas dentro dela. Em outra palavras: a elite que modernizou Curitiba e que o mundo vê como “moderna”, a elite que hoje se sente dona da cidade, esconde dentro de si um espírito provinciano, cheio de suspeitas, de preconceitos, guarda uma alma pequena e conservadora, uma visão de mundo estreita, que mal consegue disfarçar. Isso nem o melhor marketing (e olhe que Curitiba é a capital do marketing) é capaz de encobrir.
• Ao observar um processo em suas obra, não terá ocorrido uma mudança do narrador do jornalismo e de algumas crônicas (aquele que observa os fatos e não toma parte neles) pelo narrador de Fantasma, que sofre e é o centro das ações do livro?
Ocorreu, sim. No entanto, muito do jornalista que sou está presente em meu arquiteto e no Fantasma. Não porque se trate de um “romance-reportagem“, ou algo assim, mas porque o romance guarda, no fundo, um tanto da linguagem obsessiva do jornalismo. A obsessão é uma das características fundamentais do jornalismo: a apuração inesgotável, o não deixar escapar nenhum detalhe, o gosto pelas minúcias, o repisar e repisar as mesmas informações, o estilo ruminante. Tudo isso está em Fantasma. Além disso, quando penso no romance, me recordo, com freqüência, das primeiras reportagens que escrevi como jornalista iniciante. O arquiteto, às vezes, se parece com um “foca” (aquela jornalista de primeira viagem): foi lançado numa situação cujo sentido lhe escapa, mas à qual deve se entregar sem reservas, vai avançando sem entender onde pisa ou para onde vai, dá valor a qualquer sinal, pois não sabe distinguir o importante do supérfluo, tateia no escuro. Aliás, qualquer jornalista, mesmo o repórter maduro, se respeita sua profissão, trabalha sempre a partir desse cenário de ignorância. A ignorância, a ausência de conhecimento prévio, é uma das condições fundamentais para a prática do bom jornalismo. Não daquele jornalismo que infelizmente hoje predomina, o do clichê, das formas pré-moldadas, das fórmulas fáceis; mas o jornalismo da surpresa e do susto — o jornalismo que desafia a verdade. Porque o repórter é, ou deveria ser isso: um domador de verdades.
• As referências a Dario Velloso e ao Templo das Musas, fundado por ele, mas sobretudo às correspondências, são artifícios que se desmancham ao perceber, por exemplo, que a palavra Leminski não correspondia ao escritor?
No Fantasma, a palavra Leminski não corresponde, de fato, só ao escritor, ao homem Paulo Leminski, mas às várias idéias grudadas a esse nome e aos vários duplos que ocupam seu lugar. A literatura sofre também o efeito da era do marketing e da mídia. Hoje, aceite isso ou não, todo escritor é, em certa medida, também ele um personagem do imaginário cultural. Mesmo aqueles que se escondem, como Dalton Trevisan, não escapam desse papel. Espera-se muitas coisas do escritor: que seja brilhante, que fale com fluência, que tenha idéias sobre tudo, que seja uma espécie de sábio de plantão. Mesmo quando se cala, mesmo quando “some”, ainda assim o escritor continua a produzir efeitos no universo cultural. Não há como escapar disso, é um dado da realidade. O problema para o escritor, hoje, é saber como lidar com isso. Não adianta fugir, é preciso ter a coragem de enfrentar. E de, dentro das circunstâncias, desempenhar o papel menos melancólico possível. Nem aderir ao mito, às fantasias coletivas, nem repudiar aquilo que lhe é pedido, isto é, que fale, que exista, que sustente sua palavra.
• Alguns estudiosos afirmam que mais importante do que o enredo é a visão de mundo do autor. Fantasma pode estar inserido nesse contexto, já que Curitiba (a cidade) e Leminski (o escritor), que seriam o objeto do ensaio, são secundários em face dos principais conflitos do livro?
Louis-Ferdinand Céline, um escritor que admiro muito, dizia que, enquanto a sociedade espera do escritor grandes rupturas, novidades, choques, ele é capaz de lhe oferecer, ao longo de toda uma vida de dedicação, e se tiver empenho e liberdade interior, nada mais que duas ou três pequenas coisas novas. Para Céline, o que importa não é a novidade, nem o enredo, mas a música — aquela tonalidade particular que um escritor atinge e que o distingue de todos os outros. Creio que ele tinha razão. A imaginação é, de fato, um território vasto e obscuro, sem limites, no qual o escritor caminha como um desbravador. Vai encontrando, aqui e ali, se tiver sorte e dedicação, algumas pepitas de ouro. Mas o que vale, mesmo, é seu estilo, isto é, o modo como ele se dedica a essa luta. Ou seja, a música, de que Céline falava.
• Qual a sua avaliação sobre os cadernos culturais brasileiros?
O maior problema dos cadernos culturais hoje não está no jornalismo cultural, mas no desprezo que nossa sociedade tem pela cultura. Temos, no Brasil, jornalistas de cultura muito competentes. Ocorre que, com raras e nobres exceções (e tenho a sorte de escrever para uma delas, o Caderno 2, do Estadão, editado por Evaldo Mocarzel), os jornais não investem mais em seus cadernos culturais, que estão magros, sem vitalidade, sem energia, sem recursos. Ou, o que é pior, se deixam levar pelos modismos, pela idéia do best seller, pelas bilheterias. Vivemos uma época em que a cultura está barateada, nivelada por baixo, medianizada. Em que o medíocre que vende tem mais valor que a qualidade que não vende. São tempos bastante adversos para a cultura, não há como negar.
• O jornalismo perdeu o romantismo dos tempos de João Rath, quando, me parece, imaginação e palavra andavam juntas?
Certamente. Isso, por um lado, é muito bom, porque cresceu o interesse pela verdade. Mas, de outro, é péssimo, porque os jornalistas passaram a ter uma visão muito linear, superficial, estereotipada dos fatos. Passaram a se guiar por padrões supostamente corretos e se enfurnaram no pântano dos clichês e da repetição. Nesse sentido, recordar o Rath é muito importante — além de justo. Mas, a meu ver, Rath foi mais um ficcionista que um jornalista, embora não tenha nos deixado uma só linha de ficção. Era um jornalista competente, mas sua força estava na imaginação, de dar inveja a muitos escritores consagrados…